Fernando FalcãoUm branco fora dos "eixos"

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daniel rocha

Viviam em Angola 172 mil brancos. Era a maior comunidade europeia da África subsariana, depois da África do Sul. Nem todos eram reaccionários, ou obedeciam à imagem do colono boçal. Havia pequenos grupos que defendiam uma Angola independente, com eleições democráticas inclusivas do voto dos africanos - divididos entre "indígenas", sem direito a cidadania ou bilhete de identidade (a esmagadora maioria), e "civilizados" (uma minoria). O engenheiro Fernando Falcão, um desses progressistas, hoje com 87 anos, recorda aqueles tempos conturbados.

Havia em 1961 algum sedimento de esquerda. Neste contexto, um grupo do Lobito e Benguela fundou, em Abril de 1961, a Frente de Unidade Angolana (FUA), defensora de uma autonomia que preparasse a independência. O líder era Fernando Falcão, nascido em Moçâmedes, com passado antifascista dos tempos em que tirou Engenharia no Porto, aderiu às lutas estudantis, e foi um dos fundadores do MUD Juvenil. Regressado a Angola, envolveu-se na campanha de Humberto Delgado à Presidência da República. Administrador de empresas, era um "patrão progressista" de uma nova geração.

"A FUA foi criada depois dos acontecimentos da UPA, por volta de Abril de 1961. Entendi ser necessária uma força que desse equilíbrio. Teve boa aceitação. Éramos um grupo variado: o Carlos Morais, empregado de escritório; o Sócrates Dáskalos, professor do Liceu de Benguela; o João Mendes, escriturário; o Luís Portocarrero, funcionário bancário. O contexto internacional era favorável, entusiasmou os angolanos. Os mais extremistas queriam a independência imediata. Nós não. Defendíamos a independência de uma Angola para todas as raças, mas depois de uma autonomia que a preparasse. Enfim, tivemos a presunção de que éramos capazes de fazer a união do MPLA com a FNLA. A UNITA ainda não existia."

No manifesto de 5 de Abril de 1961, a FUA apresentou-se como movimento cívico desligado de qualquer grupo político. Condenava o terrorismo "venha ele de onde vier", e defendia uma "pressão constante" sobre a política de Salazar. Reivindicações revolucionárias faziam parte do manifesto intitulado À População de Angola. Fernando Falcão foi um dos redactores. "Exigíamos eleições gerais para Angola ser dona do seu destino, queríamos liberdade de imprensa e de associação. Que se libertassem os presos políticos, e se promovesse a elevação e a representação dos africanos que não tinham quaisquer direitos. Como dizíamos no manifesto, a FUA era um movimento legal e ordeiro que queria soluções legais e ordeiras para Angola." Três elementos da FUA, incluindo o presidente, entregaram ao governador-geral de Angola um documento, no qual 1200 pessoas assinaram por uma autonomia.

Uma voz para a FUA

Passaram-se 50 anos. Mas Fernando Falcão nunca esquecerá a repressão que se abateu sobre o seu grupo, após a deslocação à colónia, em Maio de 1961, do então ministro do Ultramar, Adriano Moreira. "Eu tentei um acordo político com as associações económicas de Luanda antes da visita do Adriano Moreira. Tinham sempre um caderno reivindicativo face à metrópole e na sequência dos acontecimentos exigiram um pacote de medidas económicas e políticas. Mas não resultou. Eles defendiam uma república branca. Nós éramos multirraciais. E cada um foi para seu lado. Ora, quando o ministro Adriano Moreira vai a Angola, acaba por dar garantias às associações, para uma maior descentralização, mas connosco foi pior. A direcção da FUA pediu para ele nos receber. Recordo-me bem da reunião. Adriano Moreira era novo e muito simpático. Tinha qualquer coisa de progressista, não me pareceu nada salazarista. Compreendeu as nossas reivindicações. Aceitou tudo maravilhosamente. Mas mais tarde mandou-nos prender, pelo que me deu a entender o major Silva Pais (que viria a ser o director da PIDE em 1962). Os que tinham estado na reunião com ele foram todos presos, menos o engenheiro Frazão Farinha, que fugiu para o Brasil."

A PIDE foi buscar Fernando Falcão a casa, no Lobito, a 4 de Junho de 1961. Deportou-o para Lisboa. Ficou dois meses na cadeia do Aljube e ano e meio com residência fixa. O Partido Comunista Português voltou a tentar recrutá-lo. "O PCP tinha células em Angola que trabalhavam bem. Lá pareciam ser menos extremistas, eram mais abertos, diferentes dos comunistas daqui. Quando estava em Portugal, o PCP mandou-me um militante, sobrinho do Sócrates Dáskalos, para me aliciar. Queriam uma boa política com os brancos progressistas de Angola. Penso que a ideia era voltar a tentar um partido comunista em Angola, queriam talvez uma colaboração obrigacionista. Mas nunca quis ser do PCP. Não professo aquelas doutrinas, embora sempre me tivesse dado bem com eles. Sou admirador da sua luta. Em Angola, o PCP tentava meter-se em tudo, tinha a adesão de muitos angolanos. O Carlos Morais, dirigente da FUA, também era do PCP."

Depois das prisões, elementos da FUA refugiaram-se em Paris. Dali, Sócrates Dáskalos elaborou alguns exemplares do Kovaso, o jornal da frente. Depois exilou-se em Argel e mais tarde na China. A FUA obteve do Governo argelino o mesmo apoio que o MPLA, como movimento nacionalista angolano.

O MPLA e a FUA apenas se cruzaram. Nunca passaram daí. "Havia militantes da FUA que pugnavam pela integração no MPLA. Outros recusavam. Tínhamos contactos de amizade com o Agostinho Neto e o Lúcio Lara, mas não eram relações políticas. No seio do MPLA havia muita reacção à FUA. Alguns achavam-nos reaccionários. A mim consideravam-me angolano branco, mas não angolano puro. Depois, a FUA desfez-se no exílio, em 1963. Só voltámos a cruzar-nos com o MPLA em 1974, após o 25 de Abril. Ainda reactivei a FUA. Conversei com Agostinho Neto, o MPLA tentou encapotadamente absorver-nos, mas não aceitei. Outros então pensaram que a FUA de 1974 era colaboracionista com o MPLA. A minha intenção era reunir os brancos, porque estavam desasados. A FUA podia ser um amparo. Tivemos uma boa projecção, mas ficámos ilegais quando só reconheceram como legítimos representantes do povo angolano os três movimentos de libertação. Ainda reclamámos ser a quarta força."

Fernando Falcão tentou até à última fazer ouvir a voz da FUA. Mas ficou à porta dos Acordos do Alvor, em Janeiro de 1975. Meteu-se de novo no avião e quando chegou a Angola lançou o último comunicado, com um apelo aos brancos: "É preciso não ter medo/não ter medo de dizer bem alto: esta é a minha terra. Cá nasci ou para cá vim, a ela dei o melhor do meu esforço, do meu trabalho, da minha vida. Por isso fico. Sou orgulhosamente angolano."

Ele ficou. Fez parte da junta governativa do almirante Rosa Coutinho, em finais de 1974, recusou muitos convites de políticos portugueses e angolanos. Em 1976, a pedido do actual presidente angolano, José Eduardo dos Santos, foi para a administração dos Caminhos de Ferro de Benguela, que acumulou com a administração do Porto do Lobito. Em 1986 veio para Portugal, continuando a colaborar com Angola. Reformou-se em 1992.

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