O homem que gostava de peixe

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Muitas das negociações a que o caso ilustração joão fazenda

Enquanto as autoridades tentam provar os indícios de corrupção no caso Face Oculta, Luís Francisco vestiu a pele de investigador privado e foi conhecer os restaurantes onde os implicados se encontravam. Esta ficção de faca e garfo permitiu chegar a algumas conclusões. Mas não nos adiantemos: como em qualquer boa história policial, o final tem de ser surpresa

Estava no meu gabinete quando ela apareceu. Há coisas que mudam com o passar dos anos, mas outras são eternas. Na minha profissão sabemos bem que as histórias complicadas começam sempre no feminino. Ela entrou e eu tirei rapidamente os pés de cima da mesa - acho que não se deve receber o chefe nesses preparos e eu trato sempre por "chefe" quem me encomenda um serviço. Durante uns breves segundos ela falou e eu fiquei calado. Depois ela calou-se e eu continuei sem dizer nada, já a fazer contas à dimensão da tarefa: fazer o roteiro gastronómico do caso Face Oculta.

(Permitam-me que me apresente: sou grande investigador. E não, não estou a armar-me: "grande" é mesmo o que vem escrito no meu cartão de visita. Estou habituado a que me entrem pela porta dentro histórias e pessoas do arco-da-velha. Mas nunca me tinham feito uma encomenda destas...)

Durante o minuto e meio em que alguma voz ecoou no silêncio pesado daquele final de manhã ela disse-me que a ideia tinha surgido depois dos comentários feitos num programa televisivo pelo advogado Francisco Teixeira da Mota.

(Mulheres e advogados; juntem-lhes aquele bocado de terra ali ao fundo do Mediterrâneo e temos a causa de 99 por cento dos problemas da humanidade...)

O caso envolve um empresário, Manuel José Godinho, acusado de ter engendrado um esquema tentacular para favorecer as suas firmas em negócios com empresas participadas pelo Estado. Nesse sentido, ele terá montado uma rede de contactos, pagando informações a uns, influências a outros, até omissões a alguns. E muitas destas negociatas realizavam-se à mesa.

(O contrário é que seria estranho: em Portugal é tão normal tratar de negócios à mesa como "fazer um jeito" a um amigo. Gostamos de comer e uma boa refeição serve muitas vezes para quebrar o gelo e olear as vontades. Até se dizia que a melhor maneira de fazer bom negócio com estrangeiros era ir adiando a coisa ao longo da manhã e assinar os papéis a seguir ao almoço. Duas garrafinhas de vinho depois, a coisa corria muito melhor. Excepto para o incauto visitante, que no dia seguinte ficava sem saber se a dor de cabeça era da ressaca ou da súbita consciência dos papéis que assinara na véspera, durante a segunda aguardente velha. A última coisa de que se lembra é o outro fazer sinal ao empregado e dizer-lhe: "Agora vamos aqui provar uma maravilha da minha terra que mete qualquer conhaque a um canto.")

Godinho não sabia, mas andava a ser seguido e escutado pelas autoridades. E estas identificam oito locais onde o empresário se encontrava, à mesa, com algumas das pessoas a quem, alegadamente, pedia favores em troca de recompensas pecuniárias ou em género. Três deles ficam na zona de Aveiro, o distrito de residência de Manuel José Godinho; outros quatro em Lisboa, onde se diz que está o poder; e, finalmente, o oitavo é em S. Torpes, Sines.

O primeiro a ser citado no documento da acusação é o restaurante Batista, em Vilar, São Bernardo, Aveiro. Só aparece uma vez, ao contrário do Mercado do Peixe, em Lisboa, visitado quatro vezes. O Concha, na praia do Furadouro, Ovar, e o Ruca"s, em Cacia, completam o trio de casas aveirenses que foram cenário de episódios gastronómicos do caso Face Oculta. Em Lisboa contam-se ainda o Hotel Altis, o Páteo e o Sete Mares (este em três ocasiões). O Bom Petisco, de S. Torpes, Sines, completa o cardápio.

(Na verdade, para além destes oito restaurantes, há ainda referência a um almoço em Vinhais, sem indicação exacta do local. Mas, na terra onde se realiza a Feira do Fumeiro, certamente haveria muito por onde escolher - para mais, o encontro entre Manuel José Godinho e Armando Vara, vice-presidente do BCP e natural de Vinhais, aconteceu a 7 de Fevereiro, um sábado, e a Feira do Fumeiro realiza-se no segundo fim-de-semana desse mês...)

