Os massacres

Participou nas três invasões. Gritou "já fuzilé!", de Norte a Sul do país. Da Guarda, onde matou mais de mil, a Évora, a lastimosa, os livros e panfletos perpetuam-lhe os massacres. Nos monumentos e na tradição oral, contudo, a memória colectiva parece ter perdoado os crimes ao conde de Loison, o mais cruel dos generais de Napoleão. A quem as populações chamavam, simplesmente, "O Maneta". Por Adelino Gomes e António Carrapato (fotos)

Que generais é que devemMorrer ao som da trombeta?
Os três meninos da ordem:
Jinot, Laborde e Maneta
Cantigas dos Franceses

a Loison fez o pleno das invasões francesas. O seu nome consta da ordem de batalha dos três exércitos que o imperador Napoleão Bonaparte enviou para Portugal, a partir de 1807. Atravessou a ponte de Segura, faz agora 200 anos, à frente dos sete batalhões da 2ª divisão de infantaria das forças de Junot. O seu nome e fama começaram a gelar de medo Portugal a partir do momento em que, meses depois, as populações puseram termo às tréguas decretadas pelo Príncipe Regente contra o invasor.Denunciante, blasfemo, movido pela ambição do ouro, o desejo da rapina e o gozo da violência, diz Raul Brandão de Loison, acusando-o de ter sido promovido a general quando ainda não sabia ler nem escrever.
Nunca ninguém o viu comover-se, chorar. Da sua boca só saem estas palavras, num português mascavado: "Já fuzilé! Já fuzilé!" O comandante das forças de ocupação escolheu-o bem para a dominação do medo, conclui o autor de El-Rei Junot.
Loison participou nas batalhas do Vimeiro (Junot) e do Buçaco (Massena). Terminada a Guerra Peninsular, integrou o Grande Exército com que Napoleão atacou a Rússia em 1812. Bateu-se em Waterloo, morrendo no ano a seguir à queda de Napoleão.
Entre inúmeras outras, escolhemos quatro terras portuguesas de que a bibliografia e a memória oral guardam histórias em que se enfrentaram a resistência dos povos e a fúria repressiva e saqueadora do general a quem o povo chamava "O Maneta".

Serpentina

Início do Verão de 1808. As forças de Loison regressam de uma incursão mal sucedida em direcção ao Porto. Em Padrões de Teixeira sustiveram-lhes a marcha sobre Mesão Frio. Atacado pelas milícias que partiram de Vila Real, de Chaves, de Braga, Loison atravessou o Douro, pernoitou em Lamego, que saqueou, como saqueara e matara na Régua, seguiu para Castro Daire, onde infringiu 400 baixas numa coluna de insurrectos, queimou searas, casas, celeiros. Prepara-se agora para entrar em Celorico da Beira. É então que sabe da revolta de Serpentina. Dizem-lhe que a aldeia e arredores estão em "plena insurreição". Que o povo pegou em armas e lhe vigia os movimentos. Manda que duas companhias se dirijam ao local. Com ordens para que queimem tudo, se encontrarem resistência.
À vista dos franceses, os homens armados fogem. Na aldeia ficam apenas crianças, mulheres, velhos, inválidos e o juiz ordinário. A quem matam. Para dar o exemplo aos corregedores de Trancoso, da Guarda.
No dia seguinte - 30 de Junho de 1808 - a sua guarda avançada é recebida a tiro nas proximidades de Pinhel, cuja população tenta resistir ao avanço. Em vão. Nessa noite mesmo, o general dorme na Casa Grande dos Condes de Pinhel.
Não será a última. Este e outros solares hão-de servir de local de aboletamento dos comandos invasores, que em pelo menos um deles chegam a levantar uma mais larga cozinha para bem serem servidos.
A crueldade de Loison levará, anos mais tarde, o comandante da terceira invasão, Massena, a repreender o seu oficial. "Os generais do Imperador não podem deixar tão má imagem de dureza nas terras ocupadas", ter-lhe-á dito. Há-de ainda enviar uma delegação de oficiais portugueses do seu estado-maior com a incumbência de convidar as autoridades locais a um encontro em Castelo Rodrigo. Pretendia - presume-se - apresentar-lhes desculpas. Os representantes do povo de Pinhel recusaram.
O alto vale do Mondego - conta a Monografia Histórica e Artística de Celorico da Beira e Linhares, de Vasco Rodrigues - foi alternadamente ocupado por tropas francesas e por tropas britânicas. Wellington instalou hospitais de sangue em igrejas de Celorico e da Lajeosa; os francesas colocaram nelas paióis de pólvora. Alguns dos quais fizeram explodir na hora da retirada.

