Os pássaros do livro mais caro do mundo

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Pinturas do flamingo americano e da coruja-das-neves no

Birds Of America, livro de John James Audubon, vai a leilão na Sotheby"s a 7 de Dezembro. Com ele estará First Folio, de Shakespeare, o livro mais importante da literatura inglesa. Mas são os magníficos pássaros de Audubon que, pela sua escala e raridade, concentrarão atenções

Em 1820, John James Audubon viajou pelos estados do Mississípi, Alabama e Florida para observações ornitológicas. Era o início da uma investigação que tinha por objectivo documentar em pintura todas as aves da América do Norte e que transformaria Audubon numa das personalidades do seu tempo. Há dez anos, o livro daí resultante, Birds Of America, tornou-se o mais caro de sempre, ao ser arrematado por 8,8 milhões de dólares. Ontem, voltámos a ele. A Sotheby"s londrina anunciou o leilão, a 7 de Dezembro, da colecção de Lord Hesketh, falecido nos anos 1950, e entre os itens, quase obscurecendo Shakespeare e Elisabete I, está uma cópia de Birds Of America.

Frederik Fermor-Hesketh, Lord de Hesketh, descendia de uma família que desde o século XIX vinha construindo uma rica colecção livreira. Os livros que Frederik adquiria não eram reveladores de um interesse específico. Coleccionador compulsivo, procurava o raro e a excelência, o que explicará o valor e a diversidade de livros, cartas ou manuscritos que serão levados a leilão em Dezembro. Entre os destaques, encontra-se uma cópia de Comedies, Histories, & Tragedies, de Shakespeare, publicado em 1623, sete anos após a morte do dramaturgo, e conhecida como First Folio (a primeira colecção das suas peças e considerada, tão só, o mais importante livro da literatura inglesa). Há também uma colecção de 40 cartas endereçadas a Ralph Sadler, carcereiro de Maria I da Escócia, durante o seu cativeiro às mãos de Elisabete I (cinco das cartas são assinadas pela monarca) e até agora desconhecidas dos historiadores, segundo revelou ao P2 David Goldthorpe, especialista da Sotheby"s em livros e manuscritos. "Teremos a descrição de cada uma [das cartas] no catálogo [do leilão], o que fornecerá aos estudiosos todo o enquadramento necessário para extrair a relevância histórica do seu conteúdo", adianta.

O First Folio, de que supõe existirem hoje 219 cópias de um total de 750 impressas à época, está avaliado entre o milhão e o milhão e meio de libras [entre 1,215 milhões e 1,822 milhões de euros] e o conjunto de cartas em 150 mil e 200 mil libras [entre 182 mil e 242 mil euros]. Considerando que, para além deles, a Sotheby"s apresentará ainda, por exemplo, uma cópia ilustrada, datada do período medieval tardio, de Vida de Rómulo, de Plutarco, não surpreende que o jornal The Guardian tenha escrito ontem que os itens a leilão, "quaisquer que sejam os critérios, [são] parte de uma colecção verdadeiramente extraordinária." David Goldthorpe afirma isso mesmo ao P2, manifestando as grandes expectativas da Sotheby"s quanto ao leilão de Dezembro. O maior destaque, porém, será Birds Of America: o livro de um filho de franceses nascido em 1785 no Haiti; de um homem que se tornaria para os seus contemporâneos a encarnação do espírito de um novo país, os Estados Unidos, que foi a sua pátria adoptiva.

Mais de dois séculos depois, a sua obra, um livro monumental quer pela dimensão, quer pelo impacto, tornar-se-ia a mais cara de sempre num leilão. A Sotheby"s avalia-a entre 4 e 6 milhões de libras [entre 4,8 milhões de euros e 7,3 milhões de euros]. Ou seja, muito acima do "livro mais importante da literatura inglesa".

Como explica Goldthorpe, a riqueza de Birds Of America nasce de uma combinação de factores: "A raridade, a dimensão e o nível artístico." A raridade: crê-se que existam apenas 119 cópias completas do livro, das quais 11 na posse de privados. A dimensão: John James Audubon propôs-se a "desenhar aves em tamanho real", sendo assim obrigado a recorrer às maiores folhas existentes, as chamadas "double elephant" (66 por 96,5 cm). O nível artístico: depois de caçar as aves, Audubon colocava-as em pose realista com o auxílio de pedaços de arame, imprimindo à pintura uma vivacidade e expressividade até aí ausente dos registos de ornitologia.

Numa escala de valoração artística, Birds of America não ultrapassará o First Folio de Shakespeare. Não foi esse o factor determinante para que tenha disparado até aos 8,8 milhões. Foi, isso sim, o seu valor enquanto objecto e o seu apelo abrangente. "É um livro impresso que suscita o interesse de públicos muito diversos", aponta David Goldthorpe. "É muito visual, e muito apelativo para o público especificamente americano, ou interessado em coleccionar "americana". Shakespeare é obviamente uma figura imensa na literatura inglesa, mas a verdade é que posso entrar numa livraria e encontrar as peças [incluídas em First Folio]. Já o Birds [Of America]", assinala, "não tem substituto. O seu valor é mais proteico, se é que posso utilizar esse adjectivo."

Como um pioneiro do Oeste

Em 1826, aos 41 anos, John James Audubon desembarcou em Londres. Levava consigo um portfolio de 300 desenhos originais, a aguarela, que acumulara nos anos anteriores em viagem pelos Estados Unidos. Viajara até à capital inglesa por conselho de amigos bem colocados, cujas cartas de recomendação lhe abririam as portas da nobreza a alta burguesia britânicas, e procurava os meios técnicos, então inexistentes nos Estados Unidos, que lhe permitissem reproduzir cópias da obra.

O sucesso foi imediato e as digressões pelo Reino Unido, exibindo os pássaros e a paisagem natural americana, causaram furor. Não só as pinturas. David Goldthorpe descreve Audubon como um homem de traços rudes e de cabelo comprido que "encarnava na perfeição a figura romântica do homem do Novo Mundo". Também ele suscitava espanto e admiração: um homem culto e fluente na cultura europeia, que contava histórias das tribos índias em que vislumbrava "a grandeza do Criador em todo o seu esplendor".

Vendida por assinatura em fascículos, trabalho naturalista e obra artística, Birds Of America funcionava como uma fascinante digressão visual por um continente misterioso para os europeus. Os americanos, por seu lado, viam-no como uma elegia à riqueza natural dos seus territórios. Num e do outro lado do Atlântico Audubon venceu. O rei britânico George IV foi um dos assinantes do livro, tal como Charles X de França, e o pintor foi admitido na London Royal Society - após Benjamin Franklin, foi o primeiro americano a conhecer tal distinção.

De regresso aos Estados Unidos em 1829, continuaria o seu trabalho até a sua saúde se deteriorar definitivamente em 1848. Morreria três anos depois, em 1851.

O livro a que dedicou a sua vida tornou-se o mais caro de sempre há dez anos. Dia 7 de Dezembro, será a grande atracção do leilão da Sotheby"s. "Está em óptimas condições de conservação e tem a encadernação original. É realmente maravilhoso", despede-se David Goldthorpe.

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