Na catedral do jornalismo

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Chegada à redacção do jornalista de investigação Michael Moss (Pulitzer em 2010). Qualidade é a resposta para criar jornalismo vendável, estão de acordo os jornalistas do NYT, partidários ou não de Jill Abramson, a agora directora que sucedeu a Bill Keller Todd Plitt/corbis

Jill Abramson é a primeira mulher à frente do New York Times. Tem 57 anos, é dura e quer mostrar o que vale. Enfrenta o desafio de dirigir o diário mais influente do mundo num momento decisivo para o futuro do jornalismo. Publicou recentemente um livro sobre o seu cão

Jill Abramson, a primeira directora do New York Times, ia para um ginásio no centro de Manhattan, numa manhã de Maio de 2007, quando foi atropelada por um camião-frigorífico. Fractura da bacia e perna, lesões internas, transfusões de sangue, placas de metal, três semanas no hospital, meses numa cadeira de rodas, depois muletas, depois uma bengala. Um ano mais tarde estava a escalar uma montanha no parque nacional de Yellowstone. Tropeçou, caiu por uma ladeira, rompeu o pulso e deslocou o ombro. Tiveram de a levar de helicóptero para o hospital, onde os cirurgiões lhe introduziram mais uma placa.

Jane Mayer, amiga íntima de Abramson e correspondente do New York Times (NYT) em Washington, insistia numa entrevista que continua a ser difícil encontrar uma mulher que ocupe um cargo importante em qualquer empresa ou instituição a quem não se chame "dama de ferro". Abramson é-o de forma literal e figurado. Os seus colegas consideram-na dura, tenaz, adora desafios, é uma mulher que precisa de mostrar o que vale.

Depois de um acidente que esteve quase a matá-la e que a fez pensar que nunca mais voltaria a andar, teve de mostrar que os seus ossos reconstruídos eram capazes de escalar montanhas. Hoje, está empenhada em provar que uma mulher pode assumir e conquistar o cargo mais importante no jornal mais admirado do mundo numa era informativa dominada pela Internet, quando o futuro do sector seria incerto mesmo se não houvesse crise económica; quando a sobrevivência do jornalismo, tal como o conhecemos, está em dúvida, e quando estar à frente do NYT exige mais horas de trabalho, mais versatilidade e mais acutilância que em qualquer outra altura, provavelmente desde a fundação do jornal, há 160 anos.

O desafio é tão grande que me pareceu natural perguntar-lhe, numa entrevista que decorreu no seu escritório dois meses depois de ter assumido o cargo de directora, se o facto de ter sido atropelada por um camião e depois ter caído de uma montanha a levou a rever as suas prioridades, a pensar em moderar as suas ambições terrenas, ou até a abandonar o jornalismo diário. A pergunta pareceu-lhe absurda. "Farta do jornalismo?", respondeu, incrédula. "Farta da vida?"

A sua resposta não tinha a menor ponta de ironia. O jornalismo, sem sombra de dúvida, é muito mais do que um trabalho para ela; é uma vocação. Como a ordenação é sagrada para um sacerdote. Reconheceu-o praticamente na nossa entrevista ao assinalar que o NYT foi para si, desde muito jovem, "como uma religião", o que imediatamente reforçou a impressão que se tem enquanto jornalista europeu: os nossos homólogos norte-americanos, e especialmente os 1200 que trabalham para o NYT, são fundamentalmente diferentes de nós. Na seriedade com que se vêem a si próprios, no seu sentimento de pertencer a um povo eleito. Poderão ser irreverentes em alguns casos, mas no fundo acreditam que chegaram ao cume de uma profissão que contemplam com altíssimo grado e seriedade ética.

A indignada espontaneidade da resposta de Abramson à minha pergunta, a imagem religiosa que elegeu para descrever a sua relação com o diário, serviu para reforçar o solene estereótipo. E para confirmar a sua idoneidade espiritual como defensora da fé, como titular de um cargo que contém, para a maior parte do mundo jornalístico norte-americano e alguns admiradores noutros países, um prestígio e uma autoridade papal.