O que terá levado estes homens, acusados de actos ilícitos e de conspirações para fins eticamente reprováveis, a encontrarem-se aqui e não noutros locais? O ambiente? A possibilidade de passarem despercebidos? A proximidade dos seus locais de trabalho (nunca eram jantares, só almoços)? A facilidade de acesso? A qualidade do serviço? A comida? O preço? O acaso?

Eram estas as questões a que havia que dar resposta. É toda uma nova face do caso Face Oculta que se desdobra perante nós. Se este dossier revela na perfeição, como muitos dizem, uma certa forma de fazer negócios em Portugal; se é verdade que nos faz pensar de que forma a tradição do "jeitinho" é a incubadora social da grande corrupção; se, em suma, fornece um retrato do país que somos mas não queremos ser; enfim, se é assim, então sentemo-nos à mesa. Pode ser que com o estômago cheio tudo isto nos custe menos a engolir.

(A tarefa era dura: tinha de juntar toda a informação possível sobre os locais que constavam do roteiro gastronómico do caso Face Oculta. Durante largos meses, os homens fartaram-se de almoçar uns com os outros por esse país fora. Mas eu só tinha uma semana. Meia-dúzia de dias a comer e beber nalguns dos melhores restaurantes do país... Era um trabalho sujo, mas alguém tinha de o fazer.)

Trabalho de campo

Manuel José Godinho terá almoçado duas vezes com Paiva Nunes (vogal da administração da EDP Imobiliária) e António Paulo Costa (quadro superior da Petrogal), mais uma terceira apenas com este último, no restaurante Sete Mares, em Lisboa. É um local simpático, com uma sala interior e uma espécie de marquise gigante avançada sobre o passeio para os fumadores. Acesso fácil. Estacionamento, quase impossível à porta, mas o parque do centro comercial das Twin Towers é mesmo ali ao lado.

Sentamo-nos à mesa e a primeira impressão é a da heterogeneidade da clientela. Há alguns cavalheiros de fato e gravata, mas não estão em maioria. Casais jovens; alguns velhotes, sozinhos ou acompanhados; malta na casa dos 30 vestindo informalmente. Olhando para o cardápio, percebe-se que os preços não são propriamente proibitivos, mas esta não é, certamente, a opção mais barata na zona de Sete Rios/Praça de Espanha. Uma garrafa de espumante Murganheira, que passa a caminho de outra mesa, reforça a sensação de alguma selectividade da clientela.

(Um breve relance pelo cardápio permite encontrar algum equilíbrio entre as propostas de carne e peixe, temperadas pelo marisco que, dizem, faz alguma da fama do sítio. Opto por um polvo à poveira. Dado o tema da investigação, parece-me adequado.)

Mas este não é sítio onde alguém decida encontrar-se às escondidas. A sala interior, balizada pelo enorme tanque dos mariscos que borbulha intensamente, é ampla e a exterior tem janelas para o passeio a toda a largura - mais transparência era difícil... A única coisa que joga a favor de conversas mais sigilosas é o facto de o serviço não ser muito presente, o que não obriga a estar constantemente a mudar de assunto.

O polvo mostra-se generoso em quantidade e qualidade, acompanhado no interior do tacho onde se banha num molho escuro e espesso por batatas, grelos, tomate e camarões. Outra das referências da casa é o leitão, assado com o cuidado e a sapiência destacados por vários críticos gastronómicos. Mas o leitão está esgotado... Ou não. Na mesa ao lado, dois cavalheiros que chegaram mais tarde acabam por se deliciar com uma travessa de nacos do pequeno reco. Terão encomendado com antecedência.

(Não, isto não é sítio para estar às escondidas. Até porque é frequentado por muita gente do círculo do poder. Ainda agora à saída vi um secretário de Estado a acabar a sua refeição...)

Para maior recolhimento, o Hotel Altis é uma boa alternativa. Certamente não no Restaurante Girassol, no 2.º andar - nunca se viu um homem estar a tratar de negócios e ter de se levantar para ir ao buffet... Mas o Grill D. Fernando, com a sua gastronomia de eleição e as vistas de cortar a respiração sobre a colina do castelo de São Jorge, esse sim é um palco para grandes acontecimentos.

Em termos gastronómicos, o texto promocional da cadeia Altis na Internet fala no "melhor da cozinha tradicional portuguesa, com especial destaque para a variedade de peixes frescos da nossa costa". E salienta que, para "uma refeição mais reservada", os clientes podem optar "por uma das salas privadas".

(Foi neste local que, segundo os investigadores, Manuel José Godinho almoçou uma vez, em Maio, com Paiva Nunes e António Paulo Costa, os mesmos que levou ao Sete Mares nos meses seguintes. Depois de um primeiro encontro mais recatado, a relação foi assumida?)

