FMIA vigiar Portugal de um 9.º andar com vista sobre Lisboa

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Albert Jaeger

A troika visita o país apenas de três em três meses, mas o austríaco Albert Jaeger e o brasileiro Marcos Souto vieram viver para Portugal para controlar o cumprimento do programa de ajuda externa. São os representantes permanentes do FMI em Portugal e já têm escritório próprio, bem no centro de Lisboa.

O chão e as secretárias ainda têm vestígios de pó, o equipamento informático ainda está à espera de ser ligado ou retirado dos caixotes, mas, para Albert Jaeger e Marcos Souto, os representantes permanentes do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Portugal, o trabalho já começou há pelo menos dois meses.

Desde o início de Novembro, o economista austríaco de 54 anos e o engenheiro brasileiro de 42 estão em Lisboa para acompanhar a implementação do programa de assistência financeira. São os únicos elementos fixos da troika no país para esse fim e complementam o trabalho da equipa da Comissão Europeia (CE), do Banco Central Europeu (BCE) e do FMI que, de três em três meses, se desloca à capital para avaliar o cumprimento do programa. O seu escritório, bem no centro da capital, na Avenida da República, só agora ficou pronto. Ocupa parte de um 9.º andar, com uma ampla vista sobre Lisboa, no edifício que alberga a Sociedade Gestora do Fundo de Pensões do Banco de Portugal (BdP) e o Instituto de Gestão do Crédito Público (IGCP), o organismo que emite dívida pública.

Subimos no elevador e, logo da entrada, avista-se a varanda debruçada sobre a avenida. Albert Jaeger conduz-nos ao seu escritório, que já está pronto a funcionar, com computador e papéis sobre a secretária e um espaço com sofás para receber visitas.

O representante austríaco lembra-se bem da primeira vez que ouviu falar de Portugal. Estava no departamento europeu do FMI, a trabalhar com a União Europeia. O ano de 2001 estava a chegar ao fim e Portugal, acabado de entrar no euro, tornava-se no primeiro país a falhar as metas do défice traçadas no Pacto de Estabilidade europeu. Nos anos seguintes, o novo Governo de Durão Barroso, com Manuela Ferreira Leite na pasta das Finanças, teve de tomar medidas extraordinárias para consolidar as contas públicas, algo que viria a repetir-se noutros Governos, como o de José Sócrates, e, mais recentemente, no final do ano passado, quando o executivo de Passos Coelho compensou o deslize orçamental com a transferência do fundo de pensões dos bancários para o Estado e o imposto extraordinário sobre o subsídio de Natal.

"Foi esse o meu primeiro contacto com Portugal. Lembro-me de os responsáveis da Comissão Europeia, em Bruxelas, estarem a tentar perceber o se passava aqui, o que é que estava a correr mal em Portugal", conta o chefe da delegação permanente do FMI. Quase uma década mais tarde, volta a ouvir falar do país, mas, desta vez, faz parte do grupo dos que têm de perceber o que correu mal.

1.ª Parte

As rotinas

Depois de 20 anos nos Estados Unidos a trabalhar para o FMI, Jaeger mudou-se para Lisboa com a mulher, que é brasileira, e que também trabalhava no fundo. Os três filhos, duas raparigas e um rapaz, com 23, 21 e 19 anos, estão espalhados pelo mundo: um ficou em Washington, outro estuda no Reino Unido e outro na Áustria. Jaeger escolheu viver num pequeno apartamento no centro de Lisboa, para ficar próximo do escritório. "Ainda nos estamos a adaptar à nova realidade", confessa.

