Cat Power perseguiu as canções de Sun durante anos e só as encontrou quando ficou sozinha

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AUSTIN CONROY

Batemos à porta. Do outro lado, silêncio total. Voltamos a bater. Do outro lado, agora a voz sumida de Chan Marshall. É verdade que é ainda manhã, não demasiado cedo, mas não é o sono que retarda a resposta dentro do quarto de hotel no centro de Hamburgo. "Quem é?", pergunta ela, mal se fazendo ouvir. O representante da editora de Cat Power na Alemanha identifica-se e finalmente a porta abre-se. À nossa frente, Marshall, 40 anos, agora cabelo curto - consequência imediata da sua ruína amorosa -, a justificar-se de imediato: naquela mesma manhã já foi estranhamente olhada um par de vezes por uma "rapariga com uma tatuagem de dragão" ao passar à sua porta e os receios de stalkers levam-na a tomar cuidados redobrados. Pede então ao homem da Beggars alemã para mudar o seu nome de registo no hotel. Pode soar a piada, pode soar à ficção de Stieg Larsson a infiltrar-se num calmo e soalheiro dia na pacatez de Hamburgo, mas Marshall insiste até garantir que o nosso anfitrião a está a levar a sério.

Assim que se fecha a porta, caímos sem rede e instantaneamente na rede de intimidade de Chan Marshall. As perguntas de circunstância em pingue-pongue "De onde vieste?", "Quando chegaste?" sucedem-se enquanto a mulher que conhecemos como Cat Power escova os dentes ou ao mesmo tempo que aplica um desodorizante em entrevistada e entrevistador - "Tu podes ter tomado banho mas eu não e temos de estar em igualdade de circunstâncias", informa-nos - e apesar do luxuoso quarto de hotel sentamo-nos, por fim, no chão. Ao nosso lado está a tocar, desde que entrámos, Blood on the Tracks, de Bob Dylan. E assim que o mencionamos, abrem-se as comportas e Marshall arranca numa torrente confessional. É público que Sun, o seu novo álbum, a lançar a 7 de Setembro, foi composto durante a sua relação com o actor Giovanni Ribisi (o fotógrafo, recém-marido de Scarlett Johansson em Lost in Translation) e terminado pouco depois da separação. Mas ao contrário do seu ídolo Dylan, ficcionista empenhado da sua própria biografia, Marshall é desconcertante na aparente ausência de muros que (não) ergue à sua volta.

Vai do relato da amiga a quem pediu que lhe cortasse o cabelo na esperança tão legítima quanto inocente de que as tesouras levassem também consigo os despojos amorosos, vai daqui até precisar o dia em que se separou de Ribisi para chegar ao número quase redondo de três meses atrás das costas. E passa a mão pelo cabelo como forma de se beliscar, de se certificar que não foi apenas pesadelo de uma noite mal dormida numa cidade estranha. Volta a Blood on the Tracks, mas sempre falando de si: "Quando nos juntámos ouvíamos isto juntos e nunca ouvi este disco com mais ninguém. Andávamos de carro e cantávamos isto. E já não ouvia este disco há quatro anos, que foi o período durante o qual estivemos juntos, comecei a ouvir outra vez e tem sido extremamente doloroso. Mas agora é como se fosse a única forma de comunicar com ele. Por isso, é uma merda ouvir o álbum mas ao mesmo tempo estou a preencher-me ao recuperar memórias ternas e afectuosas de amor".

"Gosto muito das letras porque ele está mesmo a cantar para as mulheres ou para a mulher que ama", continua Marshall ao acrescentar mais uma pedra ao endeusamento de Dylan. Visto por muitos como um espelho da sua relação com a mulher Sara - o próprio filho Jakon Dylan fala de Blood on the Tracks como se fosse quase uma transcrição dos diálogos entre os pais -, o homem cujas letras são habitualmente analisadas numa lamela levada ao microscópio sempre afastou quaisquer tentações de leituras que entrevissem a sua intimidade, preferindo declarar oficialmente que temas como Tangled up in blue, If you see her, say hello ou Shelter from the storm são antes resultado da obsessão com os contos do autor russo Anton Tchékhov ou das ideias defendidas por Norman Raeben no campo da pintura como podendo juntar num só momento diferentes tempos e pedaços de uma mesma história. A cortina de fumo lançada por Dylan para despistar invasões da sua privacidade, no entanto, não convence Cat Power. "Como o Dylan é sempre tão cínico acerca das relações também estou a receber amor vindo dele. Ele deixa-nos à porta do cemitério, sorri-nos e afasta-se". Algo que, acredita, não é extensível às suas próprias canções. "Não, eu estou a tentar afastar-me do cemitério".

