Esta vida de marinheiro

O jornalista Ricardo Alexandre deu ao amigo João Aguardela um livro sobre David Bowie com a dedicatória: "Um dia hei-de ser eu a escrever a tua biografia". Foi premonitório. O vocalista e fundador da banda Sitiados morreu em 2009, aos 39 anos. A biografia chega hoje às livrarias

Capítulo V

Vida de marinheiro

Em dezembro de 1991, pouco antes da sai´da do álbum de estreia, Aguardela garantia: «Está um disco bom, a nossa garra está lá toda. Está um disco com força, já a maquete com o Naufra´gio e a Vida de Marinheiro, que foi gravada com o mesmo sistema que utiliza´mos em estu´dio, tinha muita forc¸a... Esta´ um disco bom, eu ja´ andava a marrar nisto ha´ muito tempo e algum dia tinha que ser. Ja´ ando com vontade de fazer o pro´ximo. (...) Este disco ja´ e´, e o pro´ximo espero que tenha uma tal abordagem instrumental que as pessoas na~o duvidem que o que os Sitiados fazem e´ mesmo mu´sica popular portuguesa. (...) Este era "acade´mico". Ja´ estava feito. Era so´ concretiza´-lo. Mas podes crer que, para primeiro disco dos Sitiados, vai surpreender muita gente.» O Joa~o queria que se chamasse U´ltima Valsa e di-lo va´rias vezes nessa entrevista [ao autor, para a revista Ritual]. «Porque no´s e´ramos da opinia~o que iri´amos gravar um disco e depois isto acabava. Felizmente, fizemos um contrato para dois discos.» Mas, a conselho da editora, presumo, ficou Sitiados.

Saiu o disco. Vida de Marinheiro era a primeira mu´sica. Passara ja´ um tempo razoa´vel desde que eu dissera ao Joa~o que aquela seria a mu´sica que iria «bater» mais. Na~o por qualquer instinto premonito´rio, mas simplesmente porque, sendo o realizador de um programa de mu´sica moderna portuguesa numa ra´dio local, a 7FM, na Maia, um programa intitulado Circuito Interno, que tinha uma votac¸a~o semanal, me ia apercebendo da forc¸a que aquela mu´sica estava a ganhar junto do pu´blico.

Outra importante era A Pe´rola Negra, tema inspirado na famosa casa de diversa~o noturna com sexo ao vivo no Porto, mas tambe´m a pensar no encerramento das ra´dios livres («A pe´rola negra era a mais bela de todas as moc¸as/ Em todo o bairro ningue´m cantava como ela/ O senhor Ani´bal rico e poderoso/ Ai quando a viu, caiu do seu trono»), pois para o Joa~o «a ra´dio e´ algo que so´ faz sentido se for livre».

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Os Sitiados sempre acharam que a BMG na~o tinha grandes expetativas para o disco. Ja´ seria bom se vendessem mil e quinhentos. Jorge Buco lamenta que as coisas em Portugal se passem assim. Ou que assim fossem na altura. «Pensei que, quando chegasse a uma editora, teria uma pessoa a puxar por no´s, "vou fazer de vo´s umas estrelas." Faltava um Futre: "vou trazer charters de concertos, de pessoas, charters de sucesso." Qual que^! A postura era exatamente a inversa, bem a` portuguesa: vamos vender - sem incomodar muito as pessoas - mil e quinhentos discos, ja´ e´ bacano.» Venderam quarenta mil. Assume Sandra Baptista que a partir dali ficaram com tapete vermelho na BMG: «podi´amos fazer o que quise´ssemos». Mas reinava a falta de ousadia no meio. A verdade e´ que do primeiro a´lbum dos Sitiados na~o ha´ um u´nico videoclip. Esse laxismo, essa falta de ambic¸a~o, apesar do esforc¸o de pessoas como «o Tiago e a Cristina, foram cansando muito o Joa~o», recorda Jorge Buco. «As pessoas eram fanta´sticas, sempre fomos muito bem tratados, mas... podia ser a falta de recursos, mas havia muita coisa que podia ser feita nessa altura e na~o foi», acrescenta, consciente das limitac¸o~es de, enquanto mu´sico numa banda de sucesso, ter pertencido a um pai´s sem telemo´vel nem Internet.