Sempre o peixe

Em Lisboa, o outro palco secundário da trama do caso Face Oculta, ainda e sempre gastronomicamente falando, é o restaurante Páteo, em Marvila. Os investigadores dizem que foi lá que Manuel José Godinho almoçou, a 22 de Junho, com António Paulo Costa, Manuel Rodrigues e João Moita, mais dois contactos para a rede de influências que está acusado de montar. É um local arejado e com uma decoração muito característica, à imagem de um bairro típico lisboeta.

(Aqui é que eu não tinha conversas comprometedoras: caramba, uma pessoa descuida-se e parece que há gente pendurada nas janelas e nas varandas a ouvir tudo... Na verdade, são cenários pintados, mas não deve ser muito reconfortante para quem passa a vida a olhar por cima do ombro. Ou será que eles não se sentiam desconfortáveis?)

Se António Paulo Costa foi para o restaurante ao volante do Mercedes que lhe terá sido oferecido cinco dias antes por Godinho na praia do Furadouro, dificilmente conseguiu estacionar à porta. Apesar de a rua ser sossegada, ali nas traseiras da Avenida Infante D. Henrique e reconfortantemente vizinha dos Cafés Delta e da vinícola Abel Pereira da Fonseca, não há muitos lugares para deixar o carro.

Aqui a ementa equilibra pratos de carne tradicionais da gastronomia portuguesa (rojões, posta mirandesa, cabrito assado, costeletas de porco preto com migas) com sugestões do mar, devidamente preparadas no tacho ou tabuleiro (feijoada de búzios, massada de cherne, arroz de garoupa, polvo à lagareiro). O serviço é rápido e prestável, a atmosfera bastante descontraída, como convém num cenário popular. E os preços não assustam.

Parece uma lista de opostos do que sucede no quarto - e mais relevante - restaurante lisboeta desta história. O Mercado do Peixe, na Ajuda, aposta claramente na grelha e numa política de qualidade/preço que afasta a clientela mais dada a fazer contas ao fim da refeição. E, já agora, existe parque de estacionamento privativo. Um rápido olhar aos modelos estacionados permite tirar rápidas - e certeiras - conclusões sobre o, pelo menos aparente, nível de desafogo financeiro de quem se senta lá dentro.

(Olhando pela janela da minha mesa, o cenário era impressionante: Mercedes, BMW, BMW, Saab, Audi, BMW... O meu utilitário ficou tão envergonhado que, no final da refeição, não o encontrava em lado nenhum. Acabei por topá-lo lá ao fundo, meio escondido por uma árvore. Coitado...)

O ritual é sempre o mesmo: entramos e desfilamos perante uma banca de peixe e mariscos para escolher a refeição - entrada e prato principal. É uma visão impressionante, mesmo para quem não tenha a paixão pelo peixe fresco, este baixo-relevo formado por exemplares notáveis de robalo, dourada, sargo, pargo, linguado, pregado, corvina, cherne, salmonete. Todos alinhados numa frescura que nos leva a pensar que a qualquer momento nos vão saltar para o colo...

Ali ao lado, camarões-tigre, carabineiros e amêijoas oferecem-se à gula para entrada. Irresistível. Junte-se a tudo isto a qualidade irrepreensível dos acompanhamentos (umas batatinhas assadas no forno que são um mimo e uma salada mista de pimentos, tomate, cebola e batata) e tudo se conjuga para uma refeição inesquecível, numa sala apesar de tudo capaz de conter as muitas conversas, mas com um serviço de rapidez oscilante - como o peixe tem de passar pela grelha, os primeiros a chegar e a pedir são servidos depressa, mas os retardatários farão bem em ocupar o tempo com algumas entradas e um copo de vinho.

A este nível, numa garrafeira repleta de opções a várias dezenas de euros (e estamos a falar de vinhos brancos...), é impossível não notar uma inflação despropositada dos preços. Como exemplo, uma garrafa pequena de Planalto paga-se a 9,50 euros, quando o mesmo vinho, no supermercado, custa menos de um terço disso - no Continente on-line paga-se a 2,84 euros.

(Bom, chefe, tenho de confessar: almocei acompanhado. Num sítio daqueles não se come sozinho. A cerimónia de apreciar um robalo de dois quilos não é coisa para se fazer a solo e os peixes da "lota" são, por norma, muito grandes. Na nossa mesa apareceram dois salmonetes, excelentes, e um linguado, ligeiramente seco. A aclamada mestria dos homens da grelha do Mercado do Peixe teve aqui um momento infeliz...)