Marcos Souto, o sub-chefe da representação permanente em Portugal, optou por ir viver para Cascais, com a mulher, também brasileira, e os seus três filhos. A mais velha, de 16 anos, e o rapaz, de 13, nasceram no Rio de Janeiro, mas a mais nova, de quatro anos, já nasceu em Washington, onde a família viveu nos últimos anos. Todos os dias, o representante brasileiro acorda por volta das 6 horas da manhã e começa a ver os emails que, devido à diferença horária entre Lisboa e Washington, enchem a caixa de correio durante a noite. Antes de apanhar o comboio para Lisboa, compra os jornais do dia e, enquanto percorre a linha de Cascais, vai lendo as notícias. Quando chega ao escritório, por volta das 8h30, 9h, a sua primeira função é, precisamente, enviar para a sede do FMI um relatório sobre o que saiu na imprensa. Albert Jaeger também está atento a tudo o que passa.

"O facto de olhar para os jornais todos os dias é uma das razões pelas quais o meu português está a melhorar", diz Jaeger, que começa a manhã com aulas de língua portuguesa. Até agora, boa parte do tempo e da energia dos dois tem sido despendida na criação do escritório. Já contrataram uma pessoa para gerir o gabinete e querem agora arranjar dois economistas portugueses, que conheçam bem o país e os ajudem a entender melhor o funcionamento da economia nacional e os seus problemas crónicos.

Além disso, têm-se multiplicado em reuniões. "Um dos nossos papéis aqui é ir além do círculo habitual do Governo e do BdP e falar com a economia real, incluindo empresas, sindicatos, bancos, associações", explica Albert Jaeger. Com o executivo, os contactos são feitos a um nível mais técnico e, sempre que necessário, este pode pedir conselhos ou discutir ideias com os representantes do fundo.

Em termos gerais, a função da representação permanente do FMI é monitorizar o cumprimento do programa de ajuda externa, nos intervalos das missões trimestrais da troika a Portugal. "O facto de estarmos aqui, de sermos capazes de ouvir o noticiário, conversar com as pessoas e acompanhar os progressos que estão a ser feitos nas várias medidas, é importante para o nosso trabalho", explica Marcos Souto. Actualmente, o FMI tem responsáveis residentes em quase todos os países aos quais fornece apoio financeiro, contando com 80 gabinetes no mundo, dos quais 12 na Europa.

2.ª Parte

A carreira

Há 20 anos no FMI, Albert Jaeger fecha agora um círculo profissional. Começou a trabalhar como economista na área orçamental com os antigos países da União Soviética. Daí transitou para o departamento europeu, onde começou por trabalhar com economias mais desenvolvidas (como a Alemanha e a Suíça) para depois passar para a zona euro, no início da sua criação, e, mais tarde, para a União Europeia. A partir de 2004, começou a trabalhar com os países da Europa de Leste. Foi chefe de missões do FMI na Ucrânia, Roménia e Bulgária e passou os últimos três anos na Sérvia, aquele que considera ter sido o seu maior desafio profissional até agora. "Durante algumas semanas, senti como se tudo estivesse a desabar à medida que os indicadores económicos e financeiros nos surpreendiam pela negativa, mas, no final, o programa correu bem", recorda.

Já Marcos Souto teve um percurso profissional, como ele próprio admite, "um pouco fora do padrão para quem entra no FMI". Formou-se em Engenharia, trabalhou na área e deu aulas em duas universidades brasileiras. O seu interesse por finanças levou-o, contudo, para os Estados Unidos, onde fez um doutoramento na área. Foi então que surgiu a oportunidade de trabalhar para o FMI.

Começou no departamento de pesquisas, passando depois para o departamento de mercado de capitais, onde trabalhou muito com questões ligadas à dívida pública. Mais tarde, esse departamento foi fundido com outro, acumulando duas pastas: mercado de capitais e política monetária. Em 2008, enquanto trabalhava com a equipa responsável pelo México, o FMI lançou uma nova linha de financiamento. O México seria o primeiro país a aderir, em Abril de 2009. Ainda hoje, é o maior cliente do fundo, seguido pela Grécia, Portugal e Irlanda.