"Olhe ali na parede, rente ao chão, aquilo tudo escuro. São os sinais do incêndio", indica um dos populares apontando para o solar, situado em frente da igreja de S. Lourenço e na linha de vista da outra grande edificação histórica da aldeia, o solar dos Távoras, há muito em ruínas. Lá dentro, a descansar na cama, antes de almoço, o proprietário, Augusto César de Carvalho, 89 anos, confirma. Não estes, mas outros sinais de incêndio antigo, encontrados nas padieiras de três janelas, que descobriu rachadas e com sinal de incêndio, quando, em 1974-75, procedeu ao restauro completo do edifício.
Advogado em Lisboa e na Meda, sua terra natal, antigo presidente da Câmara de Meda, governador civil da Guarda, director comercial da Sacor, Augusto de Carvalho herdou a casa, que pertenceu ao bisavô da mulher, Maria Adelaide, já falecida. Aquele, havia-a comprado a alguém que a comprara aos herdeiros do fundador, o tenente-coronel Manuel da Fonseca Ferreira.
Souropires, chama-se a aldeia. Fica perdida nos campos pedregosos, no caminho antigo entre Celorico e Pinhel. O general Thiébault, do estado-maior de Junot, terá confundido o topónimo, grafando Serpentina. Por três vezes: no texto em que relata a história que citámos; no índice do livro, em que refere inclusivamente, uma batalha na aldeia, com as tropas de Loison; e num mapa que fez incluir na obra com que, em 1817, quis perpetuar a lembrança das aventuras militares que vivera em Portugal.
A bibliografia portuguesa relata o mesmíssimo episódio, não hesitando em traduzir, geralmente, Serpentina por Souropires.
Laurindo Saraiva, técnico superior de museologia, na Câmara de Pinhel, e o arqueólogo António Marques, da Câmara de Celorico da Beira, dão-lhe razão.
O mesmo faz, sem hesitar um segundo, Augusto de Carvalho, conhecimento palmo a palmo de uma região em que foi responsável administrativo e político durante boa parte da vida.
O topónimo Serpentina não consta. Nem nos livros, nem nos registos epigráficos, nem na recordação das gentes. Mas Augusto de Carvalho nada garantirá quanto à batalha que Thiébault indexou mas não descreve; à morte de paisanos indefesos, nomeadamente do juiz ordinário, a que o mesmo autor alude muito indirectamente; e à queima de casas, que outras fontes indicam. Na memória colectiva resiste apenas a vaga referência aos incêndios (desta, em que os franceses terão chegado a instalar-se, e de mais quatro casas, indicam as monografias locais).
O dono do solar acrescenta-lhe dois objectos que encontrou nas obras de reconstrução e a empregada Arminda Clemente (75 anos, 54 dos quais na família) nos mostra agora, por sua iniciativa, que obtém o acordo do patrão: uma espada e uma bola, em ferro fundido, de um canhão. "Mas não tenho a certeza. Pode ser que não sejam dessa época. Especialmente a bola", observa, prudente.

