Quando a vida acontece

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DÁRIO CRUZ

Em A Vida Passou por Aqui uma personagem diz:"Tu só querias passar pela vida, eu queria que a vida passasse por mim". Luís Francisco precisou que a vida passasse por ele para fazer este livro.

Luís Francisco é o "o tipo" que manda o original do romance que escreveu para avaliação precisamente na altura em que a editora tem muito trabalho e fica três meses sem lhe dar resposta. É o infeliz que envia episódios-piloto de uma série que gostava de fazer para televisão e tem a certeza de que nunca ninguém os leu. É o autor de dois argumentos para cinema que não foram filmados (um deles sobre a vida de D. João II, escrito a meias com Rodrigo Guedes de Carvalho). É aquele que nas aulas do curso de comunicação social, na Universidade Nova, disse que se tivesse um programa de humor na televisão lhe chamaria: Humor de Perdição - anos depois, ligou a TV e percebeu que Herman José se lembrara do mesmo.

Por isso, o jornalista do PÚBLICO, 47 anos, a determinada altura também se convenceu que ninguém estava a ler A Vida Passou por Aqui, o romance que publicou na Oficina do Livro. Tinha enviado o manuscrito para dois editores portugueses, sem cunhas, como se fosse um desconhecido e tivesse vinte anos outra vez: "Na prática, enquanto escritor, tenho vinte anos", diz o grande repórter que trabalha no jornal diário há mais de 20 anos e começou a carreira no Expresso. "Enviei o manuscrito para a Maria do Rosário Pedreira, da Leya, porque pensei que se ela dissesse que o romance era bom, não se tratava de mais um jornalista que escreveu um livro. Passava a ser "alguém que escreveu mesmo um livro"", explica Luís Francisco. Não queria editar um livro só para poder dizer que já era autor. Tem pânico de ser irrelevante, de ter escrito um livro que as pessoas lessem e pousassem com um ok, já está. "Queria mesmo fazer alguma coisa que tivesse impacto nas pessoas. Por isso fui a uma editora que não teria problema nenhum em mandar-me dar uma volta se não prestasse."

A primeira pessoa que leu o manuscrito na Leya foi um estagiário. Descreveu o romance como um conjunto de personagens disfuncionais que se entrecruzam e insistiu muito para que Rosário Pedreira o lesse. "Se eu fosse mais seguro não estava à espera de ter 40 e tal anos para editar um romance. Provavelmente já teria editado antes, mas seria seguramente pior porque acho que a vida tem de passar por nós para depois sair", diz.

O efeito borboleta

Só quando fez um curso de escrita humorística, há uns doze anos nas Produções Fictícias, é que descobriu que apesar de o seu trabalho ser escrever, o seu hobby também podia ser escrever. "Criar é um espaço de liberdade. No jornalismo não posso criar. Numa reportagem tenho de lidar com o que acontece e com o que me dizem."

Um dia sentou-se ao computador e começaram a saltar-lhe personagens: uma jovem mãe viúva que só pensa no filho, um velho reformado, e por aí fora. Percebeu que não iria a lado nenhum se continuasse a criar personagens alegremente sem saber como as iria relacionar. "Como é que vou articular isto? Como é que estas pessoas se relacionam entre si?", pensou. E foi então que lhe surgiu a hipótese da teia e do efeito borboleta. "Ao criar essa gente toda percebi que tinha de inventar uma estrutura porque senão ia-me perder e nunca mais conseguia fazer uma coisa com princípio, meio e fim." Quis obedecer à ideia de que as personagens, mesmo sem quererem, influenciavam a vida umas das outras. Optou por esta fórmula para poder falar de preocupações que o assaltam. "Não nos preocupamos minimamente com os outros. Agimos inconscientemente, virados para dentro, não pensamos que ao estacionarmos o carro no lugar errado podemos estar a prejudicar outra pessoa. Ou seja, o tipo que estacionava ali, chega atrasado para uma reunião e como não tem o lugar vago, demora mais tempo a estacionar e leva uma "bronca" do chefe. Seduz-me pensar nisso, como posso ou não influenciar a vida dos outros." Por isso, escolheu para epígrafe o verso de uma das mais famosas canções dos U2: "You"re an accident waiting to happen/You"re a piece of glass left there on a beach" (és um acidente à espera de acontecer/és um pedaço de vidro deixado na areia da praia). E também a nota que o escritor espanhol Camilo José Cela fez na primeira edição de A Colmeia onde defende que a novela não aspira a ser mais do que a vida narrada e diz que a vida é o que acontece. Desde que leu esse romance, na adolescência, Luís Francisco tinha a ideia de tentar fazer uma coisa parecida. Mas como demorou a escrever o romance, aconteceram várias coisas pelo caminho, tais como filmes como Magnólia ou Crash. "Histórias que se cruzam de pessoas que não se conheciam. Já nada disto é novidade. Azar, azar o meu. Acontece."

Lógica quase policial

Se é verdade que o escritor faz de Deus, cria um mundo, inventa pessoas, relações, faz-lhes maldades, a primeira preocupação de Luís Francisco foi que as suas pessoas fossem reais. De tão reais, a certa altura as personagens começaram a fugir-lhe. "Durante algum tempo somos donos da nossa ideia. Trabalhamos de acordo com ela. Mas a partir de um dado momento, o ritmo de trabalho muda. Passa a ser o livro que te chama, já não és tu que decides: "tenho de ir escrever". É como se as personagens estivessem à espera que escrevesses o capítulo seguinte. E depois, fogem-te. Quando acabava de escrever, tinha de voltar a ser eu. Precisava de algum tempo."

Neste caso, em que cada capítulo corresponde a um discurso de uma personagem, Luís Francisco começava o capítulo a querer que a personagem dissesse isto e aquilo. "Interessa-me o lado das pessoas que é só delas. É aí que somos disfuncionais. Quando pensam para dentro, para os seus botões, as pessoas são radicais, são facciosas e são estúpidas. É isso que as faz serem elas. Foi isso que procurei encontrar." A estrutura do romance obedece a uma lógica quase policial. Cada capítulo precisa de dar a pista para o seguinte. "Às vezes era lixado porque a meio já a personagem não estava a dizer o que eu queria. Se são reais tenho de ir atrás delas. Mas ao deixar aquilo seguir, tinha de ir ver como é que acabava. Porque tal como na vida real, os actos dessa personagem condicionavam o que ia acontecer a seguir no romance." Obrigou-o a mudar algumas coisas pelo caminho. "A vida está sempre a acontecer. Estamos metidos lá dentro, não temos noção de quem está a puxar a corda por nós. Às vezes levamos um puxão sem saber bem de onde, nem por que é que aconteceu."

Também a primeira impressão que o leitor tem de cada personagem, em algum dos casos, não é a que se vai confirmar ao longo de A Vida Passou por Aqui. "Tinha um final um bocadinho mais cor-de-rosa e foi a minha mulher que me disse que aquele final não batia certo com o resto: "Agora de repente fica tudo bem e acabou-se a história?"". Tal como acontece, às vezes, nos filmes, o final é aberto.

"A verdade é que a vida acontece mesmo sem nós. Entramos no livro e as personagens já lá estão a viver. Vemos as vidas das pessoas passarem à nossa frente por uns tempos. Depois abrimos a porta, vamos embora e a vida continua."

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