No entanto, não existe qualquer pompa nem no seu porte, nem no escritório a partir do qual governa. Afastado num canto anódino da cavernosa e arquitectonicamente vanguardista redacção de aço e vidro para a qual o NYT se mudou em 2007, depois de abandonar o obsoleto edifício que ocupou durante os 100 anos anteriores, o posto de comando de Abramson é uma cela monacal em comparação com os ostensivos aposentos com os quais directores menos importantes em Manhattan recompensam os seus triunfos. Uma secretária conduziu-me até ali e deixou-me sozinho uns minutos folheando o livro que Abramson acabava de publicar, quando silenciosamente, sem que me desse conta, ela entrou.

De 57 anos, baixa e esbelta (a pessoa mais baixa da sala onde depois assistimos a uma reunião para decidir a primeira página), com o cabelo cuidadosamente penteado em torno de um rosto oval, sentou-se num sofá que poderia ser do IKEA sem sequer se apresentar nem perguntar-me o nome, nem fazer questão em estender-me a mão. A única coisa que disse foi "olá".

Não é tímida, mas segura de si mesma, esteve sentada durante toda a entrevista com as pernas cruzadas como um homem, o salto do sapato direito sobre o salto esquerdo. Muito de vez em quando soltava uma risada seca e ligeira, mas de resto manteve-se serena como um monge, ou uma freira, não fosse a sua roupa elegante e discreta e o lenço de seda de tons verdes e violetas, próprios de vitrais de igreja. Sentei-me noutro sofá, perpendicular a ela, e perguntei-lhe sobre o seu livro, o primeiro que escreveu sozinha (há tempos tinha escrito um com a sua amiga Jane Mayer sobre o escândalo do juiz de Washington Clarence Thomas).

Para alguém cuja carreira jornalística se centrou em explicar os labirintos da política de Washington, este livro parecia representar um certo desvio profissional, sugeri. "Efectivamente", foi a segunda palavra que a ouvi pronunciar. O livro, The Puppy Diaries: Raising a Dog Named Scout (Diários de Um Cachorro: Criar Um Cão Chamado Scout), tem uma fotografia de um jovem golden retriever na capa. Era-me difícil imaginar, disse-lhe eu, um director do NYT a escrever um livro sobre a "complexidade" das relações entre os seres humanos e os cães. "Talvez", respondeu. "Escrevi-o a partir de um blogue que tinha na nossa página na Internet no meu cargo anterior, de directora adjunta. Costumava matar de tédio os outros redactores com histórias do nosso cachorro. Um falou-me da necessidade de ampliar a nossa cobertura do mundo animal, e foi aí que tudo começou. Mas sim, seguramente foi... um pouco invulgar. Porque eu sou jornalista de investigação."

E não existe nada mais sério do que ser jornalista de investigação no NYT, uma missão que exige a tenacidade de um detective e o rigor legal de um juiz de uma alta instância. Essa foi a essência do posto que ocupou em Washington para o Wall Street Journal durante nove anos, e durante outros seis depois de entrar para o NYT em 1997 e, com o tempo, converter-se na chefe da delegação do diário em Washington, antes de ascender em 2003 ao segundo posto do jornal, o de directora adjunta.

Escrever um blogue e depois um livro sobre o seu cachorro, no meio de tudo isto, demonstra ousadia. Atreveu-se a mostrar, no mundo até agora rígido e masculino do NYT, uma sensibilidade manifestamente terna. (No livro não se coíbe de empregar expressões como "adorar", "loucamente apaixonada" e "pura felicidade" para descrever a sua relação com o cão.)

Seria politicamente incorrecto, lancei-lhe, perguntar se, como mulher, levava uma nova dimensão ao cargo de director? "Não, não é politicamente incorrecto", respondeu. Mas também não achava que a sua visão de mulher introduzisse alguma coisa de novo na selecção editorial. "Quero levar os leitores aos bastidores quando ocorrem grandes acontecimentos e dar-lhes uma ideia do que realmente aconteceu na sala. Mas não creio que se possa dizer que as notícias de primeira página estão lá porque sou mulher."