Guarda

Mal chegado a Almeida, já Loison recebeu ordem de marcha de Junot para acorrer a Lisboa, com quatro batalhões de 850 homens. Ao aproximar-se da Guarda, nesse mesmo dia 3 de Julho à tarde - domingo, dia de feira -, é informado de que os seus dois enviados, que procuravam garantir alimentação e alojamento para a coluna, haviam sido alvejados.
Pára a meia légua de distância e estuda o dispositivo inimigo. Ao contrário do que aliados portugueses lhe tinham garantido, a cidade espera-o em pé de guerra, com duas linhas de insurrectos apoiadas por duas peças de artilharia.
Rompidas em vários pontos, as defesas dos portugueses cedem, não tarda; a artilharia é tomada; os homens de Loison entram na cidade "com sangue frio e intrepidez"; o massacre é "terrível", a desordem "geral", conta o general Thiébault. "Tudo o que pode escapar foge e dispersa; mais de mil mortos juncam o chão".
Do lado português, José Acúrsio das Neves, que testemunhou vários episódios das invasões e gosta de os contar com minúcia mas sem poupar adjectivos, relata a história de forma bem diferente. Sem combatentes à vista, pois estes desapareceram logo aos primeiros movimento dos franceses, Loison saciou o seu furor sobre "velhos, aleijados e mendigos que, fiados na sua inocência e na piedade que o seu aspecto devia excitar, se tinham deixado cair em poder destes bárbaros, que os assassinaram cruelmente".
A esta tarde "sanguinosa", seguiu-se uma noite "de rapinas": casas saqueadas, roubo do depósito público, extorsões às freiras, ouro, prata, roupas e animais roubados, pipas entornadas e prática continuada de "tudo quanto a licença e a cobiça lhes inspiravam".

Na fase de preparação do seu livro Aqui Não Passaram!, Carlos Azeredo sentou-se ao volante de um jipe, atravessou terras e percorreu as antigas estradas reais, hoje quase nunca utilizadas, em busca de testemunhos de "tão dramático período do passado". Nos flancos da Serra da Cabreira, à vista do tabuleiro dobrado sobre o arco ogival que forma a ponte da Misarela sobre o Rabagão, onde Loison viveu um dos momentos mais dramáticos da retirada em fuga do II Corpo do Exército de Soult, pergunta ao primeiro cidadão que encontra se sabe que ponte é aquela.
- É a ponte dos franceses, responde-lhe um homem humilde.
"Tão humilde - diz Azeredo ao P2 - como aqueles camponeses rudes que deixaram a mulher e os filhos ranhosos e partiram a integrar-se nos grupos que se atiravam aos franceses com a intenção de matarem ao menos um, antes de eles próprios morrerem."
O general português - é esta, de resto, a tese do seu livro - não tem dúvidas: foi a gente mais humilde dos campos, enquadrada pelo baixo clero e por alguma nobreza rural, e apoiada por alguns, poucos, oficiais e um general de Cavalaria, Francisco da Silveira Pinto da Fonseca, a "imediata e grande protagonista" da resistência ao invasor.
("O povo - o povo baixinho - foi o mais valente. Costuma ser sempre assim", ouvimos da boca do dono do solar de Souropires - a Serpentina de Thiébault).
Além do homem da Misarela, contudo, Carlos Azeredo depararia, na sua peregrinação, com a mesma ausência de traços identificadores desse país das invasões. Como se a recordação do "cenário de incríveis misérias, violências e massacres" que evoca no livro se tivesse esvaído na memória do português comum e das próprias pedras que pisa.
"Por que é que não há sequer uma inscrição em qualquer parte?", repetem historiadores e arqueólogos, ecoando a nossa perplexidade perante a ausência de sinais evocativos da passagem violenta dos homens de Napoleão por Souropires, Guarda, Pinhel, Celorico.
Nesta última cidade, passados dois séculos, por iniciativa conjunta da Câmara e da respectiva Comissão de Melhoramentos, só agora se reconstrói uma das numerosas igrejas transformadas pelo ocupante em paiol de pólvora - a capela da Senhora da Anunciada, em Vale da Ribeira.
Em Pinhel, procurando justificação para o silenciamento da tragédia nos edifícios, ruas e praças, Laurindo Saraiva exclamará, como se tivesse encontrado a resposta certa: "Somos espoliados. Quem nos vem pagar essa má glória!?"