O outro lado de Moon Pix

Se Dylan é profuso em mitificações que ajudam a reforçar a impenetrabilidade da sua história, facto que ajuda a que as suas memórias possam igualmente ser entendidas como mais uma construção à volta de factos do que um relato rigoroso daquilo por que foi passando, Cat Power também goza de algum deste mistério à sua volta. Mas esse mistério tem sido alimentado sobretudo pela conduta errante ao vivo - assistir a um concerto seu, há uns anos, acarretava uma inevitável expectativa mórbida de ver em que ponto da escala alcoólica se apresentaria e quantas músicas conseguiria levar até ao fim antes de se retirar de palco ou entrar numa balbuciação sem sentido da qual não conseguiria sair; em Matosinhos, em 2003, lembre-se, o seu concerto reduziu-se a duas canções completas, insultos e fragmentos vários do restante reportório - e por um charme selvagem paredes-meias com alguma loucura. A mitificação do seu trajecto não costuma, no entanto e como Dylan deliberadamente o faz, contradizer-se e desmentir-se sucessivamente. E tem talvez como ponto mais elevado a noite algures a meio da década de 90 em que, sozinha numa quinta na Carolina do Sul, quando alegadamente planeava deixar a música e vivia com o namorado Bill Callahan, assaltada por um estado febril de alucinação compôs quase todo um álbum chamado Moon Pix. Essa obra de devastação emocional, lançada em 1998, forma encontrada por Marshall para se distrair do cenário da ordem do fim dos tempos que achava estar a desabar à sua volta - depois de ter acordado convencida de que a terra tremia e espíritos rondavam a casa -, tornar-se-ia um dos mais fervorosos objectos de culto de uma geração de gente a buscar uma transcendência musical com recurso a pouco mais do que uma guitarra e um gravador manhoso.

Moon Pix seria sobretudo um disco de Cat Power solitária, mas traria consigo, ainda assim, as colaborações de dois membros dos Dirty Three, Jim White e Mick Turner. White integraria anos depois a banda de palco de Cat Power, aquando da sua repentina guinada para os terrenos da soul de Memphis, iniciada com The Greatest (2006) e prolongada até Jukebox (2008). Se Dylan e Nina Simone foram sempre assumidos como bússolas indispensáveis à primeira fase da discografia de Cat Power, que se prolongou até ao brilhante disco de versões Covers Record - quem mais se lembraria de cantar (I Can"t Get No) Satisfaction, dos Rolling Stones, omitindo precisamente os refrães em que se escuta o título da canção? - e ao magnífico You Are Free, The Greatest vivia muito mais do amor por Al Green, Wilson Pickett ou Carla Cook.

White na bateria, Erik Paparazzi no baixo, Gregg Foreman e Judah Bauer (do trio Jon Spencer Blues Explosion) nas guitarras foram a sua banda de suporte durante as últimas digressões e libertaram Cat Power da obrigatoriedade da guitarra e do piano, forçando-a a assumir-se como cantora e funcionando simultaneamente como estabilizador de humor. Com a banda, Chan Marshall aprendeu a gostar do palco e a não o encarar como potenciador de todos os seus desarranjos afectivos, o público quase promovido a um barman colectivo. "Ao colocar-me nas mãos dos meus amigos ao vivo", confessa-nos, "consegui descobrir a voz que não tinha desde miúda. Sempre cantei todas as canções que se possa imaginar, como uma pequena alienígena. Quando comecei a compor as minhas canções, aos 18 anos, não conhecia a minha voz mas cantava Dolly Parton, Hank Williams, Billie Holiday. Conseguia cantar tudo isso, mas quando tive de cantar as minhas próprias letras não consegui encontrar a minha voz".

