Coreia do Sul Electrónica de consumo, desigualdade e K-pop num cantinho da Ásia

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Uma mulher budista lê um livro sagrado em frente ao templo de Chogye, em Seul Um investidor analisa o dia da bolsaQuatro navios de construção sul-coreana, da Samsung Heavy Industries, em Geoje, a 470 km de Seul JUNG YEON-JE/AFP

A reunificação das duas Coreias não se vislumbra, mas, ainda que apenas como hipótese longínqua, não saiu por completo dos horizontes. Nos últimos dias os olhares do mundo viraram-se para a Coreia do Norte. E a sul? Abaixo do paralelo 38 vive-se um período de notável prosperidade.

O talão electrónico sem fios que temos na mão vibra e apita. O lanche pedido já está pronto e podemos ir levantá-lo ao balcão. "É um sistema muito comum por aqui", diz-nos a nossa companhia, num inglês com sotaque da Califórnia. Estamos numa cafetaria de Seul. Lá fora está sol. À nossa volta vários jovens trabalham nos seus computadores portáteis. Aqui, torna-se particularmente evidente que a sociedade sul-coreana de hoje resulta de uma certa abertura à cultura ocidental, mas mantém também, em vários aspectos, um forte fechamento.

Seul, a gigantesca capital do país, tem mais de dez milhões de habitantes na cidade, 22 milhões na sua região metropolitana. Tal como noutras grandes cidades asiáticas, a arquitectura dos arranha-céus e bairros residenciais mais recentes parece de inspiração norte-americana, mas, num país com um território pouco maior do que Portugal, o crescimento em altura resulta também da pressão demográfica.

À primeira vista, é grande o contraste com as imagens mais comuns de Pyongyang, a capital norte-coreana, onde os principais edifícios parecem saídos dos anos 50 ou 60 do século passado e onde não imaginamos as multidões apressadas e o ambiente de consumo de Seul, pelo menos, a avaliar pela pequena parcela de realidade que o muito fechado regime do Norte deixa passar acerca da vida acima do paralelo 38, que divide a península desde 1945, quando após a II Guerra Mundial a União Soviética e os EUA decidiram dividir o país em dois sistemas - comunismo a norte, capitalismo a sul.

Apesar de Seul mudar quando se sai das grandes avenidas - as ruas a tornarem-se menos organizadas, sem passeios para peões, com edifícios incaracterísticos, de dois ou três pisos, linhas simples e direitas -, nas artérias principais, a profusão de lojas que ostentam nomes ocidentais - em alfabeto latino, em vez do hangeul nativo - não deixa passar despercebido o fascínio exercido na Coreia do Sul por bens e tradições europeias. As padarias mais trendy são as de cadeias, franchisings, e chamam-se Paris Baguette ou Tous les Jours. As cafetarias podem ser Caffé Bene ou ter outro qualquer nome de ressonância europeia, com ar requintado, serviço expedito, e café tipo "americano". Os carros em circulação são quase todos de marcas sul-coreanas, mas com muitos modelos a lembrar marcas europeias, como a Mercedes ou a Lancia. E quase não se vêem pequenos modelos utilitários.

O luxo "é europeu"

Os sul-coreanos "são obcecados por marcas europeias, que vêem como um sinal de luxo", explica Henrique Borges, embaixador de Portugal em Seul. Acontece com as "roupas italianas, perfumes franceses e carros alemães". A Espanha é associada a "consumo popular e turismo". E, na sua opinião, Portugal poderia até tirar partido desta imagem positiva da Europa para vender no país mais vinhos ou cortiça, e fazer também algumas parcerias tecnológicas.

A influência do Ocidente está igualmente patente nas práticas religiosas. Metade dos 48,5 milhões de sul-coreanos - imagine-se a população espanhola a viver em peso numa área igual à de Portugal - praticam uma religião. Deles, 10,7 milhões são budistas (mais de 44%), 8,6 milhões protestantes (mais de 35%) e 5,1 milhões católicos (21%).