Dito isto, ser a primeira mulher que manda num diário com 160 anos de vida é uma coisa que considera ser extremamente importante. "Estou incrivelmente orgulhosa de ser a primeira mulher nomeada como directora do NYT, assumo esta parte da história carregada de significado, e comovi-me muito ao ver quantas mulheres - e homens também - da profissão se emocionaram com isso."

Um sinal do significado que Abramson dá à história, e à sua nomeação, é a fotografia emoldurada no seu escritório de directora adjunta da terceira mulher jornalista que trabalhou para o NYT, no início do século passado. Houve poucos progressos para as mulheres até 1974, quando as jornalistas do diário (10% da redacção) apresentaram uma queixa colectiva contra o jornalpor discriminação. As mulheres ganharam, mas foram necessários mais 13 anos para que uma delas, Soma Golden, ascendesse a um posto de responsabilidade na parte da informação "séria" (e não nas secções de "vida", "estilo" e "jogos") como redactora principal do nacional.

Foi um grande avanço, mas não uma reviravolta transcendental. Quando Joe Lelyveld assumiu a direcção do jornal, em 1994, ficou envergonhado ao ver que nas reuniões da redacção estavam presentes poucas mulheres, ou nenhuma. O dilema, disse, não lhe saía da cabeça. E levou-o a cometer erros. "Promovi mulheres, mas nem sempre as melhores, e quando fracassavam, ou quando eram impopulares, era terrível", recorda. Mas contratar Abramson acabou por ser uma decisão muito acertada. "Era uma grande correspondente em Washington, com grandes capacidades de investigação", diz Lelyveld. "Apoiei a oportunidade de a contratar, e não só porque era boa, mas porque no fundo pensei que acabaria num posto de direcção."

E assim foi. Tornou-se directora adjunta às ordens de Bill Keller, que passou a director em 2003. Abramson não deixou que os seus êxitos a impedissem de ver que ainda havia batalhas por travar. Os colegas recordam-na na redacção fazendo comentários irónicos sobre a ausência de mulheres nas instâncias superiores. Na recensão de um livro publicada em 2006 escreveu sobre as mulheres jornalistas: "Nota-se a nossa ausência nas chefias, nas páginas de opinião e nas primeiras páginas das grandes publicações."

Já não. Hoje, mais de 40% dos principais cargos do jornal estão ocupados por mulheres. A propósito do anúncio da sua nomeação como motivo de celebração para as mulheres, Abramson telefonou a Soma Golden, já jubilada, na noite de 1 de Junho de 2011 e pediu-lhe que fosse assistir à sua promoção na redacção do NYT no dia seguinte. Voltou a pensar na história. Iria assumir o cargo graças a si própria, porque era ambiciosa; iria assumi-lo pela sua devoção à causa; mas também assumi-lo pelas mulheres do mundo. "Sim", disse Golden, encantada por ter sido convidada. "Não havia dúvidas de que havia alguma solidariedade feminina nisso."

Talvez também tenha havido algum simbolismo solidário na decisão de Abramson de levar um vestido preto de Verão para a ocasião, em vez de calças. Mas a solidariedade feminina não esteve necessariamente em evidência na cerimónia, durante a qual, segundo recorda uma jornalista do diário, o ambiente predominante, inclusivamente entre as mulheres, mais do que celebração pela nomeação de Abramson, era de pena pela saída de Bill Keller, que decidiu retirar-se voluntariamente para se dedicar à escrita.

Na opinião de todos, Keller, que obteve um Pulitzer de jornalismo durante a sua época de correspondente em Moscovo, foi capaz de manter estável o barco durante um período económico turbulento no NYT ("tempos de medo e de pânico", como classificou um jornalista veterano), provocado, como em toda a imprensa, pelo desaparecimento de jornais impressos e uma caída das receitas de publicidade que não foi compensada pela expansão da Internet, que, ao dar acesso gratuito, teve o efeito perverso de aumentar o número de leitores mas reduzir as vendas.

Hoje, no meio de um cenário desolador de jornais mortos ou moribundos nos Estados Unidos, o NYT mantém-se, lesionado mas erguido. "Depois de anos a dedicar-se a escrever necrologias prematuras ou até a aplaudir a nossa morte, creio que passámos de um desânimo terrível para um ponto em que as coisas estão estáveis e confiamos na nossa sobrevivência", diz Keller, expressando a opinião generalizada nas suas antigas tropas aliviadas.