Essa descoberta de individualidade aconteceu apenas com The Greatest. E coincidiu, diz, com a primeira vez que olhou para o público à sua frente, sem poder esconder-se atrás do instrumento, e pensou: "Foda-se, tenho uma grande responsabilidade para com estas pessoas". Jim e Judah foram determinantes para assegurar que essa viagem de descoberta se fazia em segurança, uma vez que Chan via neles uma redoma protectora. Levou mesmo a descoberta tão longe que quase perdeu a voz. "Mas não queria saber, estava a divertir-me imenso".

Sun, disco em formação

"Este disco ainda se vai chamar Sun?", "Tu precisas de um produtor", "Que banda vais utilizar?", "Precisas de um manager, tens de ter um manager", "O disco ainda se vai chamar Sun?". As interrogações e as sugestões alheias saem da boca de Chan Marshall num único jorro, lembrando que durante anos foi martelada pelas mesmas questões quando nem ela própria tinha certezas com as quais nutrir a sua auto-estima artística. Sun tornou-se uma promessa pendente quando em 2003 ou 2004 a cantora começou a falar em entrevistas num próximo disco de originais que havia de chamar-se assim. "Há muito tempo, quando tocava sozinhas umas canções tristes que ninguém conhece, queria que esse disco se chamasse Sun. Queria que fosse não o reverso, não um regresso, não uma viragem, não um outro lado, mas uma continuação do Moon Pix. Havia uma data de perguntas sem ponto de interrogação que me perseguiam e às quais só podia repetir "Este disco ainda se vai chamar Sun, não preciso de um manager, não quero um produtor"".

Essa nova fornada de canções tristes que iam espreitando a vida em concertos - Leopard, Mountaintops ou Old Time - dava forma à sua ideia de Sun que, entretanto, se viu ultrapassada por The Greatest e Jukebox. Esses discos, diz, eram algo de completamente diferente que obrigavam, por isso, a adiar e não a desistir de Sun. Por muito que esse disco novo fosse apenas um feeling comum a Moon Pix que nem Chan consegue descrever. "Talvez fosse apenas o estar sozinha, saber que teria de fazê-lo sozinha", arrisca. Mas não foi fácil descobrir-lhe o pulso. A primeira passagem de Cat Power pelo estúdio resultou numa série de canções, todas abortadas, a que um amigo na sua editora, a Matador, assinou a certidão de óbito ao classificá-las como "demasiado tristes e demasiado Cat Power do início". Chan precisou de oito meses para fazer o luto dessas canções e voltar para estúdio.

Se estava melhor emocionalmente nesse regresso, estava esgotada financeiramente. Até porque, na verdade, Chan Marshall não sabia o que fazer do seu próximo disco como Cat Power. Andou por vários estúdios, tentou várias soluções, mas continuava a faltar-lhe a iluminação de perceber que tinha encontrado o caminho. "Quando comecei tudo outra vez", desabafa, "peguei no meu dinheiro para a reforma, o dinheiro que tinha para comer e ter um sítio quando for velha, levantei esse dinheiro, aluguei uma casa em Malibu para poder estar mais próxima da família do meu ex-namorado, perto da costa, levei os meus dois cães, queria estar junto à natureza e chamei a minha antiga banda para gravar lá". Mas sentindo-se em família, empenhou-se mais noutras minudências quotidianas: "Tudo o que queria fazer era cozinhar para eles, pequeno-almoço, almoço e jantar, garantir que tinham bom sabonete, toalhas limpas, que havia fogo na lareira e certificar-me que havia vinho e sumos saudáveis". O entusiasmo, alega, vinha do facto de nunca ter tido muitos amigos em casa quando estava nos seus vintes porque andava em digresão e cada um andava disperso a "ver um filme, a meditar, a ir até ao bar". Ou talvez estivesse apenas a alhear-se da evidência de que as canções continuavam a escapar-lhe. Depois de várias tentativas e passagens por outras tantas salas de ensaio a depositar toda a esperança numa banda que tocasse as canções de olhos fechados e lhes descobrisse a fórmula mágica, Chan rendeu-se: "Ficou lindo, mas não era aquilo que eu estava a ouvir".