Por ter formação em Economia e muita experiência na área orçamental, Albert Jaeger tem estado encarregado, sobretudo, de monitorizar dois dos três pilares do programa de ajuda externa português: a consolidação das finanças públicas e as reformas estruturais. A experiência financeira fez com que Marcos Souto ficasse responsável pelo terceiro: o sector bancário, a sua desalavancagem e a necessidade de manter a torneira do crédito aberta à economia. Foi, aliás, nesse âmbito que o brasileiro veio pela primeira vez a Portugal, em Dezembro de 2010, para uma missão técnica de avaliação dos bancos nacionais, a pedido do BdP. Quatro meses depois, Marcos Souto regressava a Portugal, na sequência do pedido de resgate, feito pelo então Governo socialista. Em Novembro, juntamente com Albert Jaeger, veio para ficar, pelo menos até final de 2013, quando chega ao fim o programa de ajuda externa.

3.ª Parte

Portugal

Para a delegação permanente do FMI, Portugal é um desafio. Embora Albert Jaeger já tenha chefiado várias missões do fundo, esta é a primeira em que assume a função de representante permanente e, ainda para mais, de uma missão pouco habitual para o FMI, por ser feita em conjunto com a CE e o BCE. Mas é sobretudo a dimensão do ajustamento necessário e a situação difícil em que se encontra a economia portuguesa que fazem com que o programa de ajuda externa seja "desafiante".

Um dos principais receios de Albert Jaeger é que, este ano, a conjuntura externa e, sobretudo, europeia se degrade mais, o que prejudicaria as exportações nacionais e, em última instância, poderia fazer com que o país não cumprisse com o défice acordado com a troika. Recentemente, o chefe de missão do FMI para Portugal, o dinamarquês Poul Thomsen, admitiu que as metas do défice poderiam ser aliviadas, se houver um agravamento da crise europeia. Albert Jaeger reitera a ideia, mas deixa um aviso: "Só poderá haver flexibilidade por causa de factores externos; se o défice for mais alto porque o programa não é implementado, não se deve esperar flexibilidade".

O chefe da delegação permanente do FMI está "optimista" quanto à possibilidade de o programa de ajuda externa produzir os resultados esperados: "Claro que vai ser difícil e que as reformas vão ser dolorosas, mas vejo uma grande vontade da parte do país em ultrapassar os seus problemas." Numa referência implícita à vaga de contestação que assaltou a Grécia, Albert Jaeger revela mesmo admirar a paciência e o espírito de sacrifício dos portugueses, algo que será posto à prova, sobretudo, neste ano.

Se a avaliação da troika dependesse apenas desses factores e da vida na capital, Portugal estaria, provavelmente, a caminho de uma nota positiva. "Logo na primeira vez que vim a Portugal, fiquei encantado", conta Marcos Souto. "Lisboa é uma cidade lindíssima, tem infra-estruturas muito boas em termos de restaurantes e de vida cultural e as pessoas são agradáveis e acolhedoras", refere, salientando que este foi um dos motivos pelos quais concorreu para delegado permanente do FMI cá. Já para Albert Jaeger, Portugal era um país desconhecido até Novembro, mas o chefe da representação do fundo já se rendeu ao clima ameno e ao charme de viver num país com "uma história e uma cultura ricas".

Grande apreciador de cozinha italiana, que ele próprio gosta de confeccionar, Albert Jaeger já deu os primeiros passos na culinária portuguesa e gosta, sobretudo, de marisco e frutos do mar. "Em Washington, mesmo estando perto do mar, não é tão fresco como aqui e, muitas vezes, até vinha de cá", ironiza.

Num dos fins-de-semana já passados em Portugal, visitou a aldeia histórica de Castelo Novo, na Beira Baixa, mas foi a sua única saída fora de Lisboa. Quando puder, quer viajar pelo país e conhecer outros sítios. E, se o Governo e a troika lhe deixarem algum tempo livre, quer recordar as montanhas onde cresceu, na Áustria, dando um salto à Serra da Estrela para praticar esqui. Marcos Souto já foi a Fátima e a Setúbal. Diz que gostaria de conhecer mais sítios, mas que não há muito tempo. Afinal, tanto dele como de Albert Jaeger é esperada uma volta muito maior: uma volta à crise e ao país.

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