Alpedrinha

A 4 de Julho chega a Alpedrinha a proclamação de Junot aos portugueses: Que delírio é o vosso? Que a população, por "unânime e espontânea resolução", "prontamente" reduziu "a mil bocados", decidida a quebrar o jugo do ocupante. Quando, acabado de chegar de Atalaia do Campo, Loison se apercebe da insurreição, destaca uma parte da força, sob o comando do major Mellier, para acometer a importante vila, então sede de concelho. Os populares, "ainda em pequeno número e mal armados", ousam disputar-lhe a entrada, "animados principalmente pelo cura da terra".
Também aqui a resistência será breve, porém. "Das seis para as sete da tarde", precisa António José Salvado Mota, na sua Monografia D"Alpedrinha. Entre os 33 mortos - outras fontes apontam 31 e até 19 - conta-se o próprio capitão-mor, "que, em uniforme, comandava este ajuntamento".
Alpedrinha experimenta a cólera do "Maneta", cuja tropa "insultou os templos", arrombou o sacrário da igreja matriz, se entregou a um "saque geral", seguido de incêndios e da destruição de várias casas.
A um arrancaram-lhe os olhos, cortaram o nariz e "os órgãos da geração". A um outro - o boticário - levaram-no para o campo e queimaram-no vivo, "à vista da paisagem fugitiva, que de alguns montes vizinhos ouvia ainda os seus lamentos". (Ainda que Salvado Mota, sem pôr em causa a veracidade da história, coloque no lugar do boticário um infeliz que regressava a casa com "uma facha de palha" e foi vítima da ira dos franceses que tinham sido desafiados, pouco antes, pelas fanfarronices de um homem chamado Valentim e de um padre, confessor da rainha Carlota Joaquina. Um e outro, em locais distintos, dispararam sobre as forças napoleónicas e deram às de Vila Diogo, mal a resposta francesa sobreveio.)

Repete-se o que Laurindo Saraiva nos disse sobre a ausência de sinais em Pinhel. À excepção, talvez, de uma boca de fogo quatrocentistas levada para a Trincheira e donde, tudo indica, eram disparados pelouros sobre os invasores, quando estes passavam na estrada de Almeida. Mesmo sem o conhecimento concreto dos serviços militares prestados pela velha peça, tamanho é o carinho que a população lhe vota que até os sinos repicaram, em alarme, quando alguém a quis levar para expor na capital, conta o museólogo. Nenhuma inscrição, nenhuma lápida evocativa da passagem dos franceses por Alpedrinha, a terra que foi, no distrito de Castelo Branco, "a que mais sofreu com a invasão francesa", asseveram os cronistas locais.
Quem o lamenta, agora, é Diamantino Gonçalves. Técnico de óptica e fotógrafo "às vezes", dedica todo o tempo disponível à pesquisa em livros, panfletos, sítios da Internet, e à busca, campos fora, de rastos da passagem dos exércitos napoleónicos, de cujos resultados dá conta em regulares escritos nas páginas do histórico Jornal do Fundão.
Se vivesse naquele tempo, ele próprio teria sido vítima da ocupação. Mas às mãos dos seus compatriotas. "Não estou de acordo com nenhuma invasão, seja em que país for. Mas teria uma certa simpatia por Napoleão e pelas ideias de liberdade que a Revolução Francesa trouxe. Os códigos de Napoleão estiveram impressos para serem publicados em Portugal. Teria sido um grande avanço", filosofa. Ciente de que tal manifestação de simpatia lhe teria atraído a fúria das populações, inflamadas pelas prédicas do baixo clero contra os jacobinos, inimigos da Santa Madre Igreja.
Independentemente de outras considerações, porém, não compreende a ausência de sinais comemorativos de uma resistência que, sustenta, marcou o princípio do fim de Napoleão. "Ele próprio escreve que perdeu aqui a face do Império. Derrotámos Massena, que era só o general que ele mais estimava. Não conseguiu tomar Lisboa e teve que retirar, humilde. Ora, nós nunca tivemos orgulho nisso, não se percebe porquê."
Diamantino Gonçalves tem orgulho. E por isso ainda há não muito tempo evocou a derrota de Massena às mãos dos homens destes montes e vales em Enxabarda, na Serra da Maunça. Com o presidente da Junta de Alpedrinha, Barata Roxo (um dinossauro do poder local democrático, onde milita desde 1976, apenas com dois pequenos intervalos), começou já a discutir a forma de levar por diante a comemoração do bicentenário do levantamento contra os homens de Loison do povo desta vila, situada a meia encosta da Serra da Gardunha.
"Há cem anos, parte das comemorações foram no Porto. O Rei foi lá. Editaram-se livros. E agora, nos 200 anos, não vai haver nada?", lamenta Diamantino Gonçalves.