No final, a acompanhar o café, pudemos apreciar um pastel de nata acabado de fazer e que é uma maravilha! Manuel José Godinho almoçou aqui quatro vezes com alguns dos envolvidos no caso Face Oculta. Não sabemos se usaram os babetes que alguns dos convivas envergam para não salpicarem as gravatas e camisas de seda, mas temos quase a certeza de que o restaurante foi do agrado do empresário de Ovar.

(E até digo mais: quem não acredita que os criminosos voltam sempre ao local do crime é porque nunca provou estes pastéis de nata...)

À volta de Aveiro

A etapa seguinte do roteiro leva-nos ao território autóctone de Manuel José Godinho. Num dia de nevoeiro e chuva, rumo a Aveiro, para conhecer mais três restaurantes onde os investigadores registaram encontros entre os envolvidos no caso Face Oculta. Primeira paragem: Cacia, ali mesmo junto ao rio Vouga. Chove a cântaros e pouco passa do meio-dia. O Ruca"s está praticamente vazio, mesas postas, ambiente sossegado. Mas já não há lugares disponíveis na sala de refeições, só junto ao balcão.

Ajudada por um branco da casa de Vila Nova de Tazem, uma espectacular broa de milho acompanhada de azeitonas com azeite e alho abre caminho aos carapauzinhos com arroz de feijão. Não são "jaquinzinhos", minúsculos, são mesmo carapaus pequenos, mas muito bem fritos. O arroz, malandrinho, tem personalidade muito própria, pelo que caberá a cada um decidir sobre os seus méritos. Um adjectivo, pelo menos, será incontornável: intenso. Os pratos de carne dominam a ementa, onde há duas sugestões de polvo: na versão cozida e em arroz.

A clientela vai chegando, naquele ambiente caseiro que não se explica, só se sente. Uma hora depois, muitas mesas lá dentro continuam à espera de quem nelas se sente - o que significa duas coisas: por estas bandas almoça-se tarde e os proprietários são fiéis ao seu compromisso, não sentando nesses lugares gente que chega mais cedo e que poderia sair antes da hora agendada com os clientes habituais. Há aqui uma atmosfera de tranquila nobreza que o visual exterior do edifício (uma estranha fachada lisa de tijoleira laranja ornamentada com as letras metálicas que formam o nome da casa) não faria supor.

Diz-se que aqui só vêm os da terra. Manuel José Godinho foi lá uma vez, no final de Agosto, mas nem uma expressão, nem um comentário quando a cara do empresário ovarense aparece no noticiário, a propósito de mais uma sessão de interrogatório no Tribunal de Aveiro...

(Com esta chuva e a tranquilidade que vive neste lugar não apetece nada sair. O empregado, vendo-me apressado, garante-me que tenho "todo o tempo do mundo", mas não é verdade. Esta vida de investigador gastronómico inclui violências como almoçar duas vezes no mesmo dia...)

Se chegar ao Ruca"s não tem que enganar, já o Batista, justamente cognominado "do Bacalhau", como haveremos de comprovar em breve, exige artes de navegação dignas de um Paris-Dakar. Ruas e ruelas de casinhas pequenas, desviar de Aveiro para São Bernardo, daí para Vilar e, em Vilar, confiar na sorte, nas indicações dos passantes e nos pequenos sinais em forma de fiel amigo pendurados nos postes (o que, num dia de chuva, não é grande ajuda).

Mas lá chegamos. São quase 14h e uma multidão ruidosa enche quase por completo a sala de planta quadrangular e tecto alto. Lá fora, carros e mais carros neste fim-do-mundo; cá dentro... bom, cá dentro manda o bacalhau. Venha ele, assado, com batatas e cebola, num banho de azeite. Impressionante: uma posta com 30cm de comprimento por 10 de largura e uns quase inacreditáveis cinco centímetros de altura. A textura, quase leitosa, mostra cuidados atentos na demolha e uma assadura vigiada ao pormenor. Pena as batatas, algumas delas muito mirradas, não estarem à altura...

Acompanha-se com um tinto da casa, de sugestivo nome Sem Espinhas... "Já que o bacalhau as tem....", atira um empregado, interrompendo com esta explicação a sua correria permanente pela sala. É este o primeiro restaurante referenciado pela investigação do caso Face Oculta e apetecia fechar o círculo, terminando por aqui. Mas não pode ser.

(Ó chefe, garanto-lhe: aquilo é sítio para ter uma aguardente caseira, um licor da avó, aquelas preciosidades que dá sempre gosto descobrir. Mas ainda faltava dar um salto à praia do Furadouro, para espreitar o Concha, ali bem perto da residência do protagonista desta história. E o meu reforço chegado do Porto tinha de se apresentar ao serviço...)