Enquanto velhos rivais como o Washington Post e o Chicago Tribune eliminaram quase por completo os correspondentes, o NYT tem quase tantos como antes de Keller assumir a direcção. Embora não exista margem para autocomplacência, como diz Keller, actualmente o jornal faz mais dinheiro do que aquele que gasta. Um dos factores para isso, importante e animador, é que a decisão tomada há um ano de cobrar o pleno acesso à página electrónica do jornal resultou num êxito, apesar de todos os avisos em contrário. O número de assinantes na Internet aproxima-se dos 300 mil e, se juntarmos os assinantes do jornal em papel, o total são uns sólidos 850 mil.

Por estes motivos, e também porque Keller era considerado uma pessoa inteligente e justa, a nomeação de Abramson não foi recebida com alegria imediata entre os redactores. Quanto aos seus méritos intrínsecos para o cargo, as opiniões dividiam-se. Um indício do que as pessoas pensam é dado pelas reacções à publicação do livro sobre o cão. Para os que estão contra, é ridículo; para os que estão a favor, é sinal de uma extraordinária segurança em si própria.

Em conversas ferozmente off the record (apesar do mortificante que é para os jornalistas, logo eles, rebaixarem-se a tal cobardia), a atitude dos detractores é a de que Abramson não é uma grande intelectual, em contraste com a opinião geral sobre Keller e Lelyveld; que não é uma jornalista de investigação tão boa como pensa (não tem nenhum Pulitzer no currículo); que foi chefe da delegação em Washington num período em que, para muitos, o jornal não foi capaz de propor argumentos contundentes contra a guerra do Presidente George W. Bush no Iraque; que é uma manipuladora política; que, também ao contrário de Keller e Lelyveld, e da maioria dos directores executivos dos últimos 50 anos, não tem nenhuma experiência como correspondente no estrangeiro; que passa demasiado tempo prestando uma frívola atenção à cultura popular através do canal Entertainment Television; que é distante, temperamental e não sabe ouvir.

Os que estão a favor da sua nomeação (falei com uma dezena de jornalistas que a conhecem) opinam que é extremamente inteligente; que esteve muito bem como directora adjunta; que ter astúcia política e ascender ao topo de uma empresa são duas coisas que vêm juntas; que como chefe da delegação em Washington não teve outro remédio senão adquirir conhecimentos da política externa; e que a responsabilidade de qualquer falha em relação à guerra no Iraque é de todo o jornal e não sua. Quanto aos seus interesses frívolos e à tendência para a cultura popular, os seus partidários consideram-nos prova da seriedade com que encara um trabalho que exige aprender sobre a variedade de temas que surgem na Internet.

No que tanto os partidários como os opositores estão de acordo é que tem fama de ser distante e temperamental, para além de não saber escutar. Ela tem consciência disso e já tomou medidas. Em primeiro lugar, nomeando Dean Baquet, negro, como seu "número dois". Baquet é sociável e simpático, e é amplamente respeitado no jornal; segundo, cumprindo em parte uma promessa que incluiu no seu discurso de posse, de ser acessível a todos. Não se deixa ver na redacção tanto como alguns esperavam, mas insistiu (talvez aplicando os seus conhecimentos de criadora de um cachorro) em recompensar a boa conduta, por exemplo, enviando emails de felicitação aos que fizeram um trabalho excepcionalmente bom. Isto não era habitual com o regime anterior, e até alguns repórteres veteranos confessam que apreciam essas palmadas digitais nas costas.

Por outro lado, não seria próprio do estilo de Abramson mostrar-se afável com os seus subordinados em pessoa. Ela mesma conta no livro sobre o cão que a sua irmã lhe disse uma vez: "Foste uma mãe maravilhosa, mas nunca te vi tão carinhosa nem expressiva com ninguém como com este cão." "É verdade", escreve Abramson. E reconhece que a sua relação sentimental com o seu cachorro parece dar-lhe "um certificado de pessoa melhor".