O enta~o patra~o da BMG, Toze´ Brito, guarda de Joa~o Aguardela a imagem de um jovem «ti´mido, cheio de talento, com uma energia fanta´stica, em cima do palco era uma forc¸a da natureza, um grande mu´sico, um o´timo compositor. Mas sempre me pareceu uma pessoa muito fechada, muito introvertido, na~o era de abrir facilmente o corac¸a~o e dizer o que sentia. Muitas vezes nas reunio~es era a Sandra que falava por ele, o Joa~o ficava a ouvir ate´ chegar ao fim e dizer como as coisas iam ser». O homem que publicou a maior parte dos a´lbuns dos Sitiados entende a postura de Aguardela, uma vez que aprendeu a ver nele algue´m «com ideias extremamente claras, um tipo com a cabec¸a extremamente bem resolvida em termos de carreira, de mu´sica, daquilo que queria fazer. Logo, tinha um lado extremamente determinado, teimoso ate´, por vezes na~o ouvia ningue´m, porque sabia exatamente o que queria». Um negociante complicado para um patra~o: «na~o era de maneira nenhuma um negociante fa´cil. Fossem capas dos discos, fotografias para a promoc¸a~o, os posters, os videoclips que se faziam na altura, em tudo isto ele era muito pouco recetivo a ouvir as opinio~es de terceiros. Ouvia-te calado, era uma caracteri´stica dele, e no fim dizia algo do ge´nero "Toze´, percebo a tua opinia~o, mas na~o concordo e ou as coisas sa~o como eu digo ou enta~o nada feito." Na~o era uma pessoa nada fa´cil em termos negociais, mas era uma pessoa cheia de talento, fanta´stico, um beli´ssimo compositor. Era um grande artista, sem du´vida nenhuma, mas com um feitio muito complicado».

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Dos tempos de trabalho com a banda, recorda [o então promotor da BMG] Tiago Azevedo e Silva: «Sempre que havia uma reunia~o com os Sitiados na BMG havia logo qualquer coisa para ser assunto para o resto do dia e a galhofa mais que muita.» O promotor reconhece que Aguardela sabia engolir algumas coisas, mas tambe´m sabia ate´ onde podia ir naquilo que entendia ceder: «Percebia muito bem como e´ que o mercado funcionava, as concesso~es que tinha de fazer e os benefi´cios que essas concesso~es lhe podiam dar.» Esta eterna guerra entre a vontade dos artistas e aquilo que acreditam ser a defesa dos seus interesses, por um lado, e as estrate´gias de promoc¸a~o e comercializac¸a~o das editoras, por outro. Quando uma banda vende muito, como foi o caso dos Sitiados dos dois primeiros a´lbuns, ganha um poder negocial difi´cil de contrariar. Pelo menos era assim que as coisas funcionavam nos anos noventa do se´culo passado. Tiago Silva afirma que a manager Laura Diogo queria fazer do Joa~o e da Sandra si´mbolos sexuais da juventude portuguesa da e´poca. «E quem os conhece... da´-me uma vontade de rir enorme. Objetivamente, a Sandra e´ uma mulher bonita, o Joa~o era um homem bonito, mas...»

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Toze´ Brito, ao contra´rio do que afirmam va´rios mu´sicos dos Sitiados, garante na~o ter sido surpreendido pelo sucesso de Vida de Marinheiro: «sentimos imediatamente que aquela canc¸a~o ia ser um e^xito. Vimo-los tocar algumas vezes antes de o disco sair e as pessoas ja´ cantavam aquela mu´sica, portanto foi muito fa´cil apostar naquela canc¸a~o, sabia que era por ali que ti´nhamos de ir, aquele era o caminho. E, a partir dali, o e^xito foi natural. Quando uma canc¸a~o tem o e^xito que aquela teve, e´ porque e´ uma grande canc¸a~o». Ainda hoje no imagina´rio coletivo portugue^s, trauteada, adaptada, tantas vezes cantada. «E´ uma canc¸a~o intemporal, "esta vida de marinheiro" somos no´s todos aos saltos, sem porto de abrigo, andamos a navegar por ai´ sem sabermos onde vamos parar no dia seguinte, o "esta´ a dar cabo de mim" esta´ a dar cabo de todos no´s, fala da inseguranc¸a que todos sentimos quando estamos meio perdidos. Mas com uma alegria contagiante, que esse era o truque da canc¸a~o, era uma mu´sica extremamente feliz, alegre», afirma o veterano da mu´sica feita em Portugal. Toze´ Brito reconhece que a partir desse primeiro a´lbum a carreira do Joa~o comec¸a a fazer-se sem preocupac¸o~es comerciais, «muito mais a` procura de fazer boa mu´sica e mu´sica que ele sempre gostou de fazer, e que o levou, depois, aos outros projetos como A Naifa e o Megafone, projetos que ja´ na~o acompanhei tanto mas pelos quais tenho imenso respeito».

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