"Permiti-me oferecer este presente, imerecido!, à Igreja Católica"

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Nanni Moretti diz-nos que oferece este filme à Igreja Católica "que nos últimos anos fez tudo o que podia para perder autoridade e credibilidade"

Fez a sua aparição, como que saído do "Caro Diario" - óculos escuros, capacete branco. A conversa tem lugar no escritório dele, pequeno museu de "memorabilia morettiana", cartazes, objectos, discos... Evidentemente gosta de falar... Berlusconi, a Igreja Católica, Oliveira, Michel Piccoli, Michele Apicella... "Habemus Papam". Temos Moretti.

Os escritórios da Sacher Film, a empresa de Nanni Moretti que produz os seus filmes e gere a sua sala de cinema no Trastevere, ficam numa zona central de Roma (a dez minutos do outro lado do Tibre, justamente) mas afastada dos itinerários normais dos turistas. Durante os quarenta e cinco minutos que passámos entre o pátio onde fica o prédio da Sacher e o café uns metros abaixo, esperando pela hora combinada, não vimos passar ninguém de máquina fotográfica a tiracolo ou guia turistico na mão. Nada no exterior garante que a Sacher seja ali, mas uma "lambretta" estacionada à porta deixa-nos seguros de que é ali mesmo. Era ali mesmo, mas em Roma "lambrettas" há muitas e a de Moretti só chegou dez minutos depois do meia-dia, hora marcada para a entrevista. Já estávamos, portanto, dentro da Sacher, com (mais) um café na mão, oferta da casa, sentados em frente a um poster de Cary Grant e Ingrid Bergman no "Notorious" de Hitchcock, quando Moretti fez a sua aparição, como que directamente saído do "Caro Diario" - óculos escuros e capacete branco.

A conversa tem lugar no escritório dele, pequeno museu de "memorabilia morettiana", cartazes, objectos, discos, quase tudo referente aos filmes mais remotos ("Ecce Bombo", "Sogni d"Oro"). Algumas manchetes de jornal transformadas em "poster": uma diz "não ao Papa, sim a Moretti" - impossível perceber a que se refere. Por mais entrevistas e depoimentos que tenhamos lido de Moretti a dizer que ele "est un autre", que o dos filmes e o da vida real são diferentes, o espírito prepara-nos para um homem tenso, até severo, à espera de nos cair em cima ao primeiro "faux pas" no raciocínio ou na linguagem (porque, como se dizia na "Palombella Rossa", "as palavras são importantes"). Nada disso: é a gentileza e a disponibilidade em pessoa, capaz até de mentir piedosamente quando diz que o ridículo italiano do entrevistador "não é nada ridículo". Fala pelos cotovelos, mas sempre calmo, até lento, com pausas para escolher palavras - não são as rajadas que conhecemos dos filmes - e duas interrupções para encomendar um "cappuccino" e dizer à secretária o que queria almoçar.

Evidentemente gosta de falar: a entrevista acaba porque ao fim de hora e meia já não havia mais cassette. À saída, tocado pelo sol do outono romano, espreguiça-se e exclama: "ah, che bella giornata!".

Em Lisboa, e com tudo o que se tem passado em Itália, houve repetidamente este recado: "Não fales só de cinema, não fales só de cinema". Podemos começar por satisfazer este pedido. Berlusconi saiu...

É evidente que estou contente que alguém como Berlusconi, destituido de qualquer sentido de Estado, já não seja o primeiro-ministro de Itália. Por outro lado, por mais detestável que fosse, ao menos era um primeiro-ministro eleito. Dizem-nos que, por causa da situação económica e financeira, a Itália não se podia dar ao luxo de mergulhar nas semanas de incerteza inerentes a um processo eleitoral. E eu não tenho muito o que contrapôr a isso, porque de economia e finanças sei muito pouco, e também não sei definir se o contributo dos governos de Berlusconi para esta crise foi grande ou pequeno.

Mas a sua própria contestação de Berlusconi antecede e ultrapassa a questão da crise financeira.

Um dos problemas de Itália é a conformação. Os italianos habituaram-se a coisas incríveis, passaram a aceitar como normais coisas que não são normais em nenhuma democracia séria. Isso decorre da sistemática destruição da opinião pública. Quando falo da "opinião pública" não me refiro à oposição, mas a uma outra coisa que devia ser transversal a todos os partidos e quadrantes. O chefe do governo está envolvido num processo de prostituição de menores, por exemplo. E depois a propaganda das televisões de Berlusconi resume isto a uma história de perseguição pessoal. Metade da Itália está hoje convencida de que a outra metade, incluindo os magistrados, tem "inveja" de Berlusconi.