Existe outra história de que poucos fora do seu círculo íntimo ouviram falar e que parece indicar que tem mais de amável do que dizem os seus detractores. Jane Mayer contou-me que Abramson e o seu marido, Henry Griggs, um colega de turma em Harvard com quem está casada há 30 anos, têm um "filho adoptado" ou algo muito parecido.

O filho de Abramson, Will (tem também uma filha, Cornelia), tinha um amigo próximo chamado William Woodson, colega na escola pública que frequentava, na área de Washington. William era um rapaz negro cuja família vinha de Anacostia, um bairro pobre, totalmente negro, separado de Washington DC por uma ponte (muito parecido com o que era o Soweto relativamente a Joanesburgo durante os anos do apartheid, à excepção da ponte). Quando William acabava de entrar no ensino secundário, a sua família teve de regressar a Anacostia. Isso significava que iria deixar a escola e iria ter um pior nível de ensino do que aquele que tinha no excelente centro onde estava com Will.

Jill Abramson propôs uma solução. William iria viver com ela e a família e, dessa forma, terminar os estudos numa boa escola. Fê-lo durante sete anos. "William", diz Jane Mayer, "era como o terceiro filho de Jill. Ela até contribuiu para pagar a sua matrícula na universidade e ajudou-o a conseguir um bom trabalho. Creio que gosta tanto dele como dos seus filhos. Ainda hoje vai com frequência a sua casa, no Connecticut. Mas em momento algum quis chamar a atenção para a sua relação com ele".

As facetas privadas de Abramson contrastam claramente com a imagem de "dama de ferro" que, diz Mayer, suscitam as mulheres em cargos de poder. As mulheres que têm autoridade em grandes organizações debatem-se com a questão de como dirigir as pessoas sem serem vistas como antipáticas, "como ser chefes sem serem mandonas", nas palavras de Mayer.

Nisso, a sua aparente segurança em si mesma é-lhe muito útil, essa atitude franca que vi na entrevista e que Mayer presenciou quando trabalharam juntas no seu livro, há quase 20 anos. "Era mais directa que eu na hora de fazer perguntas, ia mais ao âmago, tinha mais alma de repórter." E era também, pôde ver Mayer, "uma força intelectual, apaixonada por política e pelos mecanismos de poder".

Agora está numa posição que lhe permite dar uso prático a estes conhecimentos. E fê-lo, pelo menos, num aspecto importante. "Nenhum dos seus antecessores impôs tantas mudanças tão rapidamente", disse-me um jornalista veterano do NYT. Logo a seguir a tomar posse em Setembro passado, propôs-se a limpar as cúpulas da direcção do jornal para transmitir a mensagem inequívoca de que o passado era passado e agora era ela a mandar.

No entanto, uma das críticas que se lhe apontam é que, na sua tentativa de mostrar força, mostrou debilidade. Na redacção existe a opinião de que se rodeou de pessoas que lhe eram leais, e isso provocou a acusação, que se costuma fazer contra os políticos, de que escolheu como pessoas de confiança homens e mulheres que dizem sim a tudo e não os mais apropriados para o trabalho.

A ser assim, e alguns no jornal discutem-no, trata-se de uma visível manobra de poder que muitas vezes denuncia uma insegurança de fundo. Uma insegurança a que ela, resoluta, não é de todo alheia. No Verão passado, estalou por momentos o verniz de pessoa dura que se esforça por fazer transparecer: numa reunião de jornalistas dos media de Nova Iorque escapou-lhe que estava preocupada com a forma como iria desempenhar o seu novo trabalho. "Quero fazê-lo bem", disse, "e às vezes preocupa-me que não seja capaz".

Parte da preocupação, sugeri, poderia partir do medo de que um fracasso pudesse vir a ser não apenas um golpe para ela, como para todas as mulheres. A primeira palavra da sua resposta foi a mesma que usou quando lhe perguntei se seria uma surpresa um director homem do NYT escrever um livro sobre um cão. "Quem sabe", respondeu; uma forma codificada, clara e sonora, de dizer "sim". "Quem sabe se seria, mas creio que uma pessoa vem trabalhar todos os dias decidida a triunfar e a fazê-lo bem, e estou consciente, depois de décadas no jornalismo, de que aparecem sempre crises; calharam-me algumas e aprendi com elas... Acho que sou a jornalista adequada para neste momento desempenhar este cargo."

