Harun Farocki : compreender a nossa época

Guerras e revoluções, a violência tornada coisa digital e tecnológica, a sociedade marcada por processos de manipulação consumista, a história da arte e do cinema, os processos colectivos, a política, e, sobretudo, uma enorme vontade em perceber a sua época - eis o trabalho de Farocki, que está presente de forma intensa em Lisboa, através de instalações e filmes.

Foto
"Nicht löschbares Feuer"/"Inextinguishable Fire" (1969) é considerado por muitos o primeiro filme político. A guerra do Vietname é central nesta obra, mas não para inflamar os corações e procurar respostas emotivas

Harun Farocki (República Checa, 1944) está a ter semana intensa em Lisboa.

No dia 6 de Outubro foram inauguradas na Galeria do Palácio Galveias três duplas projecções que podem ser vistas até dia 7 de Novembro; pela mão de Jürgen Bock inaugurou na galeria Lumiar Cité a instalação "Das Silber und das Kreuz" / "The Silver and the Cross" (2010) - até 27 de Novembro; a partir de amanhã e até dia 30 o DocLisboa dedica-lhe retrospectiva; finalmente, no dia 25, às 11h, no Grande Auditório da Culturgest, fará uma Masterclass. Um conjunto de acontecimentos que permitirão saltar em profundidade para o trabalho de um dos cineastas europeus mais importantes.

Conversou com o Ípsilon por telefone. Disse ter pensado este programa em colaboração com os programadores sem qualquer preocupação temática ou estética: "Só pensei nas obras que melhor se adequavam aos diferentes contextos onde os trabalhos vão ser instalados e

ou projectados."

É difícil descrever o trabalho de Farocki. Mas pode dizer-se estarem presentes guerras e revoluções, o horror da violência tornada coisa digital e tecnológica, a sociedade marcada por processos contínuos de manipulação consumista, a história da arte e do cinema, os processos colectivos, a política, e, sobretudo, uma enorme vontade em perceber a sua época. O seu campo é o do cinema e a sua matriz de pensamento são as imagens. Foi crítico de cinema, escreveu um livro sobre Godard e o uso da palavra (dita ou escrita) é fundamental no seu trabalho. Mas não se pode falar num género, nem numa forma: não faz filmes de ficção, nem documentários, nem arte vídeo, mas, como diz o programador Augusto M Seabra, usa o cinema como pensamento crítico e, à semelhança de Godard ou Chris Marker, da sua actividade resulta um "cinema-ensaio".

O que não significa desenvolver teses acerca do mundo ou fundar um domínio de especialidade. O ensaio, à imagem de Walter Benjamin, significa, como Farocki diz em "Snittstelle

Interface" (1995), compreender a sua época. Trata-se de um cinema que é pensamento e crítica da actualidade sem com isso, como disse ao Ípsilon, estar a "ilustrar ideias com imagens". Continua: "Até porque não me contentaria em fazer trabalhos que traduzissem coisas em imagens. Interessa-me gerar pensamentos." Assim, descobrem-se imagens que não são um meio através do qual se comunica; a imagem é o pensamento.

O seu processo criativo é "totalmente intuitivo." Esclarece: "os meus filmes são "step-by-step" e não estabeleço qualquer distinção entre produção e pós-produção". Jürgen Bock clarifica o processo: "É frequente deslocar-se para os locais de filmagem sem ideias predefinidas. Muitas vezes sem saber o que vai encontrar, durante as suas pesquisas coleciona imagens como outros anotam referências literárias nas bibliotecas, recolhendo material que em grande parte só atingirá a sua relevância no filme editado por meio da sua associação ou combinação com outras imagens." ("Para além dos géneros: os trabalhos de Harun Farocki").

Quando fala da sua obra gosta de pensar em processos de condensação. Deste ponto de vista, o cinema surge a Farocki como forma de "condensar o tempo e o espaço através da utilização de imagens banais e quotidianas." O quotidiano é o seu lugar de eleição e, à semelhança de alguns poetas, carrega a linguagem comum e por vezes rude com outros sentidos. Não encena situações, nem escreve textos com objectivos dramáticos. Transforma o que está disponível na vida comum de todos os dias em matéria de contemplação e objecto de pensamento. É neste contexto que surgem as imagens de que se apropria.