A Coreia do Sul saiu da guerra fratricida com o Norte, entre 1950 e 1953, e na qual perderam a vida cerca de 2,5 milhões de pessoas, como um dos países mais pobres do mundo. Pelo meio, em 1951, estabeleceu relações diplomáticas com vários países europeus, incluindo Portugal, há 50 anos. Em pouco mais de meio século, ergueu-se como potência exportadora de telemóveis, televisores, semicondutores, automóveis e navios mercantes, com marcas como a Samsung ou a LG.

O país já estava socialmente muito polarizado desde o domínio colonial japonês (1910 até ao fim da II Guerra Mundial) e tornou-se economicamente mais desigual desde a intervenção do FMI, em 1998. Esta tendência não se atenuou e, de momento, "a polarização de rendimentos é uma grande questão", nota Suk Ki Kang, analista do gabinete de previsões da Korea Internacional Trade Association (KITA), com 70 mil empresas associadas e um complexo designado World Trade Center, que ocupa todo um quarteirão na parte nova da cidade, incluindo uma torre de escritórios com 55 pisos.

O processo de industrialização iniciou-se nos anos 1960, sob a égide do então presidente Chung Hee Park, que em 1961 liderou um golpe militar e deu início a um período de 18 anos de enorme expansão económica, orientada para a exportação, à custa também do sacrifício dos direitos civis e das liberdades políticas. Mesmo assim, "foi apreciado por ter dado ênfase ao desenvolvimento", conta Henrique Borges. Já na Coreia do Norte, a economia está delapidada e a ONU estima que 3,5 milhões dos cerca de 24 milhões de habitantes do país sofram de subnutrição grave.

A fronteira entre os dois países está fechada e existe uma área de acesso restrito à linha de demarcação, a Zona Desmilitarizada (ou DMZ, de Demilitarized Zone), que se transformou numa atracção turística e da qual a Coreia do Sul fez um fenómeno de massas, com vários pontos a que leva os turistas e todo um conjunto de objectos de recordação e publicações.

As visitas dos turistas que se deslocam até ao Comando de Segurança Conjunto (Pan Mun Jeom), o ponto da linha de demarcação onde há instalações dos dois países, para efeitos de resolução das questões que possam surgir, são cuidadosamente encenadas pelos sul-coreanos, que mandam acenar para ali, fotografar aqui, posar para a foto de grupo...

É o local onde nos aproximamos mais do Norte. Os edifícios são quase simétricos, de ar um pouco vetusto do lado norte - a principal diferença face ao sul. No meio, meia dúzia de barracões pré-fabricados albergam as salas de reunião entre as partes. De cada lado da linha, a poucos centímetros de distância entre si, soldados de ambos lados ensaiam poses de enfrentamento, enquanto os turistas do Sul entram e saem de um destes pavilhões.

A perspectiva de reunificação não faz parte do discurso comum, mas pode ser abordada subtilmente e não está completamente excluída de um horizonte longínquo. Símbolo materializado dessa ideia é a estação de comboio de Dorasan, na linha Seul-Pyongyang, 700 metros a sul da zona desmilitarizada. Recente, com ar resplandecente, resulta do donativo de um milionário e é apresentada aos turistas como local de esperança - será a alfândega de entrada, se o tráfego voltar a ser possível entre as duas Coreias.

Há quase dois anos, o Wall Street Journal publicou um texto de opinião de um investigador da Universidade de Stanford em que estimava em doisa cinco biliões (milhões de milhões) de dólares os custos de uma eventual reunificação coreana, num cenário bastante mais complicado do que o alemão no início da década de 90. Intitulado Contemplando a reunificação coreana, considerava que o regime do Norte parecia crescentemente instável e poderia entrar em colapso mais rapidamente do que se imagina.