E um dos motivos é o facto de, quando era directora adjunta, ter passado seis meses a trabalhar estreitamente com a secção online do jornal. É aí que hoje concentra a maior parte da sua atenção. Em virtude do êxito ou do fracasso da aventura digital, de funcionar ou não como negócio, se medirá o seu êxito ou o seu fracasso. Não haja ilusões. As águas por que navega o NYT, como todos os jornais, são imprevisíveis, como Abramson reconheceu quando lhe perguntei se estava preparada para as rochas traiçoeiras que a aguardam. "Estou preparada para as rochas e até para os icebergues e coisas piores", disse.

Então, onde está o NYT agora? Como define o momento que vive o jornal? "É uma transição, e estamos totalmente no meio dela. Temos o rumo traçado e fixámos os nossos valores." Abramson tem um mantra que repetiu três vezes na entrevista. Disse que os valores fundamentais são "informação rigorosa, edição inteligente e redacção elegante". Óptimo, afirmei. Mas não há aqui uma contradição? Para começar, a mistura do multimédia não prejudica a elegância da palavra escrita? Respondeu que não. Afirmou que numa página Web do diário que dirige, que é "uma maravilha da inovação", as partes de áudio e vídeo inseridas nas notícias podem "intensificar o efeito" e "adornar" a interpretação e a sensação que o leitor retira do que se está a falar.

Mas, uma vez criada esta mistura, o leitor deixa de ser um mero leitor para se tornar espectador e ouvinte, e os sons e imagens em movimento podem substituir a possível falta de elegância ou profundidade descritiva do jornalista. Abramson não concordou e insistiu em que colocar algo na página Web do NYT, número um do ranking mundial de jornais, com 46 milhões de visitas por mês, é a inveja de todos na nossa profissão, e converteu-se numa parte fundamental da vida de tanta gente em todo o mundo": a experiência digital, em vez de prejudicar a natureza do produto, melhorou-a.

Quer isto dizer, perguntei-lhe, que hoje, ao contratar um novo jornalista, olha além das capacidades jornalísticas tradicionais e procura pessoas capazes de filmar vídeo ou que conheçam a escrita html? "O que procuro, antes de tudo, é o talento para contar histórias com detalhes e podermos imaginar nas nossas cabeças como se passou a acção. Quero os melhores investigadores e os melhores narradores, e não me sento aqui a perguntar que experiência de vídeo têm nem se são peritos em html 5. Mas isso também me interessa e quando alguém está à vontade com os multimédia, o vídeo, ou qualquer formato digital, impressiona-me e acho imediatamente atraente."

Como dizia Abramson, este é um momento de transição. Revendo a evolução do seu jornal nos últimos anos, parece que as confusões inerentes a todas as transições conseguiram alcançar esses valores inerentes que definiu. Não só a elegância da palavra escrita, como também os outros princípios do seu mantra.

Fixemo-nos na "informação rigorosa". O jornal sempre se regeu pelo princípio de que esta exige uma rígida separação entre notícia e opinião. Abramson afirmou que combinar ambas era um costume europeu. "Na Europa, a tradição é diferente, porque a fronteira entre notícias e opinião não é tão nítida."

Como prova da pureza do seu diário neste aspecto, mencionou o facto de, de acordo com as competências do seu posto, não ter qualquer palavra a dizer nas páginas de opinião. No entanto, segundo alguns juízos tradicionalistas descontentes com o jornal, esse limite ultrapassou-se nas páginas de informação, que estão a seu cargo e continuam a cruzar-se diariamente. Abundam os casos, argumentam, em que se fundem notícias e opiniões; depende-se menos das coisas que dizem as fontes, com nome ou sem ele, e o jornalista tem mais margem para fazer declarações do que tinha há dez anos.

Um exemplo recente entre muitos é um artigo "informativo" publicado em Novembro passado na secção de política sobre o candidato presidencial republicano Newt Gingrich. "Newt Gingrich", começava o texto, "é historiador. Tem um doutoramento em História. Se nos esquecermos disso, ele recorda-nos." É um arranque que convida a continuar a ler, mas ao estilo europeu moralmente reprovável. Porque manifesta sarcasmo, e sarcasmo é opinião. Desde o primeiro instante, não existe qualquer pretensão de equilíbrio. A balança está inclinada contra Gingrich.

