Biophilia A nova utopia de Björk

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As primeiras apresentações de "Biophilia", no Manchester International Festival, mostraram que o Björk está mais perto do que nunca da obra de arte total - e do público, que é convidado a rodear os performers em palco

Björk está de volta com um concerto multimédia, aplicações para iPad, um documentário e um álbum. Mais uma obra total, agora centrada nas ligações entre natureza, música e tecnologia. Vítor Belanciano

Como acontece desde 2000 com a islandesa Björk, a sua nova aventura, "Biophilia", é muito mais do que um álbum no sentido tradicional. É um conceito global sobre as ligações entre ciência, natureza, música e novas tecnologias, comunicado através de concertos especiais, aplicações para iPad, instrumentos criados de propósito para a ocasião, documentários e um álbum de estúdio.

O disco será editado em Setembro, tanto em suporte digital como no formato físico, ao mesmo tempo que serão apresentadas as correspondentes Biophilia Apps. Ou seja, toda uma "obra de arte total", como a islandesa já nos habituou.

Os álbuns "Vespertine" (2001), "Medulla" (2004) ou "Volta" (2007) já eram isso. Meros pontos de partida que acabavam por potenciar uma série de outros desenvolvimentos criativos que revelavam que Björk é tão importante na actualidade para o universo da música como para o do cinema, da moda ou das artes, experimentando de forma livre e, mesmo assim, conseguindo adesão popular - um facto comprovável pelo facto de ter quase tantos admiradores como detractores, no sentido mais pueril.

Para já, "Biophilia" é uma série de seis concertos (o primeiro aconteceu a 30 Junho, o último está marcado para o próximo dia 17), inseridos no Manchester Internacional Festival, que têm servido para apresentar o projecto.

Naturalmente, nos últimos dias, desde a estreia, avolumam-se os relatos do acontecimento e pululam os vídeos pela Internet. Como acontece quase sempre nos espectáculos da cantora islandesa, a encenação tem qualquer coisa de radicalmente conectado com a realidade actual e de inteiramente futurista.

Em cena, a meio da sala, a primeira surpresa, com uma série de instrumentos gigantes criados propositadamente para o projecto "Biophilia". Os instrumentos foram construídos por uma equipa que incluiu um inventor, um construtor de órgãos e um cientista.

Foram eles que conceberam, a partir de algumas ideias da islandesa, quatro harpas em pêndulo (cada uma com três metros), cujos movimentos de oscilação arrancam as cordas, ilustrando a temática de gravitação das canções. Há também uma harpa de cavilha com três metros, um órgão de tubos com controlo digital, um conjunto de instrumentos tradicionais indonésios reequipado com barras de bronze e roldanas musicais.

A acompanhar a cantora a está também um coro de 24 elementos e, suspensos do tecto, uma serie de ecrãs digitais, que difundem imagens científicas ou da natureza, misto de moléculas e árvores.

Aparentemente, tudo em grande. Mas a intenção é criar a sensação de intimidade, com o público a rodear os intervenientes em palco. Daquilo que já se conhece, "Biophilia", parece ser um álbum mais intimista do que o anterior "Volta" (2007), estando mais próximo de "Vespertine" (2001), disco doméstico, de partilha da privacidade, em que o computador era a ferramenta operacional e os organismos digitais a expressão dessa vontade de introspecção.

A estratégia em torno dos espectáculos ao vivo também contempla a criação de um ambiente de proximidade com o público. Em vez de concertos em salas para multidões, vão ser privilegiados espaços para cerca de duas mil pessoas. É isso que está a acontecer em Manchester e é isso que sucederá nos restantes espectáculos da digressão mundial - feita em moldes diferentes do habitual - de três anos, repartida por residências de seis semanas, em oito cidades do mundo, ainda não nomeadas. Para além dos concertos, nos restantes dias das semanas de residência, e em colaboração com escolas locais, serão realizados diversos "workshops" educativos para crianças.

Galáxia tridimensional

Mais do que um concerto, o espectáculo que Björk estreou em Manchester evoca uma performance de arte contemporânea. Do ponto de vista sónico, as novas canções são exigentes, íntimas e frágeis. É esse o caso do single já conhecido, "Crystalline", com alguns sons acústicos assistidos por computador e pela sua voz elástica, concluídos por uma batida desconexa que evoca algumas das aventuras mais radicais de Aphex Twin, por exemplo.

As letras dos temas novos são mais literais do que nos habituámos a escutar na islandesa, com a poesia abstracta a dar lugar a alusões científicas ou a revelações da relação com a natureza. Para além dos novos temas, em Manchester, a cantora mostrou também temas antigos ("Unravel", "Isobel", "Hidden place", "All is full of love" ou "It"s not up to you"), revestidos com rearranjos radicais, como acontece quase sempre que revela um novo espectáculo.

Mas o aspecto mais ambicioso do projecto "Biophilia" são as aplicações para iPad, criadas por uma série de programadores, designers e animadores que incluem Theo Gray ("The Elements: The Visual Exploration"), Scott Snibbe Studio ("Gravilux") ou o estudante de 18 anos Max Weisel ("Sounddrop"). As dez aplicações, uma para cada canção, estarão disponíveis na central de criação "App Mãe", acessível através da One Little Indian, e pretendem mostrar, segundo a islandesa, que "as estruturas musicais e as estruturas da natureza são similares."

Esta plataforma funcionará como uma galáxia tridimensional. As aplicações iniciais surgirão como constelações, enquanto as restantes serão adicionadas à colecção com intervalos regulares. Cada aplicação tem o seu próprio tema (relacionado com a canção que lhe corresponde) e combina um elemento natural com um traço museológico. Os níveis de conteúdo de cada aplicação incluem um jogo interactivo de temática científica, uma animação musical de cada canção, uma partitura animada e letras. O jogo permite ao utilizador interagir com os elementos musicais da canção e aprender sobre as diferentes características musicais, enquanto pode criar a sua própria versão, de forma interactiva.

Para a realização desta nova experiência - ou, como ela gosta de afirmar, da "nova utopia" -, Björk contou com a colaboração de uma série de cúmplices. "Tenho uma ideia romântica do trabalho em grupo", diz ela, "é a minha herança anarquista, mas também aprendi muito sobre dinâmica de grupos quando o meu pai funcionava como líder sindical." Há muitos anos que professa que os processos criativos são mais colectivos do que nunca, afastando-se das teses de auto-suficiência da arte contemporânea.

"No futuro, o segredo vai ser o trabalho de equipa. Existirá sempre alguém que tem ideias e consegue ouvir as dos outros, que as gere e as executa. Mas isso não estabelece uma relação passiva entre parceiros, porque todos são convidados a participar no acto criativo. No meu caso, existe espaço para a reflexão pessoal, mas também para a troca. Seria incapaz de criar música sozinha."

Em "Biophilia", o engenheiro Damian Taylor teve um papel central, ajudando-a a por de pé a ideia de criar novas formas de conceptualizar e fazer música, mas não foi o único - programadores, cientistas, inventores ou músicos (do espanhol El Guincho ao inglês Matthew Herbert, passando pela dupla 16bit, conectada com o dubstep) encontraram-se com ela para desenvolver um projecto multimédia exploratório, que examina as relações entre as estruturas musicais e os fenómenos naturais.

Pelo meio, voltou a encontrar um velho conhecido, Michel Gondry, que realizou o videoclip para o single "Crystalline", enquanto a Pulse Films capta todos os momentos evolutivos da operação que depois serão mostrados num documentário. A operação "Biophilia", ou o "amor pelas coisas vivas", está em marcha. Nos próximos três anos vamos ouvir falar muito dela.

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