Assim, quando empreendeu mais uma viagem, desta vez para os Southbeach Studios, em Miami, levava consido dois discos rígidos com o material gravado com a banda em Malibu mais "as merdas novas que tinha feito entretanto". Começava a acumular material, mas a forma continuava a escapar-lhe. "Peguei naquilo, tentei misturar tudo e não estava a funcionar. A única que funcionava era a Ruin, com o Jim White, o Erik Paparazzi e o Judah Bauer". A Ruin podia apenas juntar Silent Machine, canção antiga e única que não lhe tinha oferecido dúvidas - sabia o que queria dela desde os 26 anos. Tentou que Jack White a produzisse, mas o homem deu-lhe uma nega: "Hell no, bitch", diz num pesado sotaque sulista, caricaturando White. "Tenho demasiadas coisas a acontecer - três bandas, dois filhos, uma mulher, um estúdio, uma editora. Hell no, bitch" . Restou-lhe pedir a Bauer que gravasse uma swamp guitar, como imaginou que White faria, e tocar tudo o resto.

Faltavam três semanas para se esvair o prazo que ditava o fim da linha para o novo disco e o desespero apoderava-se de Cat Power. As sessões de Malibu tinham funcionado como um derradeiro trunfo sacado como solução para todas as inseguranças resultantes da sessão anterior, em que Marshall se atreveu a seguir um caminho diferente e de onde saíram as bases de Ruin, Cherokee, Sun e Human Being, mas que acabaram em autoflagelação e a culpabilização artísticas: "Sou um falhanço, isto soa demasiado tecnológico, não sei onde estou, os meus ritmos são muito ingénuos, tenho saudades da minha banda". Agora, tinha nas mãos um novelo que não sabia desenlear, um álbum que era apenas uma amálgama de pistas sem rumo, uma completa ausência de saídas. Foi então que, pela segunda vez na sua vida de estúdio, os Beastie Boys - sem o saberem - vieram em seu auxílio. Primeiro, para o tema de arranque de Moon Pix, American flag, recorreu ao sample adulterado de uma bateria roubada aos nova-iorquinos em Paul Revere. Agora, estava sentada no carro, ocupada a desesperar, quando ouviu uma canção do último álbum dos Beastie Boys, Hot Sauce Committee, Pt. 2, e pensou "isto tem tantas cenas maradas", razoavelmente o mesmo diagnóstico a que chegava ao analisar o seu próprio material. "Precisava de alguém que fizesse as misturas porque estava a acumular e a sobrepor pistas e mais pistas. E então encontrei este gajo".

Teremos sempre Paris

Dito assim, soa quase casual, como se Cat Power tivesse tropeçado no "gajo", um francês chamado Philippe Zdar, encontrado por acaso no corredor dos congelados num supermercado. Mas não, Chan sabia perfeitamente em que prateleira encontrara tal nome: Zdar, além de músico dos Cassius e produtor dos Phoenix e dos Rapture, misturara Hot Sauce Commitee. Power aproveitou a marcação de um concerto, emalou o disco-imbróglio e seguiu para Paris. Apresentou-se a Zdar e a conversa que se seguiu terá sido mais ou menos assim:

"Tudo bem, aceito, mas não vou mexer muito".

Ela, deliciada com a resposta: "obrigado, porque eu também não quero a merda de um produtor".

"Quando temos de terminar?"

"Três semanas"

"Estás a brincar?! Vou de férias com a minha família durante um mês"

"Óptimo, isso significa que posso adiar a entrega e tenho um mês e meio para terminar".

Falida, Chan negociou com Zdar o aluguer do estúdio comprometendo-se a pagar-lhe assim que entregasse o disco e a editora comprasse um produto acabado. Mas na altura, a própria entrega do disco era quase uma miragem. Zdar foi, veio e quando chegou estava tudo na mesma. "Eu não tinha nada pronto", recorda Cat Power. "Dei-lhe o Ruin porque era a mais simples. Enquanto ele trabalhou nessa, eu estava noutra sala ainda a gravar. Depois ele teve de se ausentar por mais uma semana. E foi assim durante oito meses, até que terminei o disco, um mês depois de eu e o meu namorado termos terminado. Ainda tive de acabá-lo depois disso e foi muito complicado concentrar-me".

Até hoje, as canções de Cat Power arrancavam simplesmente porque tinha as cordas da guitarra ou as teclas do piano nas mãos. "A menos que se seja alguém como o Glenn Branca", explica, "que não precisa de groove para fazer o que faz, normalmente quando se toca guitarra tem-se groove. É tudo aquilo de que preciso e então as melodias colam-se e as palavras saem. O mesmo acontece com o piano - as mãos mexem-se, isso faz com que o tempo arranque e a música surge. Desta vez, não tinha isso". Em fuga das "canções tristes" que poderiam criar um círculo fechado de onde a sua música tivesse, mais tarde, uma maior dificuldade em evadir-se, Cat Power proibiu-se, na medida do possível, de se encostrar a esses seus dois instrumentos dos quais o corpo guardava já uma memória física. Enquanto nos diz que "mantinha as mãos afastadas do piano e da guitarra", Chan cruza uma e outra vez as mãos atrás das costas, como se estivesse voluntariamente manietada.