O que não é propriamente muito rico como argumento político...

O debate tornou-se impossível, é isto que quero dizer quando falo da destruição da opinião pública. O meu pai, que morreu há vinte anos, votava no Partido Liberal, que não era um partido de esquerda. Mas eu conseguia falar com ele. Durante décadas um democrata-cristão e um comunista podiam entender-se. Não quer dizer que se pusessem de acordo, mas conseguiam falar, discutir, entender os argumentos um do outro. Também porque, embora a Democracia Cristã estivesse sempre no governo e os comunistas sempre na oposição, tinham a noção de que a democracia construída depois da II Guerra era um património comum. Hoje é impossível um apoiante de Berlusconi e um opositor conseguirem sequer encontrar uma linguagem comum para haver diálogo. Há 17 anos que a Itália está partida em duas. Deixou de haver um património de valores comum. Acabou, não existe.

Um comentador italiano dizia que Berlusconi marcou a Itália mais profundamente do que Mussolini. Acha um exagero?

Bom, eu não era vivo no tempo de Mussolini [risos]. É evidente que entretanto apareceu uma coisa nova: a televisão, que é um meio muito invasivo, prepotente. Mas se me dizem que, se não tivesse sido Berlusconi, tinha sido outro qualquer, eu digo "alto aí, um momento!". Antes do mais, em todos os outros países, a vulgaridade televisiva, e entendo vulgaridade num sentido intelectual, cultural, aumentou muito durante os últimos 30 anos, mas não como em Itália. A televisão de entretenimento na Alemanha ou na França não é tão penosa como em Itália. Mas isto é um problema legislativo, um problema de democracia: nos outros países democráticos não se permitiu que uma só pessoa tivesse o monopólio das televisões privadas. Foi uma prepotência de Berlusconi, que na ausência de lei forçou a situação para se tornar monopolista. E depois houve uma lei, feita por Craxi, que serviu para ratificar o monopólio de Berlusconi. Nos outros países, com leis "anti-trust", seria impossível haver um monopólio televisivo. Sobretudo, seria impossível que esta pessoa entrasse na política e fosse chefe de governo. Se em 1993, quando Berlusconi começou a exibir ambições políticas, o parlamento tivesse tentado impedi-lo, estou certo que as televisões de Berlusconi teriam os espectadores a "pensarem", entre aspas, que se tratava de um golpe, de um "complot" contra ele. Portanto, penso que o grande erro foi ter-lhe sido permitido ter um monopólio da televisão. Gostava de recordar aos seus leitores que, no século passado, a esquerda esteve no poder em Itália por uma única vez, entre 1996 e 2001, e que não aproveitou para fazer uma lei sobre o conflito de interesses. ...Ah, eis o meu cappucino!... E do meu filme, não falamos?

Claro que sim. Vamos falar do filme.

Se quiser saber mais alguma coisa do que eu penso sobre política, estou aqui para isso... Mas os seus leitores ainda vão pensar que fiz um "remake" do "Caimão", de 2006 [risos]...

Não, passemos ao filme...

...mas ainda queria acrescentar mais uma coisa. Estou contente que esta sucessão de escândalos dos últimos anos praticamente impeça que Berlusconi venha a ser Presidente da República. Porque ele tinha essa intenção e até há não muito tempo o clima político e cultural era propício. Berlusconi Presidente seria ainda mais danoso e humilhante.

Uma pergunta para fazer "raccord" entre esta conversa e "Habemus Papam"/"Temos Papa": sendo um filme sobre a renúncia, sobre um homem que recusa o poder que lhe é atribuído, acha impossível ver o Vaticano e o Papa do seu filme como uma representação genérica do poder, de qualquer poder, e pensar no filme como uma meditação sobre o enorme peso que recai sobre o homem que tem que assumir esse poder, como se a tarefa de conduzir os outros, sejam eles os fiéis de uma igreja ou a população de um país, se tivesse tornado esmagadora?

Desde que não salte daí para a ideia de que o filme é uma metáfora sobre a Itália, não acho impossível. Aceito todas, ou melhor quase todas, as leituras que façam do meu filme, menos essa que pretende transformá-lo numa metáfora da sociedade italiana. Para mim, é sobretudo a história de um homem que se sente inadequado. Se a tivesse filmado com um político, ou com um treinador de futebol, teria sido uma história mais pequena. Quando se soube que estava a fazer este filme muita gente pensou que eu ia falar dos escândalos da Igreja.

