Manuel Teixeira GomesO Dandy

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Teixeira Gomes no seu gabinete de trabalho em Londres (1925) Museu da presidência da república

Trocou Medicina pela boémia do Porto e de Lisboa. Foi por impulso que se tornou candidato presidencial. Foi por tédio que renunciou ao cargo para o qual tinha sido eleito em 1923. Cosmopolita e culto, acabou os seus dias entre as buganvílias do Hotel de l"Étoile, em Bougie, na Argélia. Teria escolhido morrer em Florença, se lá chegasse o mar. Por Maria Filomena Mónica

A 27 de Maio de 1860, num reino onde as amas ainda falavam de moiras encantadas aos seus meninos, nascia Manuel Teixeira Gomes. Olhando-o aos oito anos, com aquela cara redondinha, aquele cabelo de risca ao meio e aquele fato negro, parecia uma criança burguesa, como burguês parecia o senhor de polainas, com uma flor na lapela, em que se transformaria. Mas, pelo meio, duas coisas - o anticlericalismo e o desprezo pela moral tradicional - aproximara-o dos jacobinos.

O pai, um rico negociante de frutos secos, obrigara-o a frequentar Medicina. Farto da pompa académica, trocou Coimbra pela vida boémia, primeiro, no Porto e, mais tarde, em Lisboa. Procurando explicar a um progenitor irritado o acto de rebeldia, citava Musset: também ele sentia que "nascera tarde de mais num século demasiado velho". Isto não o impediu de participar nos negócios familiares, tendo, a coberto destes, feito numerosas viagens, com o intuito de vender, no estrangeiro, os figos e as amêndoas que cresciam nas propriedades paternas.

Em 1899, já com 40 anos, publicava o seu primeiro livro, Inventário de Junho. Vale a pena citar o que aparece à cabeça: "A presença de amigos e mesmo de simples conhecidos envenena o encanto das viagens. Viajar, sozinho. Nada que importune mais do que a opinião, a alegria, ou a tristeza, ou os caprichos daqueles de cuja existência devemos participar quando corremos mundo em busca de sensações ou repouso (...) Viajar, sozinho e sem plano, sem guia." O livro começa bem, mas a prosa vai-se tornando cada vez mais pretensiosa, o que a torna datada.

Juntamente com a empresa, herdou a tradição política da família. O avô lutara nos exércitos de Napoleão, tendo morrido nas prisões de D. Miguel; o pai fora educado, em França, durante a Revolução de 1848. Isto não o fez aderir ao Partido Republicano, mas transformou-o em alguém incapaz de aderir à direita portuguesa. Em 1910, de entre os simpatizantes do novo regime, logo se percebeu ser ele o mais cosmopolita, pelo que, em 1911, foi convidado para embaixador em Londres, posto que viria a exercer durante 12 anos. Muito do que se passava no país inspirava-lhe asco - basta ler a sua Correspondência: Cartas para Políticos e Diplomatas -, facto que compensava com deambulações pelos antiquários londrinos. Começou a coleccionar arte oriental: uma parte do espólio, as caixas de rapé, pode hoje ser vista no Museu do Oriente, após a doação que, em vida, fez ao museu de Coimbra que guardava os objectos de Camilo Pessanha.

Privacidade e rumores

Em 1916, decidiu apoiar a intervenção portuguesa na Primeira Guerra Mundial, facto que o aproximou de Afonso Costa, o chefe da ala radical do Partido Republicano Português. Pelo gesto, viria a pagar um preço elevado. Em 1918, depois de o ter mandado regressar, Sidónio Pais prendeu-o. Mas o encarceramento não durou. Após o assassinato do Presidente-rei, Afonso Costa convidou-o para candidato presidencial. Sem pesar as consequências, Teixeira Gomes aceitou. Nem a direita nem a esquerda se deixaram conquistar por este dandy, o que, tendo em conta as práticas vigentes, não o impediu de, a 6 de Outubro de 1923, ser eleito. Pediu então a Afonso Costa, à época a viver na capital francesa, para formar governo. Olhando o estado do país, este declinou, pelo que Teixeira Gomes ficou politicamente isolado.

