Dias do Holocausto revividos numa sala de tribunal

John Demjanjuk, alegado guarda de um campo de extermínio, protagoniza o primeiro processo, na Alemanha, contra um estrangeiro por crimes do Holocausto e talvez o último grande julgamento de um provável criminoso nazi. Em Munique, relatos de familiares de sobr eviventes não despertam a atenção do acusado, um velho com ar frágil. E a História mistura-se com a justiça. Por Maria João Guimarães

O processo conturbado do julgamento de John Demjanjuk, acusado de ter estado envolvido na morte de mais de 27 mil pessoas enquanto guarda no campo nazi de Sobibor, na Polónia ocupada, recomeçou ontem na cidade de Munique, na Alemanha. O julgamento centra-se numa personagem complexa e tem levantado questões sobre as regras da História e da justiça, sobre quais as vantagens de sentar no banco dos réus um homem velho e doente, e finalmente sobre quem falará acerca do Holocausto quando os seus protagonistas, vítimas e carrascos, tiverem morrido.

Algumas questões não são novas. Neste, como em todos os julgamentos do Holocausto, "é impossível separar justiça de História", nota Mathias Thaler, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Porque "o objectivo destes processos é também tentar ensinar realidades históricas, não é só [o caso de] um criminoso em particular - pretende-se ensinar alguma coisa ao público", diz. "É isso que os torna complexos, interessantes e atacáveis (do ponto de vista da defesa)."

A investigadora em assuntos judaicos Esther Mucznik acha que não se deve misturar justiça com História e duvida do "efeito pedagógico" deste processo. Mas "sei que se fosse filha de pessoas assassinadas em Sobibor quereria que fossem divulgados ao mundo os crimes lá cometidos e condenados os seus perpetradores", diz, num e-mail ao P2.

Olhar para um forno

A sala de tribunal torna-se assim um palco para os familiares de pessoas mortas em Sobibor contarem a sua história. O objectivo "é sobretudo dar voz às vítimas", diz Mathias Thaler.

No caso de Demjanjuk, há mais de duas dezenas de queixosos: os familiares das vítimas (há apenas quatro sobreviventes de Sobibor no processo), que têm tido intervenções emocionadas em tribunal. Como escrevia a agência Reuters, "a História torna-se viva no julgamento de Demjanjuk". Muitos familiares de vítimas viajaram até Munique vindos da Holanda, de Israel ou dos Estados Unidos. Muitos expressaram especial frustração com a interrupção do julgamento - o processo, que começara no final de Novembro, tinha sido adiado após menos de uma semana porque Demjanjuk, 89 anos, começou a ter febre.

O que os familiares das vítimas queriam era, sobretudo, subir ao palanque e contar a sua história.

Rudolf Solomon Cortissos, de 70 anos, tentava controlar a emoção numa das primeiras sessões do julgamento. Falava da carta que a mãe atirou de um comboio a caminho de Sobibor, com a esperança de que chegasse à família, e chegou. "Isto é tudo o que eu tenho da minha mãe", disse o empresário holandês, de 70 anos, segurando o manuscrito amarelado, num testemunho repetido na imprensa internacional.

"A minha mãe Emmy atirou-o do comboio antes de morrer nas câmaras de gás de Sobibor", contou o holandês, descendente de judeus sefarditas portugueses, agora sem conseguir controlar as lágrimas, descreve o diário britânico The Times. Cortissos acabou por ter de receber cuidados médicos, depois de sair da sala do tribunal. Numa entrevista confessou que ainda hoje não consegue olhar para um forno a gás ou para um chuveiro sem se lembrar do Holocausto. Até o dentista é penoso, trazendo imagens dos dentes de ouro que foram retirados aos judeus pelos nazis.

Martin Haas, 73 anos, viajou dos Estados Unidos para contar no tribunal, num alemão vagaroso mas seguro, como escapou, aos sete anos, da morte num campo de concentração - ao contrário da mãe, da irmã e do irmão, que morreram em Sobibor, e do pai, que morreu em Auschwitz. "Lembro-me que era um dia de chuva", disse o oncologista de San Diego, segundo a notícia do diário norte-americano Los Angeles Times. Uma amiga de família teve rapidez de raciocínio e conseguiu salvá-lo: "Ela escondeu-me debaixo da capa e levou-me mesmo a tempo."

No julgamento vão depor apenas quatro sobreviventes de Sobibor. Um deles é Jules Schelvis, que esteve no campo apenas algumas horas, em Junho de 1943. Um guarda hesitou, e ele acabou por ser poupado - mas perdeu a sua jovem mulher Rachel, que tinha então 20 anos, e mais de 30 outros membros da sua família alargada.

