Banana com salsa soa-lhe bem? Bem-vindos ao Dicionário dos Sabores de Niki Segnit

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Niki Segnit no Mercado da Ribeira RITA CHANTRE

Escreve-se muito sobre comida, mas saberemos o suficiente sobre sabores? A britânica Niki Segnit achou que não, e, como não encontrava um livro que lhe explicasse porque é que café sabe bem com chocolate ou o queijo azul com figos, resolveu escrevê-lo. O Dicionário dos Sabores já existe em português.

Banana com salsa dificilmente será o sonho gastronómico de alguém, admite Niki Segnit. E, no entanto, é uma combinação que teoricamente funciona, explica a autora de O Dicionário dos Sabores - Combinações, Receitas e Ideias para o Cozinheiro Criativo, que a Lua de Papel acaba de editar em português, e que reúne 99 sabores e mais de quatro mil combinações possíveis.

Marcámos a entrevista para as 10h da manhã, no Mercado da Ribeira, em Lisboa, e estamos sentadas no Cacau da Ribeira antes de irmos passear entre as frutas e legumes. Para já, Niki está a falar de banana com salsa. "Nos últimos tempos surgiu a teoria que, se determinados alimentos partilham sabores dominantes, que de alguma forma se sobrepõem, então necessariamente funcionam bem juntos. Muitos dos chefs actuais, como Heston Blumenthal, estão interessados nisso. Têm uma base de dados sobre os diferentes componentes dos alimentos e estão sempre à procura de coisas que possam funcionar bem juntas."

Voltemos ao exemplo. "No caso da banana e da salsa é certamente alguma coisa que se situa na zona do verde, um certo tom de erva que se encontra nas bananas menos maduras, que são muito diferentes das bananas maduras, onde o sabor começa a aproximar-se mais do mel." Niki confessa que a perspectiva de comer banana com salsa não a "enche de enorme alegria". Mas tem tudo a ver com as nossas referências culturais. "Gostamos de ouvir falar dessa combinação? Não. O que fazem os chefs que trabalham com a cozinha molecular é pegar numa combinação que não nos soa muito bem e fazer algo de fabuloso. Mas para isso é preciso talento. Não funciona, se em casa cortarmos banana às rodelas e deitarmos salsa por cima."

Niki sempre cozinhou. Mas agarrada a um livro de receitas. Não sentia confiança suficiente para largar o livro e experimentar, porque não sabia como funcionavam as combinações de sabores. E, como não descobriu nenhum livro que lhe dissesse, decidiu - com o que descreve como "uma ingenuidade quase comovente" - escrever um. Escolheu 99 sabores e começou a combiná-los. O livro consiste em pequenas entradas nas quais conta histórias, descreve resultados e sugere pequenas receitas. E, sobretudo, desafia os nossos preconceitos.

Aqui saímos do patamar mais básico do gosto e passamos para o dos sabores. "Gosto é o que detectamos com as papilas gustativas, que estão sobretudo na língua, mas também noutros pontos da boca, e que nos dizem se uma coisa é doce, salgada, azeda ou amarga (e detectam também o "quinto gosto", o umami, uma espécie de intensificador dos sabores)", explica. O sabor é todo um outro mundo. "Tudo o que tem a ver com o sabor passa pelo nariz. Se comermos e taparmos o nariz, a única coisa que conseguimos dizer é se é doce, salgado, azedo ou amargo."

A base das cozinhas de todas as culturas é o casamento dos quatro gostos. "O sabor trabalha um nível acima. É informação muito mais detalhada, mais sensual, é o que faz, por exemplo, com que as trufas custem uma fortuna. Encontrar um equilíbrio de sabores é muito mais complexo e interessante. É como ser um especialista em perfumes."

Para conseguir reconhecer os sabores mais subtis é preciso "experimentar muito". "A certa altura começámos a desenvolver algo no cérebro que nos permite reconhecer um sabor e depois identificá-lo. É nesse lapso entre o reconhecimento e a identificação que podemos sempre ir trabalhando e melhorando."

O esforço de Niki, depois, é para tentar comunicar o que vai descobrindo. E isso leva-a a escrever coisas como: "O sal de aipo e os ovos cozidos são uma combinação clássica. Há algo no toque cítrico e a pinho do aipo que realmente eleva as notas sulfurosas dos ovos. Os ovos de codorniz, de pato e galinha são perfeitamente deliciosos servidos assim, embora os ovos de gaivota sejam os que aparecem nos menus de restaurantes de luxo." Mas também observações deste género (esta sobre aipo e marisco): "Quando acorda de um coma na sexta temporada da série Os Sopranos, a primeira coisa que Tony pede é um rolo de lagosta do Pearl Oyster Bar, no West Village. Se alguma vez se questionou por que razão os mafiosos são gordos, chamo a sua atenção para a manteiga derretida e para a maionese que a sanduíche pedida por Tony contém." Ou que a leva a comparar uma combinação como anchovas e alhos com Richard Burton e Elizabeth Taylor em Quem Tem Medo de Virginia Wolf?.

Descontração e curiosidade

A única forma de fazer um livro com a ambição deste é descontrair. A curiosidade de Niki pelos sabores começou quando fez um curso de vinho, mas no livro optou por ter uma liberdade maior do que a dos críticos de vinho quando têm que descrever as notas dominantes. Procurou outras descrições e encontrou-as sobretudo em livros mais antigos. "Entre as pessoas que escrevem sobre comida hoje, não há muita gente a falar dos sabores, mas de vez em quando conseguia encontrar um livro do século XIX em que alguém tentava encontrar a maçã perfeita. Nessa altura falava-se mais sobre sabores."

O que Niki tenta fazer é "explicar as coisas de uma forma pessoal, mas com a qual os outros se possam identificar". E, acima de tudo, "manter a mente aberta". Não só para combinações estranhas, mas também para ideias feitas sobre "clássicos". Bacon e ovos, por exemplo. "Os ingleses pensam que é um grande clássico nacional, mas depois vemos que os italianos fazem esparguete carbonara com os mesmos ingredientes, e os franceses fazem a quiche lorraine, e os americanos os ovos Benedict."

E, durante o processo, confrontou-se com os seus próprios preconceitos culturais. Ela, que cresceu numa zona do Reino Unido em que era vulgar servir a empada de carne e rins - a famosa steak and kidney pie britânica - com ostras, veio pela primeira vez a Portugal em 1993 e ficou estupefacta quando viu carne de porco com amêijoas. "Não podia acreditar."

Mas, como lhe aconteceu uma vez com a mais improvável das combinações - "um queijo rústico e mal-cheiroso com chocolate de leite" -, que se revelou extraordinária, o seu princípio é o de nunca dizer mal sem ter provado. Aquele queijo com aquele chocolate foi "uma daquelas combinações raras e inexplicáveis, que está para lá de qualquer explicação", diz. "Isso é estranho. E é bom."

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