É normal haver uma expectativa política em relação aos seus filmes.

Mas nunca pensei nisso. Não tenho nada contra o tema, desde que alguém o queira abordar seriamente, num documentário ou numa ficção, e faça com isso um bom filme. E um filme realista sobre o Vaticano teria que enfrentar o tema. Mas não fiz um filme realista, fiz um filme sobre o meu Vaticano, o meu Papa. É a história de um homem velho que percebe que para representar todos os outros homens tem que se anular a si próprio como homem. E encontra a força, porque penso que é uma força e não uma fraqueza, de interrogar os seus limites.

É claro que é um filme sobre a renúncia, como disse, mas não é uma apologia da renúncia a todo o poder ou toda responsabilidade. O filme tem sido visto por homens de poder, e de uma maneira geral sentem-se tocados pelo sentimento de inadequação que o Cardeal Melville [Michel Piccoli] representa. Mas se esse sentimento é uma característica psicológica de todos os políticos, essa é uma pergunta que nunca fiz.

O drama do Cardeal Melville lembra aquela crise de Michele Apicella [o alter-ego cinematográfico de Nanni Moretti até 1989] em "Palombella Rossa" (1989), quando desata a gritar pelas "tardes de Maio" e por tudo o que "não voltará", e depois diz muito docemente que "esperava um bocadinho mais, um bocadinho melhor". "Habemus Papam" é uma espécie de "expansão" dessa cena, para o tempo de um filme inteiro...

Sim... É verdade que, com muita cautela e muita circunspecção, pus muitas coisas minhas na personagem de Michel Piccoli. Por exemplo quando fala à psicanalista do "peso permanente" que sente na cabeça e o descreve como uma "sinusite psíquica"... Isto foi uma expressão que inventei para descrever o meu próprio estado de há vinte anos a esta parte. Mas não cheguei a pensar em interpretar eu mesmo a personagem. Parecia-me mais doloroso e mais profundo se fosse a crise de um homem velho, mais velho do que eu. Quer dizer, a Piccoli desejo mais oitenta anos de vida, mas aquela personagem talvez já não tenha tantos anos para viver. E sem que o argumento o explicite, nem sequer os diálogos, é a história de um homem que se confronta com o final da sua vida.

É a primeira vez que cita expressamente Chekhov num filme seu. Tem graça porque sempre pensei que havia um travozinho a Chekhov em vários filmes seus.

É possível que uma vez ou outra já lhe tivesse copiado uma frase. Eu li muito Chekhov. Penso até que as encenações italianas de Chekhov, por regra, passam ao lado da ironia chekhoviana e se enfiam num "poeticismo" que não é o mesmo que a poesia. Mas acho que sim, que já filtrei um pouco da atmosfera de Chekhov em filmes meus. Neste caso, a minha preocupação era que o espectador não se distraisse a tentar adivinhar que peça era [há toda uma sequência em torno de uma encenação de "A Gaivota"] e Chekhov parecia-me um autor justo a propósito desta história. E depois, só me apercebi disto durante a rodagem, "Habemus Papam" é um filme sobre os papéis...

O Cardeal que hesita em representar o papel de Papa...

Hesita e não consegue, como quer e não consegue ficar com o papel do actor que se ausenta da peça. E as outras: o Guarda Suíço que toma o lugar do Papa, nos seus aposentos, e parece afeiçoar-se ao papel; o psicanalista [o próprio Moretti], que não consegue desempenhar o papel para que foi chamado e inventa outro papel para si próprio, o de organizador dos tempos livres dos cardeais. Durante o conclave, nenhum dos cardeais quer ser chamado para o papel de Papa, e rezam para que não o sejam. O analista religioso que fala na televisão quer desempenhar o seu papel de especialista do Vaticano e também não consegue, começa a improvisar. O jornalista da RAI só percebe que o fumo é negro e não branco quando olha para o monitor de televisão... Para todos se põe a questão do papel que têm que interpretar.

A cena do conclave é pura imaginação?

Eu inventei o meu conclave e o meu Vaticano. Já vimos vários filmes em que o Vaticano é um lugar de conspirações e corredores esconsos, coisas sombrias... Eu não queria nada disso.

Os cardeais são como garotos...