Impressões finais

De São Bernardo a Ovar (e daí à praia do Furadouro), há que apanhar a A29 e depois seguir pela estrada que leva ao pequeno aglomerado urbano à beira-mar. É aqui que mora Manuel José Godinho e é aqui que se situa o Concha, comummente afamado pelas suas sardinhas assadas e local referenciado pelo processo como tendo sido palco de um almoço que reuniu o empresário, o seu sobrinho, João Godinho, e Carlos de Vasconcellos, quadro da Refer. Foi a 23 de Abril e a refeição durou apenas 1 hora e 5 minutos, o que pode dar uma boa indicação sobre a velocidade do serviço...

No quadriculado de ruas da praia do Furadouro, não é difícil dar com o Concha, o letreiro laranja com caracteres pretos ali a um passo do mar. Pelos dias que correm, o que mais impressiona é o barulho das escavadoras que amontoam calhaus para formar pontões e reforçar as protecções da estrada marginal. Dezenas de mirones resistem ao vento e à ameaça de chuva da tarde cinzenta para apreciarem o virtuosismo dos maquinistas no encaixe destas gigantescas e irregulares peças de Lego.

(Bom, dito isto, há que reconhecer que cheguei tarde e o Concha estava fechado. Também não seria capaz de almoçar uma terceira vez... Mas deu para perceber pelo cardápio do lado de fora da porta que o forte da casa é o peixe fresco na grelha. Desculpe a fixação, ó chefe, mas também tem polvo grelhado.)

O que nos leva bem mais a sul, até à estrada marginal que liga Sines a Porto Covo. É aqui, nesta faixa de belas praias e dunas serenas, que fica o último restaurante referenciado no processo. O Bom Petisco é afamado pelo seu peixe grelhado - e não é fácil ser-se considerado o melhor numa zona onde colocar os frutos do mar sobre o carvão é quase uma religião... Em menos de um quilómetro, poderíamos ainda falar no Luís, junto à central termo-eléctrica, ou no Arte & Sal, portas-meias com o Bom Petisco.

Quando Manuel José Godinho virou as suas atenções para o complexo industrial de Sines, a opção gastronómica recaiu, como já se pode adivinhar por tudo o que atrás ficou dito, sobre um palco com grandes tradições na confecção de peixe fresco. A 21 de Abril almoçou aí com João Manuel Tomás Tavares, chefe de armazém da Petrogal, tendo como pano de fundo uma paisagem revigorante e o sossego característico do Alentejo fora do bulício do Verão.

(É preciso assumir que, desta vez, não consegui visitar o Bom Petisco. Muitos restaurantes, ainda mais quilómetros, poucos dias... Mas este é sítio que já conheço há muito. Comi aí provavelmente o melhor sargo no carvão que se me foi dado saborear e, além disso, tinha uma fixação muito especial por uma sobremesa de tabuleiro - meio gelado, meio bolo - que por lá serviam. E, com isto, creio estar em condições de enunciar as conclusões do meu trabalho. Vou telefonar à chefe.)

Conclusões

- Sim, chefe, está feito. Olhe, de uma coisa podemos ter a certeza: o homem gostava de peixe. Sempre que pôde, escolheu restaurantes especializados em peixe fresco, nomeadamente no carvão. Se os outros partilhavam ou não desta paixão, não lhe sei dizer. Mas presumo que fosse o Godinho a pagar a conta...

- Claro, há também um padrão de preços. Mas não é assim uma coisa de assustar. Tirando o Hotel Altis e o Mercado do Peixe, que são realmente locais de elite, os outros são bons restaurantes de nível médio-alto ou casas localmente afamadas onde vai toda a gente - no Batista ou no Ruca"s, por exemplo, almoça-se por 15 euros. Em Lisboa, claro, estes locais seriam certamente mais caros.

- Outra coisa que se nota é que os homens não andavam a esconder-se. Apesar de alguns dos locais estarem mal referenciados pelos investigadores (O Batista, em vez de Batista; A Concha, em vez de Concha), todos são muito frequentados. Quem lá vai vê e é visto. A minha conclusão é que a relação era assumida como pessoal ou, pelo menos, não parecia haver necessidade de esconder a existência de contactos profissionais.

- E é muito isto, chefe. Tirando a piada fácil de se constatar que existem pratos de polvo em quase todos eles...

- Claro, isto é um assunto sério, desculpe. Olhe chefe, muito a sério, só há uma conclusão possível para esta investigação: os homens gostavam de comer bem. Também nisso são muito portugueses.

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