Conta-nos histórias, Enda Walsh

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COLIN MCPHERSON/SYGMA/CORBIS

É um dos mais celebrados dramaturgos contemporâneos de língua inglesa, com uma obra vigorosa onde as personagens contam histórias irlandesas para reconfortar as almas de qualquer país. No Porto, um ciclo está a trazê-lo até muito perto de nós.

Enda Walsh está ansioso por voltar à sua rotina habitual. Deixar a filha na escola, às nove, e trabalhar em casa até às seis - bom, não se consegue escrever durante tanto tempo, portanto nos intervalos Enda também lê, ouve música (entre outras "coisas tristes e deprimentes", muito Bill Calahan) e limpa a secretária muitas vezes. Enquanto o regresso à rotina habitual não acontece, o dramaturgo e argumentista irlandês (escreveu Fome a meias com Steve McQueen) anda por Nova Iorque, onde ouve sobretudo Rufus Wainwright, com quem está a trabalhar num "pequeno e estranho filme", ainda sem título, e os temas de Once, o musical escrito a partir do filme homónimo, que acabou de estrear na Broadway. Um musical, admite, é coisa que nunca tinha feito, e nem sabe porque o convidaram a ele - só sabe que aceitou porque na altura estava a trabalhar num filme "muito, muito deprimente" e "precisava de estar numa sala onde se falasse de amor e coisas assim..." Não parece um trabalho dele, diz, mas fez-lhe muito bem à alma.

Fala com o Ípsilon antes de embarcar em mais um avião, mas não em direcção ao Porto, onde desde a semana passada os Artistas Unidos e o Teatro Carlos Alberto (TeCA) lhe dedicam um programa que decorre até ao próximo dia 13. Enda Walsh não virá até cá pessoalmente, mas estará muito perto de nós, ainda que por interpostas personagens, as das cinco peças, mais um filme, que compõem o Ciclo Enda Walsh: Penélope (em estreia nacional dia 11), A Farsa da Rua W e Acamarrados (estreadas em Lisboa em 2011 e 2008, respectivamente), O Chat e O Novo Dancing Eléctrico (leituras encenadas), e Fome, o filme de Steve McQueen. De resto, não pára, está em todo o lado, menos em casa.

Quando voltar a rotina irá, como de costume, ver "peças novas" ao National Theatre e "trabalhos diferentes" ao Barbican. E regressará regularmente a Dublin, para visitar a família. Em Londres, onde vive desde 2006, está sempre rodeado de irlandeses, mas é bom voltar ao lugar de onde vêm as suas histórias: a sua próxima criação teatral, aliás, é uma ópera do compositor irlandês Donnacha Dennehy, Gas, sobre um caso de suicídio assistido ocorrido em Dublin em 2002.

Mas é no National, em Londres, que está em cartaz - há um ano - o monólogo Misterman, talvez o maior sucesso do autor até à data, pelo menos na capital britânica, com o actor Cillian Murphy (o mesmo de A Origem, de Christopher Nolan), que trabalha com Enda Walsh já desde Disco Pigs, de 1996). A versão actual, encenada pelo próprio dramaturgo, é muito diferente da anterior, diz. "Tornou-se na maior peça que eu já fiz, no maior palco do National Theatre. Encenar ajudou-me a compreender melhor a peça." Misterman e Disco Pigs (a primeira peça de Enda Walsh a correr mundo) são textos do tempo em que o autor se mudou para Cork, a segunda cidade da Irlanda.

Serões irlandeses

O sucesso de Misterman - a história de um homem solitário, vivendo na periferia de uma pequena cidade, num edifício que é uma espécie de armazém de ferro-velho, à conversa com as gravações das vozes dos vizinhos e da própria mãe - surpreendeu muito o autor e encenador. Como é hábito nas suas peças, o protagonista conta histórias - o que também é uma história, aliás muito irlandesa.

Das cinco peças do Ciclo Enda Walsh, A Farsa da Rua W, apresentada na semana passada, e O Novo Dancing Eléctrico (dia 12) são as que mais fazem uso do clássico mecanismo do teatro dentro do teatro. Na primeira, um pai leva os filhos a recapitularem histórias de juventude que afinal nunca viveu. Na segunda, a irmã mais nova faz as outras duas recordarem a noite em que foram desiludidas por um cantor famoso. Em ambas, as perucas e o guarda-roupa são utilizados para fingir e reviver.