Chaebols e PME, ricos e pobres

"O presidente [Myung-bak] Lee falou recentemente sobre a coexistência entre as grandes empresas e as PME", lembra Kang, chamando a atenção para o facto de o problema não ter a ver estritamente com a desigualdade de rendimentos das pessoas, mas também com as dificuldades que as PME têm para obter no mercado preços que lhes permitam sobreviver e pagar salários razoáveis.

Os grandes grupos - os famosos chaebols, como a Samsung, a LG ou a Daewoo -, aos quais se deve grande parte do sucesso económico do país, são campeões das exportações e permitem aos sul-coreanos empenhar-se na celebração de acordos de comércio livre com várias regiões do globo. A 1 de Julho, entrou em vigor o acordo com a UE e o acordo com os EUA deverá começar a produzir efeitos dentro de pouco tempo.

Os chaebols "começaram a cuidar dos seus trabalhadores nos anos 1980 e agora querem considerar os interesses das PME, para poderem continuar a exportar com sucesso", porque são elas que lhes fornecem componentes com qualidade, diz, por seu lado, Sam Ock Park, professor de Geografia Económica da Universidade Nacional de Seul.

Para atacar o problema, o presidente Lee nomeou recentemente uma comissão que tentará harmonizar os interesses das duas partes. A meta é ajudar o proclamado objectivo do Governo de equilibrar a relação entre chaebols e PME, no sentido de obter um "crescimento [da economia] partilhado por toda a sociedade", tendo poderes disciplinadores de natureza fiscal, explica o director da Divisão de Política Económica do Ministério da Estratégia e Finanças, Young-Hwan Cha.

Por outro lado, a relação entre estes dois grupos de actores - chaebols e PME - é também determinante para gerir o desemprego, que começa a ser um problema de primeiro plano. Segundo dados recentes, a taxa oficial está em apenas 3,1%, mas os jovens que saem das universidades têm cada vez mais dificuldade em encontrar trabalho. "Os grandes conglomerados não criam emprego, porque continuam a automatizar", diz Choong Yong Ahn, professor de Economia, provedor do Investimento Estrangeiro e presidente do Comité para a Reforma Regulatória do país.

"A criação de emprego é agora a primeira prioridade e as PME podem ajudar mais nisso do que as grandes empresas", adianta. Ressalva, porém, que não sabe como a questão será resolvida.

Para já, o foco está na responsabilidade social das empresas, em que "um preço justo às PME é uma das componentes", mas que passa também por bolsas de estudo e outras iniciativas.

A "obsessão" da educação

A maior diferença de rendimentos, nos últimos anos, tem sido acompanhada de maior dificuldade de ascensão social para os pobres, o que acontece por via de maiores limitações no sistema de ensino. "Há 30 anos, as pessoas nas áreas rurais podiam subir na vida. Se se esforçassem, trabalhassem e estudassem, entravam nos bons liceus, e, a partir daí, podiam ir para boas universidades e arranjar empregos. Nesses tempos, muitas pessoas pobres do campo tornaram-se famosas, políticos ou universitários. Mas agora é um pouco difícil", diz o professor Park.

Porquê? "Antes, nas áreas rurais, se as pessoas tivessem boas notas, podiam ir para boas escolas. Agora não, porque os liceus funcionam por áreas de influência e nas áreas rurais o ensino básico e médio é pobre, as boas escolas de Seul ou Busan [a segunda maior cidade do país] só aceitam pessoas das suas áreas."

Além disso, mesmo que as boas escolas aceitassem pessoas de fora, "as pessoas de menores recursos não podem pagar aulas suplementares para os seus filhos, em institutos privados". Estas aulas entraram nos hábitos dos sul-coreanos, numa espécie de complemento às aulas normais das escolas públicas, o principal pilar do sistema de ensino, explica ainda Park. E diz que o Governo acabará por ter de abordar a questão das desigualdades sociais, num país que terá um nível de diferenças "semelhante ao da Europa central".

