Houve crime em Camarate. Mas quem o cometeu?

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Destroços do Cessna que caiu num bairro residencial de Camarate, a 600 metros do aeroporto ALFREDO CUNHA/ARQUIVO

Depois de oito comissões parlamentares de inquérito, há hoje algum consenso (não total) de que o Cessna caiu em Camarate devido à explosão de uma bomba a bordo. Resta saber quem a colocou e porquê. Freitas do Amaral diz que é preciso investigar os negócios de armas da época

Faltava uma semana para as eleições presidenciais e as coisas não corriam bem para o candidato da Aliança Democrática (AD). Tudo apontava para uma derrota de Soares Carneiro, o candidato apoiado pelo PPD e o CDS, em favor de Ramalho Eanes. No Norte, onde estava em campanha, Pinto Balsemão percebeu isso e ligou para a sede pedindo que o primeiro-ministro, Francisco Sá Carneiro, ou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Freitas do Amaral, fossem ao comício de encerramento, no Porto. A presença de um dos líderes no comício de quinta-feira, dia 4, poderia ainda convencer muitos eleitores.

Sá Carneiro e Freitas encontravam-se em Évora quando António Capucho lhes deu este recado, por telefone. O que estava previsto para dia 4 era a presença de Sá Carneiro no comício de Setúbal. Ao Porto iria Adelino Amaro da Costa, ministro da Defesa.

Discutiram o assunto ao jantar, e Freitas do Amaral foi de opinião de que deveria ser Sá Carneiro a ir ao Porto, por ser muito conhecido e apoiado na cidade. Decidiu-se que assim seria. Freitas iria ao comício de Setúbal, com o candidato Soares Carneiro, e o primeiro-ministro juntar-se-ia a Amaro da Costa no Porto. Conceição Monteiro, secretária de Sá Carneiro, reservou quatro bilhetes para o voo Lisboa-Porto das 20h20 da TAP.

Ao início da tarde de quinta-feira, em São Bento, Amaro da Costa sugeriu a Sá Carneiro que fosse com ele ao Porto no avião Cessna de cinco lugares que já tinha reservado, e não no voo da TAP. Além de Adelino e a mulher, Maria Manuela, viajaria ele, Sá Carneiro, com Snu Abecassis, acompanhados pelo chefe de Gabinete, António Patrício Gouveia.

O Cessna partiu às 20h17. Aos 23 metros de altitude algo aconteceu no avião. Não subiu mais, seguiu em linha recta até se despenhar num bairro residencial da povoação de Camarate, a 600 metros do aeroporto. Não houve sobreviventes.

As teorias

A queda do avião foi submetida a investigações e inquéritos, por parte da Polícia Judiciária, da Direcção-Geral da Aviação Civil e de técnicos internacionais, que concluíram rapidamente ter-se tratado de um acidente. Mas os relatórios não convenceram. Havia sinais de que as pesquisas tinham sido apressadas ou incompetentes, ou as duas coisas. Ou ainda outra: inquinadas pela intervenção política.

Era uma época de instabilidade. O PREC tinha terminado, os partidos da direita ganhavam terreno.Uma rede bombista de extrema-direita tinha actuado no país nos últimos anos, e começava a actuar uma outra, de extrema-esquerda.

Gerou-se a convicção de que seria perigoso levantar sequer a hipótese de ter havido um atentado em Camarate. Poderia levar à guerra civil. Surgiram duas tendências, desprovidas de qualquer base racional e motivadas politicamente: quem era de esquerda defendia a tese do acidente; defender a do atentado significava ser de direita.

Os relatórios oficiais identificaram como causa do "acidente" uma falha técnica do avião: um dos motores teria avariado. Ou a falta de combustível: teria sido roubado. Eram conclusões contraditórias e deficientemente fundamentadas.

Quando foi conhecido o resultado das autópsias às vítimas, um cartoonista que trabalhava para o jornal de direita O Diabo teve a certeza de que a versão oficial era um embuste. Augusto Cid leu no relatório dos médicos legistas que, nos corpos das sete vítimas, não foi detectado nenhum osso partido, apesar do embate frontal. E pensou: não é possível. Iniciou uma investigação pessoal, partindo de um dado simples: em qualquer acidente de automóvel, por exemplo, a lesão mais frequente é a fractura de ossos. Isso acontece porque as vítimas, numa atitude reflexa de defesa, retesam os braços e as pernas, no momento do choque. Só numa circunstância isso não se verifica: quando os passageiros já estão mortos, ou inconscientes, antes do acidente.

Cid dedicou grande parte da vida a investigar Camarate e escreveu dois livros com as suas conclusões. Mais tarde, o advogado das vítimas, Ricardo Sá Fernandes, escreveu outro livro, apresentando a sua própria investigação e a conclusão, idêntica à de Cid: Camarate foi um crime.

Vinte anos de comissões

Mas o processo judicial foi arquivado e a responsabilidade criminal prescreveu. Entretanto, a Assembleia da República criou uma Comissão Eventual de Inquérito, em 1982. Seriam formadas mais sete comissões, que ouviram testemunhas e especialistas. Nas primeiras, a cisão era nítida, entre os elementos provenientes dos partidos de esquerda, que votavam na versão do acidente, e os de direita, que insistiam na do atentado. Mas as últimas comissões de inquérito foram mais assertivas. A oitava, cujo relatório foi apresentado e aprovado em 2004, concluiu sem dúvidas que as investigações efectuadas na altura foram mal conduzidas, e que a queda do avião se deveu a um engenho explosivo colocado no Cessna. A comissão foi dirigida por Nuno Melo e contou com a colaboração de insuspeitos especialistas nas várias áreas científicas pertinentes.

Quanto aos culpados pelo crime e respectivo móbil, as comissões apenas lançam pistas. A mais consensual: o Fundo de Defesa Militar do Ultramar, criado para as despesas excepcionais da guerra colonial, mas que existia ainda, inexplicavelmente, em 1980.

A tese, por provar, é esta: o Fundo estava a ser usado para tráfico de armas, designadamente para o Irão e o Iraque. Amaro da Costa tinha começado a investigar esse crime, tentando identificar os responsáveis. Em consequência, já tinha sido ameaçado de morte. O atentado terá portanto sido dirigido contra ele, ministro da Defesa, e não contra Sá Carneiro, que só à última hora decidiu embarcar naquele avião.

Freitas do Amaral tem sido o principal defensor de que se deve prosseguir a investigação, para esclarecer as actividades e as contas do Fundo de Defesa Militar do Ultramar. Acaba de publicar um livro (Camarate, um caso ainda em aberto, Bertrand) em que explica porquê, e divulga a correspondência que trocou sobre o assunto com o então procurador-geral Cunha Rodrigues.

Ramalho Eanes, que em 1980 era Presidente da República e chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, explicou esta semana numa entrevista ao Diário de Notícias que não houve nenhum movimento inexplicado de dinheiro do Fundo de Defesa Militar do Ultramar, que ele próprio extinguiu, em Novembro de 1980, antes da morte de Sá Carneiro e Amaro da Costa.

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