Em seguida, ao explicar que teve de voltar-se para o sintetizador, franze a cara. O medo de como soaria era também ele palpável. "Ai, isto vai soar..." e em vez do desastre iminente saía-lhe um "isto soa cool" e suspirava aliviada. "Nunca sabia o que estava a fazer. De cada vez que estava sozinha na sala com os instrumentos estava sempre à procura. No final tinha qualquer coisa como 173 pistas numa só canção". Daí que a principal função de Zdar tenha consistido em peneirar e ajudar Chan a descobrir as canções debaixo de uma montanha de camadas de ideias.

Manter-se afastada de guitarra e piano foi particularmente difícil porque Chan não gravita naturalmente "em torno de música moderna", pelo que toda a construção criativa de Sun foi feita em claro movimento contrário à sua natureza. "Gosto muito de hip-hop e, embora a electrónica não seja a minha cena, gosto muito dos Neu! Sou mais lírica e dada ao transe, gosto de ouvir música sem qualquer bagagem. É para isso que serve a música: livrar-nos da nossa bagagem". Para prova a sua dessintonia com a contemporaneidade, oferece-se para elaborar uma lista rápida de música que costuma ouvir: L"Ascenceur pour l"Échafaud, de Miles Davis, banda sonora para o filme de Louis Malle, Crescent, de John Coltrane, Kar Kar, de Boubacar Traoré, Funkier than a Mosquito"s Tweeter, na versão da Nina Simone - Peace and love, tema final de Sun, vai aí sorver o verso "peace and love is a famous generation" -, Black Album, de Jay-Z, qualquer coisa de Notorious B.I.G., algum Tupac, algo dos Hot Boys, o primeiro grupo de Lil"Wayne, e Serge Gainsbourg, La Javanaise. E algum Bob Dylan.

"Não oiço muita música, mas também não tenho estado muito sozinha nos últimos quatro anos", justifica-se. "E nem sequer tinha um gira-discos em Malibu. A filha do meu ex-namorado ganhou um no Natal e tudo o que eu ouvia a vir do quarto dela era o Ziggy Stardust". Daí saiu, como facilmente se conclui ouvindo Sun, o tema Nothin but Time. "Compus a canção para ela porque ela adora o Ziggy Stardust e secretamente convidei o Iggy Pop e o David Bowie para cantarem ambos nessa canção e lhe fazer uma surpresa. Porque ela estava a ser vítima de bullying online, há uma grande controvérsia agora na América, muitos adolescentes têm-se suicidado nos últimos anos. Por isso compus a canção para ela. O David Bowie recusou educadamente, o Iggy aceitou e eu contei-lhe. E ela "oh meu Deus, isso é tão cool". "Mas também tenho más notícias porque convidei o David Bowie e ele recusou". "Não faz mal, não te preocupes"".

Mas Cat Power preocupou-se, o tempo todo. Cortou o cabelo, fica nervosa quando tocam à campainha do quarto, manifesta as suas dúvidas quanto à forma como Gandhi morreu, desconfia que as prisões do Louisiana estão sobrelotadas porque os polícias recebem por cada cabeça enviada para as celas, passou a noite anterior a debater com um médico e um matemático indianos as suas opiniões sobre o sistema de saúde e a CIA. Toca a campainha novamente, a lembrar-nos que acabou o nosso tempo. Para finalizar, quer apenas recordar a sua confissão essencial sobre Sun: "Nós estávamos a construir uma vida, eu queria ter filhos e este não é um disco de separação amorosa". E fecha-se a porta. O corredor está vazio. Da rapariga com tatuagem de dragão, cabelo cor-de-rosa e olhar alucinado, nem sinal. Mas Cat Power não é muito fã de Stieg Larsson. Em matéria de policiais nórdicos, prefere Hennink Mankel.

Ver crítica de disco págs. 28 e segs.

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