Eu não sou um ex-crente em conflito comigo próprio. Quer dizer, em conflito comigo próprio estou sempre, mas não a propósito da religião [risos]. Não estou em conflito com a religião católica, no sentido em que estou muito distanciado dela. E permiti-me oferecer este presente, imerecido!, à Igreja Católica, que nos últimos anos fez tudo o que podia para perder autoridade e credibilidade. Permiti-me oferecer humanidade ao conclave, aos cardeais, ao Papa. E tem razão, durante o conclave os cardeais são como miúdos com medo de serem chamados à professora. Não sabem bem o que dizer ou fazer, copiam pelo colega do lado, depois têm os seus brinquedos e finalmente entusiasmam-se com o torneio de voleibol. Há um primeiro momento de abatimento, porque percebem que o Papa está mal. A minha personagem também está abatida, porque não pode sair dali e tem que dormir num cárcere. E isso permite, sem tornar tudo demasiado complexo, um encontro entre mundos muito diferentes, o da religião e o da psicanálise [um cardeal avisa o psicanalista: "lembre-se que as noções de "alma" e de "subconsciente" são incompatíveis; e o psicanalista responde: "isso, veremos"]. E depois, não quero fazer disto uma sugestão para a Igreja Católica, ou se calhar até quero, mas o Papa sai do Vaticano e vai passear pelas ruas, conhecer gente e ambientes que um velho cardeal dificilmente conheceria. Sim, isto é mesmo uma sugestão para Igreja Católica, o Papa consegue falar com desconhecidos, no autocarro, na pastelaria, e contar-lhes as suas dificuldades, o seu mal estar, os seus sonhos. Não tem nenhum problema em revelar-se, e isso era uma coisa que me dava gosto contar. Sem a explicar muito. Apenas contá-la.

Escolher alguém com o porte de Michel Piccoli para fazer o papel de Papa parece algo bastante natural, mas mesmo assim gostava que falasse das razões dessa escolha.

Piccoli tem uma grande autoridade, uma grande presença, mas também um espanto e uma candura quase infantis. E era destas características que a personagem precisava. Piccoli tinha um significado especial para mim, por todos aqueles filmes de há quarenta anos. Os de Marco Ferreri, por exemplo, "Dillinger Morreu", "A Grande Farra"... Mas também mais recentemente fiquei impressionado com um filme, e não o digo por você ser português...

Eu adivinho qual é: "Vou Para Casa"...

[risos] garanto que não é por você ser português... Gostei muito, impressionou-me muito esse filme de Manoel de Oliveira [também com Piccoli], que entendi como um filme sobre a elaboração de um luto e vi logo a seguir a "O Quarto do Filho" [ambos filmes estreados em 2001]. Portanto, Piccoli foi a minha primeira e única escolha. O argumento previa que a personagem tivesse uma irmã actriz, que naturalmente também seria francesa e teria uma certa idade. Não sabia bem que actriz escolher, e depois comecei a achar que era forçado: que estaria a fazer em Roma uma actriz francesa idosa? De maneira que decidimos "matar" a irmã, que no filme é apenas mencionada pela personagem de Piccoli.

O Vaticano reagiu bem ao filme?

Eu estou habituado, por causa de "O Caimão" e de outros, a que se fale muito dos meus filmes antes de serem vistos. Com este também correram vários rumores. Eu não disse nada, porque sabia que o filme não tinha nada a ver com o que se dizia. Depois, não li mas contaram-me, houve comentários publicados em sectores ligados à Igreja que se mostravam agradados, achavam que era um filme respeitador, etc. Mas eu admitia perfeitamente que ficassem incomodados, porque aquela imagem da varanda da Basílica de São Pedro vazia, que é a imagem que penso que melhor representa o meu filme, é uma imagem pertubantíssima. A ideia de um Papa que renuncia é muito perturbadora, ainda mais se pensarmos no dogma da infalibilidade do Papa. Que eu não sei se se vai manter por muitos anos, mas por agora permanece válido.

Presumo que nada tenho sido filmado no Vaticano...

Não se pode, é proibido. Felizmente! Filmei na praça de São Marcos, mas mais nada. Todos os interiores foram rodados ou noutros edifícios romanos ou em cenários na Cinecittà. Quis fazer um Vaticano mais severo e austero do que o que se vê nos filmes americanos, que é sempre muito barroco. O principal substituto foi o Palazzo Farnese, no centro de Roma, onde está instalada a Embaixada de França. Ocupámos a Embaixada por três semanas. Normalmente é difícil visitar o palácio, e a nós deixaram-nos ocupá-lo. Talvez por se tratar de um Papa francês, o Papa Michel Piccoli... A Capela Sistina reconstituimo-la à escala real na Cinecittà. E também na Cinecittà mas no exterior reconstituimos uma parte da varanda da Basílica [mostra uma fotografia de rodagem que mostra o cenário da varanda].

