Ferrari, uma coisa de homens

Pode parecer loucura e exibicionismo. Quem os tem diz que não, que é amor. A Ferrari faz 60 anos e ontem fez um desfile em Portugal. Por Hugo Daniel Sousa

a O escritor espanhol Javier Marías, adepto fanático do Real Madrid, diz que a ida ao estádio para ver um jogo do seu clube é a "recuperação semanal da infância". Para os homens que têm um Ferrari - ou dois ou três -, é mais ou menos assim.Para os homens portugueses, a ideia é que têm um brinquedo muito caro na garagem. Sim, falamos de homens, porque não há memória de mulheres terem comprado um Ferrari em Portugal.
Para quem não os tem, um Ferrari rima com excentricidade, luxo, desperdício de dinheiro. Quem os tem, fala de coração, paixão, da infância, e recusa a ideia de exibicionismo. "Ter um carro destes não é uma excentricidade", diz Carlos Barbosa, presidente do Automóvel Club de Portugal (ACP). "É uma paixão que tenho desde pequenino pelas corridas - e a Ferrari era uma referência nas corridas." Hoje, Carlos Barbosa tem dois. Um clássico, o 250 GT Lusso, dos anos 60, e um novíssimo 612 Scaglietti, carro para 280 mil euros.
"Olho para os carros como para uma pintura", diz Carlos Monjardino, presidente do conselho de administração da Fundação Oriente, dono de três Ferrari - "todos em segunda mão, porque não compro carros novos". "Para mim, não é um luxo." É um brinquedo de miúdos crescidos? "Obviamente que sim. Mexer nos carros, tentar encontrar peças, andar à procura delas pelo Mundo inteiro, tudo isso faz parte do gosto do coleccionador", diz Monjardino.
Foi nas "corridas em Monsanto" que Monjardino ganhou o gosto pelos desportivos. Mais tarde, em França, comprou o primeiro Ferrari. Hoje tem "10 ou 12 clássicos". Entre um Lotus Super Seven, um MG antigo dos anos 30 ou 40 e um Bentley, sobressaem três Ferrari. Dois clássicos, um 250 GT, descapotável, de 1965 e um 365 GT4 de 1975, além de um Maranello de 1996.
De vez em quando, junta-se com amigos no Estoril para dar uma voltas no circuito e leva miúdos dos bairros pobres do concelho de Cascais. Talvez em Maio repita.
Homem, mais de 40 anos
Mas quem é que compra Ferrari em Portugal? "Pessoas com 40 ou mais anos, homens, profissionais liberais ou gestores", diz Luís Pessanha, responsável pela Ferrari em Portugal. E completa assim o perfil: "Sabem muito sobre automóveis, sobre a história da marca, às vezes mais do que eu, e sabem que carro querem". Pessanha não tem memória de ter vendido um automóvel a uma mulher. "Não tenho uma explicação profunda, mas acho que se trata de um carro masculino. Tem mais a ver com o estilo do homem." Lembra-se de uma ou outra mulher ter um Ferrari no estrangeiro, mas em Portugal não há nenhuma na ficha de proprietários.
A Ferrari tem registo de pouco mais de 300 carros da marca em Portugal. A Associação do Comércio Automóvel estima que estejam em circulação 490. Seja como for, falamos de um pequeno grupo, no qual vários proprietários são quase coleccionadores e têm mais do que um modelo.
E o grupo só não é mais exclusivo porque hoje já não é preciso ter 200 mil ou 300 mil euros para comprar um Ferrari. Novinhos em folha, custam isso, mas há o mercado de usados. "A partir de 30 mil euros, já se consegue comprar um Ferrari dos anos 90", revela Fernando Soares, especialista no comércio de automóveis. O problema pode ser pagar a manutenção. Luís Pessanha desvaloriza a questão, sublinhando que os proprietários fazem poucos quilómetros. Não mais de 5 mil por ano, em média, quando em Espanha o normal é 9 mil a 10 mil quilómetros.
