João Garcia tem um anjo-da-guarda. Chama-se Vítor Baía

Quando arrisca a vida acima dos 8000m de altitude, nas montanhas mais altas do planeta, João Garcia confia nas previsões meteorológicas de Vítor Baía, feitas a meio mundo de distância. Desta vez, era para estarem juntos no Manaslu. Tiveram de mudar de planos. Por Luís Francisco

a "Que nuvens é que vês no céu?" Pode até parecer estranho que esta pergunta aflore durante uma conversa por telefone-satélite, onde tempo é dinheiro e se espera que os diálogos sejam o mais objectivos possível. Mas nada aqui é conversa de circunstância. Sempre que Vítor Baía colocava esta questão a João Garcia, estava em causa o possível sucesso das expedições do alpinista às montanhas mais altas do planeta. Baía é o meteorologista de serviço nas aventuras de Garcia pelos picos do mundo e volta a ser um dos seus braços direitos na escalada ao Manaslu (8163m), que agora começa.A diferença, desta vez, é que o veterano montanhista e instrutor de parapente viajou com Garcia para o Nepal. O plano era reforçar o papel fulcral de Vítor Baía nos sucessos do alpinista português, a quem só faltam três picos para coroar todas as 14 montanhas de mais de 8000m que existem no planeta. No campo-base, não haveria necessidade de perguntar que nuvens estavam no céu - a observação directa permitiria afinar ainda mais as previsões, elaboradas com base em dados colhidos na Internet. Mas, mais uma vez, a montanha - a oitava mais alta do mundo - ditou a sua lei. Confrontados com o falhanço das comunicações via Net no campo-base, os dois portugueses separaram-se de novo: Baía regressou a Katmandu.
Na capital nepalesa, o meteorologista tem acesso aos dados meteorológicos globais e poderá definir as previsões que balizam o calendário de escalada do alpinista. Dias depois de tomada esta decisão, os problemas técnicos foram resolvidos, mas já era tarde para voltar atrás e ainda não será desta que Vítor e João viverão juntos as emoções da conquista de um pico de 8000m.
João, que já se instalou no campo-base do Makalu e começou a depositar material mais alto nas encostas da montanha, costuma dizer que há três vectores fundamentais numa expedição a estes cumes radicais: a preparação física, a logística e a meteorologia. "As duas primeiras dependem de nós, a terceira não a podemos controlar." Mas pode (e deve) assegurar-se o máximo de informação possível, diminuindo as hipóteses de correr riscos em altitude.
Ajudar à distância
É aí que entra Vítor Baía, de 50 anos, casado, pai de duas filhas, residente na Guarda - e, tal como o seu homónimo, antigo guarda-redes de futebol. A "muita necessidade" para o parapente levou-o a procurar conhecimento na área das previsões meteorológicas. "Muitas horas de estudo e de pesquisa na Internet" permitiram-lhe, gradualmente, tornar-se um verdadeiro perito nesta actividade traiçoeira que é "adivinhar" o tempo nalgumas das zonas mais instáveis do planeta. E de tal maneira se tem saído bem na colaboração com João Garcia que a sua fama ultrapassou fronteiras. "Espanhóis, italianos, o equatoriano Ivan Vallejo [que, no ano passado, se tornou o 14º alpinista a conquistar todos os picos de 8000m] e o João" são ou já foram seus "clientes", enumera Baía em contacto por e-mail.
O meteorologista estava esperançado que esta expedição pudesse significar uma hipótese de "melhorar a aprendizagem" e "a comunicação com outros alpinistas". Azar. Não foi assim que correu e Vítor vai, mais uma vez, ter de ajudar João à distância. É o que faz há vários anos e com excelentes resultados. "A sua avaliação dos meteogramas a três dias tem cerca de 80 por cento de fiabilidade. Uso as suas previsões desde 2004, no Gasherbrum I [Paquistão]", explica João Garcia, também em resposta a questões enviadas por e-mail.
Os números falam por si: desde 2004, João ainda não falhou o cume em qualquer das sete expedições que realizou a cumes de 8000m. É uma proeza impressionante, mesmo a nível internacional, e explica que o português esteja agora a três escaladas bem sucedidas de se juntar a um dos grupos mais restritos do planeta, o de totalistas dos 14 "8000". Mas não são os números o mais importante, quando se faz da aventura uma vida. O que conta são as histórias.
E Garcia recorda duas ocasiões em que as previsões de Vítor Baía mostraram ser melhores do que as compiladas por outros profissionais e organismos especializados. "Uma vez, na Islândia, numa travessia, disse que haveria ventos de 200km/h e acertou em cheio. Atrás de nós, 50 espanhóis puseram-se ao seu cuidado... No Kangchenjunga [Nepal], em 2006, quando disse que só haveria bom tempo daí a três dias, os outros pensaram que eu queria era atrasá-los para me colar a eles [a aclimatação - adaptação progressiva do organismo à altitude - de Garcia estava atrasada, porque participara no resgate de outro português, António Coelho, acometido de uma apendicite]. Na verdade, era a previsão do Vítor que estava certa e eles tiveram de dar meia volta. Depois subi eu, com o Ivan Vallejo, e fizemos cume num dia magnífico."
Desde o início
São estas coisas que forjam uma aliança de espíritos, uma relação de confiança e cumplicidade para lá das palavras. Mas estes dois não começaram agora. Na verdade, conhecem-se há muitos anos, tantos quantos Garcia tem de montanhismo. Quando, aos 16 anos, o jovem João se lançou de bicicleta de Lisboa à Guarda, era de Vítor Baía que ia à procura. Ele e o irmão eram os líderes do Clube de Montanhismo da Guarda, o grande bastião da actividade em Portugal.
"Voltei a casa para deixar a bicicleta e regressei de comboio, para ir com eles escalar em rocha na serra da Estrela. No ano seguinte, fui com eles a Béjar, a Gredos [Espanha] e também aos Alpes, onde subi o Monte Branco pela primeira vez", recorda Garcia. Quanto ao entusiasmo, estamos explicados. E talento? Quando é que o líder reconheceu aptidões especiais ao jovem montanhista? "Foi logo em 1984, quando ele foi ter connosco. Ao fim de 15 dias, já era ele quem liderava as cordadas [ou seja, subia na frente a abrir caminho]..."
Provando que este é um país pequeno, com eles estava muitas vezes outro jovem alpinista, Gonçalo Velez, o primeiro português a escalar um "8000". Ele e João subiam nos calcanhares do mestre. Ou não. Mesmo quando estavam mais longe, aprenderam a seguir uma pista infalível: as beatas de cigarro que Vítor Baía ia deixando ao longo da via de escalada. Outros tempos, "há três anos" que o montanhista e instrutor de parapente deixou de fumar.
Tinha, é claro, o sonho de ver de perto os gigantes dos Himalaias e de participar fisicamente nas expedições. Ainda não foi desta que concretizou essa ambição a cem por cento. Mas nem por isso é menor o seu papel na escalada que João Garcia agora começa. De Katmandu, com um olho no computador e o ouvido atento às descrições das condições no local, Vítor Baía vai fazer o seu trabalho de sempre. Um trabalho de bastidores, mas de importância fulcral. Um trabalho que, para quem está no terreno, pode significar a diferença entre a vida e a morte. "Eu sou o privilegiado que coloca a bandeira no cume, mas este é um trabalho de equipa e sem ela eu não teria tantas hipóteses de ser bem sucedido", resume João Garcia.

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