"Justiça é a palavra que tenho constantemente na cabeça, mesmo depois de todos estes anos", disse Schelvis, que vive na Holanda, à AFP na véspera do início do julgamento, no final de Novembro.

Este julgamento será, prevê-se, o último contra um acusado de crimes nazis. Por outro lado, é o primeiro destes processos, na Alemanha, em que o suspeito não é um cidadão alemão.

No tribunal, ninguém tem a certeza de que o arguido ouve os testemunhos: Demjanjuk tem passado as sessões do julgamento com os olhos semicerrados, na sua cadeira de rodas, manta pelos joelhos, parecendo alheado.

Mathias Thaler diz que a vertente didáctica do julgamento é "muito arriscada": "Demjanjuk é muito velho, pode estar doente (não há certezas, porque filmagens antes da sua extradição dos EUA para a Alemanha mostravam-no a andar normalmente), a imagem que temos dele em tribunal é de um velho frágil e doente." A incógnita, sublinha, é "como irá o público reagir a este possível perpetrador de crimes nazis que é um velho, frágil, numa cadeira de rodas".

Depois há toda a história à volta de Demjanjuk: nasceu na Ucrânia, foi soldado do Exército Vermelho e depois capturado pelos nazis, que o terão obrigado a trabalhar num campo de prisioneiros - se bem que ele alegue que nunca foi guarda em Sobibor, mas apenas prisioneiro. Ainda trabalhou para os aliados antes de ir viver para os Estados Unidos. Trabalhou no sector automóvel, no Ohio, durante 25 anos, mas acabou por ser extraditado para ser julgado em Israel, onde foi preso e condenado por crimes no campo de Treblinka (também na Polónia).

Após sete anos de prisão, as autoridades israelitas aperceberam-se de que Demjanjuk não era o guarda que tinha cometido os crimes em Treblinka, e libertaram-no. Demjanjuk ainda viveu nos EUA mais 15 anos, até novas provas levarem as autoridades americanas a retirar-lhe a cidadania e, agora, a extraditá-lo para a Alemanha.

O argumento da defesa tem duas abordagens: a primeira é questionar se era mesmo Demjanjuk o guarda de Sobibor. A única prova material que existe é um cartão de identificação. Mas Demjanjuk já tinha sido uma vez julgado - e condenado - em Israel por ser uma pessoa que não era. A segunda linha de argumentação consiste em alegar que ele não teve escolha e foi obrigado a executar ordens dos "verdadeiros nazis" - e a defesa lembra ainda que a justiça alemã não foi propriamente eficaz a lidar com os seus próprios criminosos nazis.

Thaler sublinha que esta é a questão central no processo: como vão ser responsabilizadas as pessoas do nível mais baixo da cadeia de comando. "Demjanjuk é acusado de mais de 27 mil crimes. Isto é parte da lição histórica - estar no final da cadeia de comando não pode ser desculpa moral ou legal", diz o investigador, adiantando que há registo de casos de pessoas que se recusaram a ser guardas e não foram assassinadas. "Claro que devem ter sido ameaçadas, foram presas, espancadas. Mas não foram mortas. É um dado que começou a surgir agora."

Uma outra nota deste processo é a impassibilidade do suspeito durante as sessões.

O fim de um ciclo

Para Esther Mucznik, o processo contra Demjanjuk em Munique representa sobretudo "o fim de uma era em que há testemunhas vivas, sobreviventes ou carrascos, ou seja, pessoas que são elas próprias a verdade viva do genocídio nazi". Isso "abre a porta à negação, ao revisionismo histórico, quer seja por ignorância quer por razões políticas ou ideológicas, ou ainda simplesmente devido ao esquecimento".

Mathias Thaler concorda que há um risco de aumento do negacionismo num futuro próximo. "Não haverá vítimas vivas para dizer "eu estive lá"", isto apesar de o Holocausto ser "provavelmente um dos acontecimentos históricos mais investigados - sabe-se quem fez, quem planeou, quem decidiu", lembra. "Há uma enorme quantidade de provas" resultantes dessas investigações, que têm aliás sido utilizadas em processos contra pessoas acusadas de negar o Holocausto. "Os tribunais já se apoiaram muito nestas investigações."

A proximidade do final dos testemunhos vivos torna ainda mais urgente, defende, a consolidação da investigação histórica, "para contrariar quem negue ou minimize o Holocausto".

Há iniciativas, como a da Task Force Internacional para a Memória do Holocausto, em que Esther Mucznik participou recentemente, "que lançou um apelo a cerca de 30 países para estimularem os estudos académicos, o ensino nas escolas e o registo de testemunhos orais dos ainda sobreviventes - para que a memória não se apague", conta a investigadora.

"Mas a verdade", conclui, "é que contra o tempo e o esquecimento o combate é desigual."

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