O último plano da varanda, com o discurso da renúncia, é fortíssimo. Não só pelo discurso e pela situação, mas porque o corte para o genérico final é terrivelmente brusco. O espectador nem tem tempo de se habituar à ideia de que o Papa renunciou...

A minha primeira ideia era fazer o Papa voltar a entrar no Vaticano. Assim como os fiéis que estão na praça desejam que o Papa aceite as suas funções, penso que a maior parte dos espectadores do filme o deseja igualmente. Mas depois quis espicaçá-los, dar-lhes este golpe. É como se o poder revelasse a sua nudez. Os cardeais estão assustados, a multidão também, e até a Basílica, o cenário, parecem abalados com esta renúncia. Mas penso que assim os espectadores prolongam o filme, nos seus espíritos, por mais algum tempo.

Como cineasta, sente-se muito diferente do que era nos anos 70, quando começou a filmar?

Eram filmes quase artesanais, os primeiros foram em super 8. Nessa altura, quando escrevia, fugia instintivamente das cenas que fossem difíceis de rodar. Auto-censurava-me no que me parecesse mais complicado. Nos últimos filmes isto deixou de acontecer. No "Caimão" ou em "Habemus Papam", eu e os meus co-argumentistas enfrentámos frontalmente as cenas que pareciam difíceis.

Já está a preparar algum filme novo?

A preparar ainda não. Ando a pensar, vou pensando. Tenho a certeza de que não quero voltar a deixar passar tanto tempo entre um filme e outro. Passaram cinco anos entre "O Quarto do Filho" e "O Caimão", e outros cinco entre "O Caimão" e "Habemus Papam". Isto foi assim porque estive ocupado com outras coisas. Produzi filmes de outros realizadores através da Sacher Film. Participei no movimento dos "Girotondi" [em 2002; Moretti esteve entre os principais instigadores deste movimento], que atacava a direita e Berlusconi mas também criticava a esquerda pela sua indecisão e inacção. Foi um fenómeno importante.

E tem o seu cinema...

O meu cinema, que se chama Nuovo Sacher, e a minha actividade de distribuição. São coisas que levam muito tempo, é um verdadeiro trabalho. Mas não o faço por nenhum espírito de missão, não é aquela coisa de "ah, tenho obrigação de mostrar cinema alternativo ao circuito comercial". Faço-o porque me dá prazer. E porque é um prazer, absolutamente. Mas quanto ao novo filme, vou escrevinhando. Sabe que há vinte ou trinta anos inventei uma frase que soava bem e repetia em todas as entrevistas. Dizia: "quero fazer sempre o mesmo filme, se possível cada vez mais belo". Mas agora já não digo isso. Fazer sempre o mesmo filme, não. Aliás, há vinte ou trinta anos era-me inconcebível filmar um argumento escrito por outros. Hoje, se me propusessem um de que gostasse, porque não?

Nem "O Caimão" nem "Habemus Papam" são filmes centrados na sua própria figura. Sente-se agora mais realizador do que actor?

Sim, creio que sim. Quando comecei, não era um actor profissional, nem um realizador profissional, nem um argumentista profissional. No entanto, juntando estas três coisas, conseguia fazer filmes, e filmes que me pareciam pessoais. E pensava: não consigo ser argumentista para outros, não consigo ser actor para outros, não consigo ser realizador de argumentos de outros. Hoje, já não penso nada disto.

Michele Apicella vai voltar?

Ah não, já passou demasiado tempo... Acho que é mesmo verdade, não é demagogia nenhuma, que um cineasta pode aperceber-se a posteriori de determinados aspectos dos filmes que fez. Depois de "Palombella Rossa", que é um filme sobre um amnésico, também porque acho que a esquerda italiana tem um problema genérico com a memória... aliás, toda a Itália tem um problema com a memória... mas bom, depois de "Palombella..." percebi que a verdadeira razão da amnésia da personagem talvez fosse o facto de eu, como argumentista, não querer continuar a escrever sobre Michele Apicella. E que eu como actor não queria passar o resto da vida a declinar aquela personagem. Isto é quase demasiado inteligente para o meu gosto, mas bom: foi como se as outras personagens de "Palombella" me recordassem de quem sou, convidando-me a repetir infinitamente Michele Apicella como actor, argumentista e realizador. E eu queria era soltar-me, esquecê-lo. As coisas mudam durante uma vida, e eu creio que desde então mudei um bocadinho como pessoa e como cineasta.

Ver crítica de filmes págs. 42 e segs.

O Ípsilon viajou a convite da Midas Filmes

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