Évora

Guarda, Alpedrinha, Leiria, Nazaré, Vila Viçosa, Beja, "não oferecem, todas juntas, um espectáculo comparável" à "mortandade horrorosa" cometida por Loison em Évora a partir das quatro da tarde daquele dia 29 de Julho, informa Acúrsio das Neves. Junot entregou-lhe uma divisão de 6 mil infantes e cinco esquadrões de Cavalaria, que embarcaram para Cacilhas na manhã de 26 de Julho, chegando à vista de Évora na "fatal" data que a cidade - a terceira do reino, ao tempo - há-de chorar.
As forças que a defendem dispõem de poderosos meios de artilharia mas não totalizam mais de 2 mil homens: 700 tropas portuguesas "com alguma instrução"; cerca de 400 da chamada legião estrangeira de Badajoz, muitos dos quais também portugueses; 600 homens de vários corpos espanhóis; e "gente colectícia - padres, frades, paisanos de várias condições sociais armados de chuços, foices roçadoras, machados e outras que tais armas".
O Corpo que Loison comanda directamente dirige-se "em luta aberta" contra os atiradores milicianos que guarnecem a capela de Nossa Senhora da Ajuda, edificada sobre as duas torres da Porta de Alconchel. Sessenta minutos de "terrível fuzilaria" demorou a defesa desta posição, auxiliada pelo tiroteio "dos bravos e enraivecidos eborenses", entre os quais se salientavam os monges do Convento dos Remédios.
Estoirada a Porta de Alconchel, a cidade torna-se "pasto da soldadesca ínfreme e sequiosa de sangue", quando, pelas quatro da tarde, "tocou à degola e começou a mortandade da população".
O bispo corre à Catedral, ameaçada de destruição por dois canhões assestados sobre a fachada. Frei Manuel do Cenáculo prepara-se, no seu sólio, rodeado pelo cabido, para receber o comandante das forças, que disparam indistintamente sobre os altares e populares desarmados. Loison manda um intérprete dizer-lhe que o espera no Paço, ali mesmo pegado.
- Monsenhor arcebispo, assinou um decreto contra a França, é réu de morte, grita-lhe o general, "com gesto feroz e ameaçador".
Ordena, em seguida, que se arvore a bandeira francesa na mais alta das três torres da Sé e determina o aboletamento seu e de mais 40 oficiais superiores nos aposentos do palácio.
Os novos senhores da cidade obrigam criados, clérigos, frades "e também alguns senhores" que ali se refugiaram "a que os servissem de pronto, e isto com pontapés, bofetões e ameaços de espadas e pistolas". Após o que dirigiram "um saque tão sistemático da casa, que nada escapou de valia", incluindo o anel, arrancado do dedo episcopal.
Não se entendem, como de costume, os autores, sobre o número de baixas.
Fontes do estado-maior invasor calculam que o custo da operação militar - excluindo, portanto, a "carnagem" que se lhe seguiu - chegou a cinco mil mortos e dois mil feridos e prisioneiros, do lado português. Vasco Pulido Valente diz que as execuções com que se celebrou a vitória aumentaram a conta para oito mil mortos "e não se sabe quantos feridos".
Túlio Espanca dá o maior crédito às cifras avançadas por um padre, testemunha ocular: mais de 1 500 mortos. Estimativas mais modestas põem em 800 os que morreram nas linhas de combate e em 38 padres e freiras e 232 "seculares" os que foram chacinados na "deplorável catástrofe do fatal tríduo de 29, 30 e 31 de Julho de 1808", como chora o secretário do Santo Ofício, Padre José Joaquim da Silva, na sua memória histórica Évora Lastimosa.

