Uma força da natureza

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Em Espanha Ana Maria Matute é um tesouro nacional PEDRO CUNHA

Espanha não é um país de unanimidades. As que existem são raras. Ana Maria Matute é uma delas. A sua obra está agora a ser publicada em Portugal duma forma mais sistemática pela Planeta. Aos 86 anos a escritora explica-nos porque é que ainda se sente jovem. Rui Lagartinho

Em Espanha Ana Maria Matute é um tesouro nacional. Esta mulher hoje frágil e que se desloca com dificuldade mantém intacto um olhar vivo, claro e brilhante que nos trespassa de encantamento quando começa a falar. A voz é fina, como de criança pequena, já assertiva no conteúdo. E depois há as mãos, magras, que com uma dramaturgia própria vão pontuando o discurso. Foi sempre assim: desde que se imaginou escritora que houve sempre gente à sua volta a escutá-la. Ainda meninas, os que o eram ainda mais que ela, vinham ouvir-lhe os contos que depois eram escritos.

Enquanto se fazia mulher, a guerra civil rodeou-a. A ditadura de Franco toldou-lhe a escrita. As primeiras memórias impressas deste tempo são obviamente comprometidas e muitas são proibidas de serem publicadas. Ana Maria Matute não desiste. Esconde-se no reino das metáforas, protegida pelo discernimento de uns e pela ausência de inteligência de outros.

Os primeiros prémios, já importantes, O Planeta, O Nadal chegam antes dos 40 anos.

E de repente, quase na maturidade, perto dos 50, Ana Maria Matute mergulha a sua escrita na Idade Média. "A Torre de vigia" (Planeta) escrito em 1971 é o primeiro livro de um mundo donde pouco sairá e que a consagrará com "Olvidado Rei Gudú" (Difel) .

No seu primeiro romance medieval um rapaz transforma-se em homem através da iniciação militar ao serviço do senhor Mohl. Será um crescimento cruel, com sonhos difíceis de se concretizarem e com algumas certezas confirmadas. Vigiado à distância do alto de uma torre por alguém que lhe vai ser muito útil nos rituais de passagem que vão desafiar os poderes instalados. O herói nunca vai ter nome. Estamos num reino longínquo, perdidos na bruma dos tempos e da fantasia mas as ambições de quem povoa aquelas terras é tão humana e real como a de qualquer outro porque os homens não mudam assim tanto.

A conversa com Ana Maria Matute vai começar pela vontade de confirmar esta quase certeza.

Quais são as vantagens de inventar um mundo medieval, quando se percebe que o tempo não muda os homens?

É verdade que os sentimentos que aqui estão são universais e sobre eles se pode escrever em qualquer tempo. Começar a escrever romances passados na Idade Média correspondeu no início a uma necessidade na minha biografia. Cresci com uma guerra e aguentei uma ditadura. A certa altura da minha vida já estava farta de tanta realidade na minha literatura que resolvi saltar para um mundo que sempre me fascinou.

Os contos medievais foram sempre os meus preferidos enquanto criança. Era neles que me projectava enquanto crescia e escrevia, nos celtas, nos Vikings, nos duendes dos bosques.

Começou a escrever aos cinco anos. A literatura salvou-a logo desde pequena?

Sim. Sim. Era onde me refugiava por não ser compreendida.

E é por isso que nunca abandonou este mundo. As memórias da infância estão sempre por perto na sua literatura, mesmo quando o que escreve não é para crianças.

A infância, a criança que se foi, deixa sempre marcas em qualquer vida. Mesmo que não gostemos e no seja difícil viver com essa situação. Tudo o que vives na infância, não te larga. Condiciona as tuas atitudes, os teus actos para o resto da vida. Todos temos uma criança dentro de nós asfixiada e que pode saltar para a ribalta quando menos pensamos.

Na adolescência começa a escrever para adultos. Termina o seu primeiro romance aos 17 anos mas que só será publicado com trinta quando ganha, em 1954, o Prémio Planeta ("Pequeño Teatro). Entretanto o que publica até então só o é porque o seu pai assina os contratos por si?

Naquela altura a maioridade das mulheres em Espanha era aos 22 anos. Essa era a primeira dificuldade. A outra era ser simplesmente mulher e querer viver da escrita. E a outra a mais difícil era que te proibiam ou cortavam muito do que escrevias. Cheguei a estar num congresso literário na Grécia com a polícia espanhola a vigiar-me todos os movimentos.

Mas em "Pequeño Teatro" há uma crítica, embora de fina ironia, à pompa da igreja que a censura deixou publicar.

Talvez não tenham entendido. Mas "Luciernagas", que é um livro sobre o que o grupo de crianças de Barcelona vê nas ruas durante a guerra civil, foi totalmente proibido.

As crianças, a infância são uma constante na sua vida. Quando não escreve para elas, escreve sobre elas. Ou sobre memórias infantis.