Um isolamento acompanhado pela estranheza com que era olhado. Numa cidade habitada por militantes pequeno-burgueses ressentidos, os seus hábitos eram uma provocação: basta comparar a personalidade de Teófilo Braga, o qual, após ter sido eleito Presidente, insistira em continuar a usar o eléctrico para ir de sua casa, à Estrela, até ao palácio presidencial, e o comportamento do novo Presidente, o qual chegou a Belém ladeado por um cozinheiro, um ajudante de cozinha, uma lavadeira e um criado, todos ingleses. Como se isto não bastasse, teimava em exibir uma vida doméstica irregular. De uma rapariga algarvia, filha de pescadores, tivera duas filhas, naturais, que com ele almoçavam uma vez por semana.

Sobre a sua vida íntima começaram a correr rumores: que era homossexual, pederasta ou até pedófilo. É possível que, como se diz agora, tivesse optado por uma destas orientações sexuais ou, hipótese igualmente provável, que fosse bissexual, mas o assunto tem ocupado mais espaço do que penso adequado. Até dispormos de elementos empíricos - e a sua opção por vir a residir em Bougie não é suficiente - julgo inútil a especulação. Como o são, e pelas mesmas razões, as afirmações relativas às consequências que teriam marcado o espírito de Eça de Queirós por, quando nasceu, ter sido declarado filho natural.

Mas voltemos à Presidência da República e aos agitados anos de 1923/5. Sem Afonso Costa a seu lado, foi obrigado a chamar ao poder a direita republicana, um agrupamento sem qualquer tipo de influência. Não tardou que as facções de esquerda começassem a conspirar e, mais preocupante, a namorar as tropas. A 19 de Julho de 1925, o cruzador Vasco da Gama bombardeava o Palácio de Belém. Teixeira Gomes não era homem para se deixar intimidar, mas para se entediar. A 11 de Dezembro desse ano, renunciou ao cargo para que, dois anos antes, fora eleito. Uma semana depois, embarcava no paquete Zeus, rumo a Oran. Aos 65 anos, transformava-se numa espécie de Fradique Mendes.

Retiro argelino

Passou a corresponder-se com os amigos, entre os quais se destacava Columbano Bordalo Pinheiro. Uma vez instalado em Argélia, desinteressou-se da política. Em Cartas a Columbano, nem menciona o golpe do 28 de Maio. O que o interessava eram as cidades europeias. A 2 de Julho de 1926, dizia-lhe: "Chegasse o mar a Florença e seria esta a minha terra preferida para morrer. Fácil, porém, é ir daqui ver o mar, que fica perto, mas o Mediterrâneo, para quem nasceu e se criou à beira do Oceano, é um mar defeituoso, sem a larga respiração das marés, cujo movimento lava e purifica a areia da costa, refazendo-lhe incansavelmente uma impoluta virgindade." Pouco depois, ia a Prato, a fim de observar in loco os frescos de Lippo Lippi. Teve mais sorte do que eu; em 2001, também ali me desloquei, mas a igreja encontrava-se encerrada, a fim de os frescos serem restaurados. Deviam precisar, pois, como nos conta, estavam "muito empoeirados", o que não o impediu de se deleitar com "a linda Salomé do festim de Herodes".

Possuía uma sensibilidade meridional, requintada e pagã. Quem imagine que apenas gostava de efebos, pode ficar espantado com as linhas que, a 20 de Julho de 1926, surgem noutra carta: "A mulher florentina, geralmente, é bem feita, com o seio farto e levantado, cintura fina e quadris opulentos. E que delicioso espectáculo é vê-las tomar gelados: a voluptuosidade com que elas os lambem, chupam e sorvem..." E terminava: "Eu continuo saudável, próspero e feliz, como um deus que regressou ao Olimpo." Instalou-se na Argélia, num quarto em frente ao mar. Portugal ficara para trás.

Morreu, aos 81 anos, entre as buganvílias do Hotel de l"Étoile, em Bougie. A seu lado, apenas se encontrava Amokrane, o seu acompanhante árabe, e a velha estalajadeira. Em 1950, por vontade da família, o corpo voltou a Portimão. Não creio que, se consciente disso, tivesse desaprovado o gesto. Também ali, na sua cidade natal, se podia aspirar o cheiro a maresia, sentir o vento levante e gozar da quietação calada que tanto amava.

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