Parece difícil encontrar alguém que tenha só um Ferrari, ou que só queira ter um. Um empresário do Norte, que pediu para não ser identificado, já teve cinco. Na garagem, hoje, estão estacionados "só dois" - um 360 Spider e um recente F430, carro que custa quase 200 mil euros. Dinheiro suficiente para comprar uma casa, centenas de viagens, milhares de noites em hotéis luxuosos. Ou para ajudar alguém. "Sei que é algo supérfluo. No limite, podia ter usado o dinheiro para dar esmola. Mas todos podíamos fazer coisas mais úteis com o dinheiro que temos", argumenta Fernando, de 45 anos, gestor em Lisboa (e que também prefere não ter o apelido publicado), que também tem um F430. Porquê gastar tanto dinheiro num só objecto de quatro rodas? "Já andou num?", pergunta. "Ande e perceberá o fascínio." José Alberto Soares, jornalista e empresário da comunicação social, tem um F430 Spider (mais de 210 mil euros). "Desde pequenino sonhava ter um Ferrari", conta. "Só quem gostar muito de carros pode compreender a compra de um Ferrari", entender "a sensação única de prazer e exclusividade".
Ter na garagem é bom
"O prazer é chegar à garagem e ver o carro, admirá-lo e um dia ou outro pegar nele e dar uma volta", diz o empresário do Norte. Só uma volta de vez em quando? "É mais até o gosto de o ter, como se fosse um quadro valioso", responde. Carlos Monjardino também só dá "umas voltinhas" de vez em quando, quase sempre nas férias. Carlos Barbosa não. Todos os fins-de-semana, conduz o 612 Scaglietti. Em direcção a Cascais, seja pela marginal ou pela A5. Até ao Algarve. Para todo o lado onde for no sábado e domingo: "Passeio-me alegremente". José Alberto Soares também aproveita todos os dias livres para usar o seu F430 Spider. Para a Comporta ou para a Guarda, tanto faz. Em pouco mais de um ano, fez 15 mil quilómetros.
Paradoxo
Luís Pessanha, da Ferrari em Portugal, conhece clientes que gostam de fazer viagens até Madrid, Paris e Bruxelas, uma forma de usarem o carro e passarem despercebidos. Parece um paradoxo: ser dono de um Ferrari e não querer chamar a atenção. Pessanha diz que não: "É uma questão de feitio. Há pessoas mais reservadas do que outras". E regressa a comparação com a arte: "É como uma pintura. Há quem goste de mostrar os quadros valiosos e há quem não o faça".
Certo é que um carro não é um quadro. A tela não sai de casa, o carro só se conduz na rua. Na estrada. Onde há gente. Por isso mesmo, diz o responsável da Ferrari, há pessoas que só andam com o carro longe de casa: "Gostam de o conduzir, de o ter, mas não de ser vistos com eles". Vergonha? Pudor? Pessanha resiste à pergunta, mas admite que os clientes espanhóis têm menos reservas à exposição pública. "Ter 200 mil euros em Portugal é diferente de ter 200 mil euros em Espanha." Fernando, o gestor, tem outra versão: "Somos um país com algum grau de inveja. O comendador Horácio Roque [presidente do Banif] costuma contar uma história. Se passa um Ferrari em Nova Iorque, as pessoas que estão numa paragem de autocarro pensam: "Tenho de descobrir como é que aquele tipo fez para ganhar tanto dinheiro". Se for em Portugal, pensam: "Roubou meio mundo para ter um Ferrari". Nestas coisas, ainda somos um pouco pequeninos".
Carlos Barbosa não percebe as razões de quem se esconde. "Não tenho vergonha nenhuma de aparecer. Não devo nada a ninguém e tenho o pagamento de impostos em dia", atira o presidente do ACP. José Alberto Soares, o jornalista, segue pelo mesmo caminho. "O dinheiro que pago à Ferrari é honesto e fruto do meu trabalho." Escândalo, imoralidade? "Tenho um Ferrari como podia ter uma herdade no Alentejo."
O empresário do Norte que não quis ser identificado recusa explicações pormenorizadas. Diz só que "é complicado" aparecer. Prefere usar o carro à noite. Não diz onde. "Assim passo mais despercebido. Com o Porsche, que até é do mesmo valor, ando todos os dias. Mas com o Ferrari, não sei... toda a gente tem aquela ideia... é um mito."
E há ainda outra categoria de donos de Ferrari: os que não falam mesmo sobre o assunto, nem sequer sob anonimato. É o caso dos donos dos dois Ferrari Enzo vendidos em Portugal. Cada um custou 750 mil euros. O importador está proibido de revelar os nomes. O P2 descobriu que um deles foi registado em 2004, por um empresário da área química da Grande Lisboa. Mas não foi possível chegar à conversa com ele.