De onde vêm estas ideias? Vêm da tradição irlandesa de contadores de histórias, que remonta pelo menos, diz Enda, ao século XIX: "Em cada localidade, há sempre alguém que se disfarça e faz de outras pessoas para contar as histórias locais." Estas representações, mal vistas pelas autoridades inglesas, eram feitas clandestinamente. E, em casa de Enda, as reuniões familiares eram passadas a recontar histórias e a apresentar as mesmas personagens vezes sem conta. "As minhas peças são parecidas com esses serões irlandeses, que começam com histórias cómicas, passam por um momento mais melancólico e no fim da noite, já de madrugada, se tornam mais abstractas e poéticas." Apesar de Enda viver actualmente em Londres, as suas histórias ainda são irlandesas e têm a ver com "essa maneira muito irlandesa de ver as coisas": "Num certo sentido, todas as personagens são eu. Não que o meu pai e os meus irmãos sejam como os de A Farsa da Rua W, claro."

Para Enda, a dramaturgia irlandesa, certamente a dos seus contemporâneos, tende a ser um pouco mais "abstracta" e "expressionista" do que a dos britânicos. Os irlandeses falam do mundo quotidiano de um modo mais poético, "tal como Portugal, que também tem ao lado um país muito maior", compara. "Analisamo-nos a nós próprios com maior profundidade, numa espécie de investigação poética. Eu continuo à procura de definir a minha identidade enquanto irlandês. Sinto-me mais irlandês aqui em Londres."

Prà piscina

Penélope é a peça em estreia nacional neste ciclo. Trata-se de um texto escrito a partir da Odisseia, por encomenda do Oberhausen, um teatro da Alemanha, país onde Enda tem sido muito bem acolhido desde a montagem de Disco Pigs por Thomas Ostermeier, ainda nos anos 1990. A obra, porém, centra-se nas figuras dos pretendentes de Penélope, instalados numa piscina reconvertida em sala de estar, onde contam histórias para tentar redefinir os seus mundos pessoais, sob a ameaça da chegada iminente de Ulisses.

As outras duas peças do ciclo, O Chat (Chatroom) e Acamarrados (Bedbound) - esta em cena no TeCA de hoje até domingo - também decorrem em localizações inusitadas. Na primeira, a conversação on-line é transposta para um conjunto de cadeiras onde os actores verbalizam o que escrevem no chat. Na segunda, um pai e uma filha estão praticamente emparedados, presos a uma cama pelo esgotamento nervoso dele.

É inevitável pensar em Beckett ou em outros autores do chamado Teatro do Absurdo. Esses locais, porém, não têm a ver com nenhuma tradição teatral mas com situações concretas. As coisas são mais simples, diz Enda: "As peças acompanham-me muito de perto, são textos de uma hora e meia que eu tento que tenham a ver com uma situação real, o mais real possível." Em ambos os casos, a linguagem é diferente da usada no dia-a-dia, como se as personagens de Enda Walsh fossem caracterizadas não só pela estranheza da situação e da localização, mas da própria maneira de falar. Do mesmo modo, a linguagem serve para o autor conhecer melhor as personagens. Para exemplificar, Enda lembra uma conversa tida com Sarah Kane, em que contava à dramaturga britânica (falecida em 1999) que estava a trabalhar numa peça nova mas ainda não tinha escrito uma única linha de diálogo. Kane respondeu que, nesses casos, costumava limitar-se "a murmurar as personagens". Mesmo o guião de Fome, co-escrito com o realizador Steve McQueen (o TeCA exibe-o amanhã), parece usar estes mesmos recursos: o estabelecimento prisional de Maze é simultaneamente um lugar reconhecível e estranho, e o famoso diálogo de 17 minutos em plano fixo entre Bobby Sands e um padre é bizarro e familiar. A maior parte do filme, aliás, não tem palavras e certamente não é a intriga, mas a fábula, que lhe interessa. "Não gosto assim tanto de enredos", diz. "O cinema e a televisão têm muita trama. Prefiro as peças que são sobre o "como" e o "porquê", onde as pessoas tentam mostrar a sua alma."

Nas próximas semanas, no TeCA, o público de teatro poderá ver o modo como as personagens de Enda se recriam umas às outras contando histórias que, à primeira vista, parecem locais e particulares, mas vai-se a ver e são universais. O autor continuará a viajar entre aeroportos, e as suas histórias de origem irlandesa terão destino mundial.

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