Abramson tenta explicar esta contaminação aparente do dogma tradicional do NYT com uma distinção (que alguns redactores consideram falsa) entre opinião e "análise". "Os nossos leitores sempre tiveram um enorme desejo de ver os acontecimentos situados no contexto e analisados. Mas isso é informação, não opinião. Os pontos de análise podem ser carregados de opinião, mas os nossos editores e redactores têm imenso cuidado em manter a diferença entre notícias e opinião."

E também é certo, como destacam alguns no jornal, que nos últimos dez anos se deixou de colocar a ênfase no tradicional "quem, onde, quando, o quê" de uma notícia para passar ao "como e porquê".

Se o diário recorre cada vez mais ao que Abramson chama "análise", deve ser em parte - e ela não está em desacordo com isto - pela torrente de informação, ou o que se supõe que seja informação, que circula pela Internet e que contribui para que esse desejo que descreve de contexto seja ainda mais urgente. Mas também se deve à obrigação de competir com a babel de ruído que nos rodeia, e isso provoca outro tipo de urgência: colocar a informação na página Web com mais rapidez que nunca.

Aí é onde o terceiro "valor fundamental" do mantra de Abramson, "edição inteligente", também treme. Cada vez mais repórteres do jornal têm blogues onde colocam o seu material ao instante, praticamente sem editar. E isso está distante dos velhos métodos de publicação de histórias no jornal, que dependiam, a um ponto que aos jornalistas europeus parecia sofredoramente legalista, de redactores-chefes de uma irritante pedanteria.

Perguntei: não significa esta mudança para o blogue em directo uma perda inevitável de controlo de qualidade? "Bem", respondeu, "você pode pensar isso, mas creio que, na maioria dos casos, os jornalistas levam tão a sério as regras do Times que não vão exceder-se, repetir algo que não está confirmado nem escrever em tom sarcástico".

O que sugere, talvez, a pergunta: por que eram necessários todos esses editores com olho de águia? Se os editores deixam de ter a função que tinham, onde está a diferença entre o jornalismo tradicional e os milhares de sites multimédia que surgem? "No jornalismo de qualidade", responde Abramson. "Numa informação fantástica, numa redacção e numa análise magníficas, e numa edição fantástica."

"Qualidade" é a palavra: com isto estão de acordo todos os jornalistas do NYT, independente das suas opiniões sobre Abramson. A qualidade tem de ser a resposta para criar jornalismo vendável. Mas a definição de qualidade e das regras segundo as quais se tomam decisões editoriais não estão tão claramente definidas como antes.

Mais do que qualquer outro director do NYT dos tempos modernos, Abramson tem a tarefa de reinventar as regras sobre o caminho a seguir, de emitir juízos subjectivos sobre questões que antes eram facilmente resolvidas recorrendo ao velho e esfarrapado conceito jornalístico de objectividade. Hoje, tudo está em movimento, até a própria palavra inglesa para jornal, newspaper (papel de notícias) está a perder validade.

O facto de Abramson ter escolhido o adjectivo "fantástico" no final do nosso encontro foi significativo. É menos preciso que outros adjectivos que empregou com autoridade - rigoroso, inteligente, elegante - e mais aberto a uma interpretação imaginativa.

"Transição", a palavra-chave na relação com o momento que o jornal vive, significa evolução, sobrevivência do mais forte, adaptação. Para este diário, como para todos os jornais tradicionais, o lema agora tem de ser adaptar-se ou morrer. O facto de uma mulher - uma mulher que escreve sobre o seu cão - ter sido escolhida como directora indica por si que nos encontramos numa época de mudanças revolucionárias. O NYT não é, ao fim e ao cabo, o papado. Não é a Igreja católica. Está a transformar-se, por pura necessidade, com o tempo. Talvez, quem sabe, se até muito mais do que Jill Abramson está disposta a crer ou a reconhecer.

a Exclusivo El País

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