Diz Farocki: "Quando uso imagens pré-existentes é mais fácil tornar claro que estou a trabalhar num meta-nível. Cito outras imagens porque lhes quero atribuir mais sentidos e significados mostrando ser possível lê-las de muitas maneiras diferentes." Esta profundidade é a marca distintiva do seu trabalho e assinala estar-se face a imagens capazes de continuamente gerarem novas experiências. "Interessa-me muito trabalhar com imagens que encontro porque já quase tudo foi feito. Como posso competir com este facto? É mais frutífero tentar novas leituras das imagens que já existem no mundo. E devo acrescentar que se pode re-filmar e re-fazer quase todas as imagens, mas nunca se consegue recriar o espírito no qual foram inicialmente feitas. Quando se tenta fazer cópias fica-se unicamente com réplicas."

Esta crítica significa a constatação do facto de a imagem filmada não possuir uma relação unívoca com os seus objectos, mas motivar um conjunto infinito de experiências e sensações. Uma posição que revela um princípio ético cinematográfico: só fazer a imagem que importa, negar o fazer por fazer, a arte pela arte, a produção simples e cega de imagens que não compreendem ou relevam o mundo e só entopem e atafulham os sentidos.

Esta forma de fazer cinema não implica uma metodologia fixa ou um programa implacável, porque para Farocki é importante "estar sempre a experimentar diferentes aproximações. Para mim é importante apresentar a diversidade de abordagens que se podem fazer do objecto cinematográfico."

Engenharia social

É nessa estratégia de diversificação que devem ser entendidas as suas instalações. Que surgiram quando começou "a trabalhar com espaços de arte" e teve de "adaptar a tradicional cinematografia a uma outra realidade espacial. Nestas situações não me interessa a linearidade habitual do cinema, mas tentar perceber como é que um filme pode funcionar para além do paradigma da sequência." Mais importante que as histórias é o modo como se conseguem gerar pensamentos e questionar o mundo. Por exemplo, "Videogramme einer Revolution"/"Videogramms of a Revolution" (1992) não conta a história da Revolução Romena de 1989 ou da ocupação que os manifestantes fizeram da estação de televisão, mas explora o modo como a nova historiografia se faz não só através de objectos ou documentos escritos, mas de um vídeo ou de uma fotografia. Neste filme a revolução surge através da descrição dos movimentos e operações da câmara, mostrando que o limite da câmara é, de algum modo, o limite da percepção e, logo, o limite da história.

Os trabalhos de galeria também permitem "espacializar a montagem do filme." E "Schnittstelle"/"Section" (1995) é um bom exemplo. Diz Farocki, remetendo para o texto "Influences Transversals" que escreveu para a revista "Traffic": "na montagem de um filme nunca se vê uma única imagem, mas pelo contrário vêem-se sempre duas imagens: a imagem já montada e a próxima a ser escolhida. Quando em 1975 Godard lançou "Numéro Deux", um filme 35mm onde aparecem dois ecrãs, formei a convicção que se tratava aqui da experiência da mesa de montagem e da comparação de duas imagens. O que há de comum entre estas duas imagens? O que é uma imagem pode ter em comum com a outra?" E conclui: "trata-se de expandir o cinema e de criticar a norma cinematográfica submetendo a projecção a restrições radicais."

A todas estas questões junta-se a sociedade, a política e a guerra como objectos dos seus ensaios cinematográficos. Filmes como "Die Auftritt"/"The Appearance" (1996) ou "Die Bewergung" / "The Interview" (1996/97) são obras de "engenharia social". Neles interessa-lhe "ver como funcionam as estruturas sociais que subjazem a cada gesto individual. E nessas acções mostra-se a dimensão primitiva do animal colectivo que é o homem."

Farocki não está distante do activismo político e o seu trabalho histórico "Nicht löschbares Feuer"/"Inextinguishable Fire" (1969) é considerado por muitos o primeiro filme político. A guerra do Vietname é central nesta obra, mas não para inflamar os corações e procurar respostas emotivas. A premissa é que a guerra é uma coisa política e não está confinada às trincheiras, mas possui o seu centro nas mesas dos políticos. E esta consciência é formadora da sensibilidade e consciência de Farocki e constitui um princípio axial de todo o seu cinema.
 

Sugerir correcção