Os sul-coreanos têm investido muito na educação, que explica grande parte da meteórica ascensão do país no índice de desenvolvimento humano (IDH) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), onde na década de 80 tinham uma posição muito idêntica à de Portugal. Em 1991, os dois países estavam respectivamente na 35ª e 36ªposição; em 2011, estão, respectivamente, em 15º e 41º lugar. Nas esperança média de vida os valores são semelhantes (a rondar os 80 anos), mas no rendimento a diferença já é significativa. Segundo dados do FMI, o PIB é semelhante - 23.750 dólares por habitanteem paridades de poder de compra para a Coreia (PPC), face a 22.700 para Portugal -, mas o PNB (o produto nacional bruto, que representa o PIB mais a balança de rendimentos com o exterior) é bastante superior: 28.230 dólares PPC, enquanto em Portugal apenas 20.573, segundo o PNUD.

"Este é um país que não tem autocomplacência, ao contrário do que acontece em Portugal", nota Henrique Borges, dizendo que a educação é uma responsabilidade das famílias e é comum as classes médias baixas terem os filhos a estudar no estrangeiro. Os sul-coreanos estão geralmente entre as três maiores comunidades de estudantes estrangeiros nos EUA. E Henrique Borges conta que há uma elevada taxa de suicídio jovem, justamente devido a uma pressão muito forte sobre os estudantes. Na sua opinião, o país "continua a ser muito fechado", apesar de parecer aberto, e "protegeu muito a indústria nacional", por meios tarifários e não tarifários, o que "vai continuar". "Fazem-no através de exigências técnicas." Nalguns aspectos parece-lhe mesmo um país "menos aberto do que a China", o gigantesco vizinho no qual a península coreana parece pendurada, quando se olha para o mapa.

Seja como for, os sul-coreanos parecem bastante autoconfiantes, ou pelo menos as autoridades assumem essa postura, que quadra com o ambiente de consumo em Seul. E com a imponência da frente marítima de Busan, ligada à capital desde 2004 por um comboio de alta velocidade que pode atingir os 300km/h. Ou com os trabalhos em curso para a renovação de Yeosu, uma cidade piscatória em declínio que no próximo ano receberá uma exposição internacional sob o tema The Living Ocean and Coast.

A "onda coreana"

As autoridades sul-coreanas querem aumentar a influência internacional do país e nos últimos anos têm contado com uma "aliada" de peso: a Korean wave, ou "onda coreana", uma expressão cunhada pela imprensa chinesa na segunda metade dos anos 90 em referência à popularidade da cultura pop coreana no seu país. Desde então, o país afirmou-se como um novo centro de produção de entretenimento internacional, exportando vários produtos para os seus vizinhos asiáticos.

A "onda" iniciou-se com os dramas televisivos, passa pelo cinema, que começou a frequentar os festivais internacionais, e alargou-se à música popular, conhecida como "K-pop". Os álbuns dos grupos musicais sul-coreanos passaram a frequentar os tops japoneses e a vaga começou a alargar-se a outras regiões do globo, como o Médio Oriente, África, América do Norte e Europa. Aliás, a 10 e 11 de Junho último o popular e consagrado Zénith de Paris encheu-se de jovens que viajaram de toda a Europa para assistir à actuação de vários cantores agenciados por uma importante empresa sul-coreana.

Esta "onda", que em Portugal não se faz notar particularmente, teve efeitos positivos noutros domínios para este pequeno país rodeado por gigantes. "Foi transformada numa forte preferência por outros produtos coreanos, como electrónica, telefones móveis, carros, cosméticos e estilo de vida", lê-se numa publicação oficial do Serviço de Informação e Cultura da Coreia do Sul. O crescente interesse pela cultura coreana desencadeou também "um aumento drástico" do número de turistas que visitam o país.

O P2 viajou a convite das autoridades da Coreia do Sul

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