Uma das duas lápidas de mármore, "embebidas" nas paredes laterais dos paços do concelho de Évora, 79 anos depois do massacre de Loison, como evocação da resistência da cidade e do seu arcebispo, jaz, hoje, nos arredores, num parque municipal, entre ferro velho e um menir abandonado. As inscrições, em latim uma, em português a outra, engrandecem a figura do herói do "tríduo", frei Manuel do Cenáculo Villas Boas, que "pedindo e suplicando a paz, obteve o dom da piedade e manteve a cidade livre da ruína" de maior fúria do invasor.
Na própria Sé, a placa comemorativa passou, há 70 anos, de uma das nove capelas para a parede do lado direito de quem entra, junto das escadas que conduzem às torres do templo.
O sólio - donde o arcebispo desceu, à vista dos oficiais vencedores e dos soldados que lhe apontavam baionetas ao peito e gritavam por dinheiro, ameaçando de morte e saque violento, para lhes suplicar "humildemente" pela vida do seu "pobre povo" - perdeu dois degraus, serrados para nele se acomodar o papa João Paulo II, e foi mudado, da parede do lado esquerdo para meio do altar-mor.
Debalde procuraremos, nos arredores da cidade - artigo de Túlio Espanca nas mãos e a preciosa colaboração da historiadora Conceição Retorta, da Câmara de Évora - pelas alminhas. Na ponte primitiva do Xarrama; sobre o muro da quinta do Sande; no portão da quinta do Bacelo - nenhum sinal do paralelepídedo azul, rendado e florido, que nas traseiras da quinta do Andrade deveria pedir ainda um P.N.A.M. pelas almas dos que ali pereceram "às mãos dos francezes no anno de 1808".
A poucas centenas de metros de distância da Sé, na Capela dos Ossos ("Nós outros que aqui estamos, pelos vossos esperamos"), a própria funcionária de serviço faz uma pausa na bilheteira para vir observar o túmulo para o qual o fotógrafo do P2 dispara repetidos flashes.
Como se pela primeira vez estivesse a ver que D. Jacinto Carlos da Silveira, bispo titular do Maranhão, evocado na lápide, a meio, diante do altar, pertenceu afinal a alguém "morto pelos inimigos da Pátria no dia 29 de Julho de 1808". Ali mesmo ao lado, na esquina do Largo da Graça com a Rua da República, num palácio hoje residência particular.

Fontes principais: Raul Brandão, El-rei Junot, Atlântida Editora, Coimbra, 1974; Paul Thiébault, Relation de l"expedition de Portugal, Paris, 1817; José Acúrcio das Neves, História geral da invasão dos franceses em Portugal e da restauração deste reino, Edições Afrontamento; J.J. Teixeira Botelho, História Popular da Guerra Peninsular, Lello & Irmão, Editores, Porto, 1915; Túlio Espanca, Évora na Invasão Francesa de 1808, in A Cidade de Évora, Boletim da Comissão Municipal de Turismo, nº 39-40, 1957-58; Frei Manuel do Cenáculo, História descritiva do assalto, entrada e saque da cidade de Évora pelos franceses, em 1808, (Publicação de A.F.Barata) in 4º, Minerva Eborense, Évora, 1887; Padre José Joaquim da Silva, Évora Lastimosa, 1814; Vasco Pulido Valente, Ir Pró Maneta. A Revolta contra os Franceses, Alêtheia Editores, Lisboa, 2007.

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