E que tem gerado alguma confusão. Uma coisa é escrever para crianças. Outra bem diferente é escolher que a personagem principal seja uma criança. Há uma fronteira entre a escrita para crianças e para adultos. É uma escrita diferente que se desenvolve por intuição. Agora que publicam muitas antologias minhas com materiais de origem diversa, já tem dado confusão. Ainda há pouco tempo evitei que uma mãe lesse ao seu filho um conto que não tem nada de infantil. Mas sim, as crianças, a infância e as memórias são uma constante nos meus livros.

Memórias que muitas vezes podiam ser suas mas que depois confirma que não o são. E já disse que as memórias existem para serem transformadas.

É o que faz a literatura. A memória é muito misteriosa. Sobre um mesmo acontecimento duas pessoas podem ter versões diferentes. Essa diferença já diz muito sobre o poder da literatura. De recriação. De invenção.

Já percebi porque é que desde jovem as crianças se juntavam à sua volta para a ouvir contar histórias. Isso começou em Sitges, junto a um mediterrâneo, que depois, quando a Idade Média e o seu imaginário se instalaram na sua obra, desapareceu.

Mas o mar sempre foi muito importante na minha vida. Nunca consegui, aliás, viver longe dele. O que aconteceu foi que a certa altura da minha vida, com o meu segundo marido, que podemos definir como o bom [risos], comecei a viajar pelo mundo inteiro - com excepção dos países comunistas que eram proibidos aos turistas espanhóis - e descobri a beleza dos países nórdicos, os bosques frondosos, que também existem na região de La Rioja em Espanha. É um mundo onde me sinto muito bem. De brumas, de frio.

Goethe escreveu um dia que se sentia um abeto que sonhava ser limoeiro. Eu ao contrário sou um limoeiro, que sonha ser um abeto.

A natureza nunca está longe da sua escrita. Chega a escrever, a propósito de uma personagem, que um vento estranho lhe fazia gemer o pensamento.

Que comunhão é esta com as forças da natureza?

Quase total. Quando estou dentro de um bosque não estou a olhar para o bosque, transformo-me no próprio bosque. Na sua essência. Embrenho-me nos seus mistérios, e perigos. Na sua magia.

Mas numa magia que poderíamos quase definir como natural. Sã. Branca.

Sim. Totalmente branca.

"A torre de vigia" começa na época das vindimas. É outro ritual que a apaixona.

As vindimas são uma época de renovação. De transformação. De vida e de morte. Há um cheiro inebriante no ar que contagia. Por isso começo por esta invocação. Lá estão as origens mediterrânicas.

Talvez porque valorize tanto os sentidos, os prazeres da vida, a maturidade de cada palavra, é uma escritora sem pressa. Chegou a estar quase vinte anos sem publicar.

Não sou uma escritora que corra a publicar um livro novo cada ano. Só escrevo quando dentro de mim nasce essa necessidade.

Está a escrever um novo livro?

Espero começar a seguir ao Natal. Será uma história passada na actualidade. Tenho que ver se não saio tanto e se ganho a tranquilidade necessária para começar a escrever. Sem pressas, mas com a noção que o tempo já me vai escasseando.

E o que anda a ler? Ainda sente o prazer da descoberta enquanto leitora?

Claro que sim. Devido à minha proveta idade sou amiga de quase todos os escritores espanhóis que ao pé de mim são todos jovens.

Gosto muito dos mundos que inventam, cada um no seu género, Enrique Vila-Matas e Soledad Puertolas. E ultimamente tenho-me divertido a descobrir o romance policial. O Georges Simenon (inventor do comissário Maigret) é um pequeno Dostoievski.

E não se sente tentada a escrever algo no género?

Não tenho cérebro para isso.

E poesia? Não há nada inédito escondido dentro de uma gaveta?

Talvez seja a única pessoa no mundo que nunca escreveu um poema na vida. Por medo e por respeito. E no entanto adoro ler poesia. Consola-me o facto de os meus leitores me dizerem muitas vezes que a minha prosa está cheia de poesia.

E entretanto vai sendo descoberta por gerações de leitores. Neste último ano, depois de ter ganho o prémio Cervantes, voltou a viajar imenso, a ver leitores, a dar autógrafos, conferências. Não se cansa?

Só o cansaço natural que provém da idade. De resto, transportam-me com todo o cuidado, mimam-me. O contacto com os leitores, as entrevistas agradam-me porque percebo o quanto aquilo que escrevo acaba por me deixar de me pertencer, passando a ser também o que a imaginação dos outros projecta naquilo que de mim lêem.

Nunca me aborreço: mesmo quando estou parada, só o movimento à minha volta já me fascina. Num aeroporto, por exemplo, farto-me de inventar vidas aos que passam por mim apressados enquanto estou tranquila a beber um copo na zona VIP. Nunca perdi a criança que fui: sou inocente. Às vezes desiludo-me. Decepciono-me. Mas isso só significa que ainda sou muito jovem.

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