Os limites de velocidade
As conversas, telefónicas, com os vários proprietários de Ferrari não permitiram ver se tinham "aquele brilhozinho" nos olhos. A voz, porém, não engana. Acelera, em alguns casos quase gagueja, como se tivesse chegado o momento de fazer uma declaração de amor. Alguns não dispensam as palavras fortes. "Paixão" é uma delas. E entusiasmam-se a falar das caixas de velocidade, dos bancos, do barulho do motor, daquele arranque à Fórmula 1. O problema é o limite de velocidade. 120 km/hora na auto-estrada sabe a pouco para automóveis que facilmente chegam aos 300 km/hora. "É difícil andar com eles dentro dos limites de velocidade", confessa o empresário nortenho, admitindo que acabou de receber uma multa da polícia.
Claro que há quem compre um Ferrari pelo lado estético - "o barulho de um motor V12 é impressionante e as linhas do carro são bonitas", diz Carlos Monjardino -, mas quem investe num automóvel da marca de Maranello por causa da performance tem poucas oportunidades de extrair todo o gozo com que sonhou. Resta esperar pelas concentrações organizadas em circuitos. Aí sim, libertam-se, transformam-se em pilotos. "Na pista é que se tem ideia de quanto vale um Ferrari. É aí que se pode retirar todo o partido do carro", argumenta Manuel Carvalho, de 45 anos, "ferrarista assumido". Já teve um 328 GTS, usado, comprado em França a metade do preço. Vendeu-o, "porque surgiu uma boa oportunidade de negócio".
Esse é o outro lado de ter um Ferrari. O investimento. Ninguém está arrependido da compra, especialmente quem optou por um usado em mau estado. "O meu 250 custou-me pouco e recuperei-o. Hoje tem grande valor. Foi dos melhores investimentos que já fiz", conta Carlos Monjardino, sem divulgar valores. "O prazer que dá compensa o dinheiro. E o carro não desvaloriza muito. Não tive dificuldades em vender o meu F40", justifica o empresário nortenho. Carlos Barbosa nem está preocupado com isso. Não pensa vendê-los. E não se arrepende da despesa: "A vida é curta e não vou levar o dinheiro para a cova, nem quero ser o mais rico no cemitério. A vida é para se gozar".
O Ferrari mais antigo que existe em Portugal é um 195 Inter, de 1950. Pertence e está exposto no Museu do Caramulo, concelho de Tondela, de onde sai para alguns eventos, embora não vá estar no próximo Salão Motorclássico, no Parque das Nações, em Lisboa, entre 27 e 29 deste mês. Foi importado por João A. Gaspar, agente da Ferrari no Porto, em Abril de 1951. Os registos do Museu do Caramulo mostram que foi depois vendido a outro portuense: José António Soares Cabral, corredor de automóveis. Em Janeiro de 1958, chegou às mãos de João de Lacerda, um dos fundadores do Museu do Caramulo. O 195 é actualmente o único Ferrari na posse do museu. "Ainda anda, como
todos os outros que temos", explicou ao P2 Tiago Patrício Gouveia, neto de João de Lacerda, e um dos responsáveis pelo museu do Caramulo.
"Foi o terceiro Ferrari a entrar em Portugal e hoje é o mais antigo. Tem um valor inestimável", diz, indicando apenas um preço de referência indicado pela revista francesa especializada La Vie de l"Auto: 275 mil euros. Uma das curiosidades deste carro é que tem uma carroçaria única, construída pelo atelier Vignale. "Naquela época, não havia Ferrari exactamente iguais. Todos tinham linhas únicas. Eram quase obras de arte." Mais uma curiosidade deste 195: mudam-se as luzes
de médios para máximos
com o pé esquerdo. H.D.S.

Ferrari F430 Spider: um jornalista e empresário tem um na garagem. Custa mais de 210 mil euros
Ferrari Enzo. Só há dois carros destes em Portugal. Custam 750 mil euros e os donos querem manter-se incógnitos
Ferrari 612 Scaglietti
Carlos Barbosa tem este modelo (um de dois). Custa 280 mil euros
Ferrari 360 Spider (na garagem do seu dono, está ao lado de um Ferrari F430)

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