Alto! que está a chegar o rock"n"roll

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São mais uma banda a emergir do paraíso rock"n"roll que parece existir em Barcelos. São o minimalismo dos Fall, o sentido de perigo, de neurose, dos Monks e a alma explosiva do garage-rock.

Nothing happens in this hole, cantam eles enquanto o órgão cria uma textura desolada na canção de psicadelismo desencantado que é Xasmins. Nada acontece neste buraco? O buraco de que cantam os Alto! ficará, imaginamos, na Galiza (explicações abaixo), mas é muito humano extrapolar da frase uma diatribe sobre a necessidade de algum tipo de limitação para que o rock"n"roll se faça ouvir como se quer. Como a angústia do tédio a abrir caminho para a libertação no som, na voz feita catarse.

Em parte, os músicos que formam os Alto! até deverão a música que fazem e como a fazem ao tédio que viviam em Barcelos na adolescência, quando tinham que transformar abandonados reservatórios de água subterrâneos em ponto de encontro - não há centros culturais e o único teatro, diz o vocalista João Pimenta, está fechado há anos demais. Mas o que são agora já não é simplesmente emanação do tédio adolescente. Alto! é disco de quem já deu um passo em frente. Em dez canções, cada uma delas encenada na geografia de dez cidades europeias (é seguir os títulos: Hlavní Nádrazí, Quai de la Marne, Chalk farm), estes Alto! que integram membros dos Black Bombaim e que descendem dos Green Machine (a comunidade barcelense em multiplicação profícua), descobrem-se uma banda em que o minimalismo dos Fall, o sentido de perigo, de neurose, dos Monks, o carácter explosivo do garage-rock e o glorioso sentido de cena de Ian Svenonius se unem num mesmo corpo. Isto, atente-se, sem que se pressinta por um momento que seja que haja nisto construção. É assim porque eles, que se enfiavam num reservatório subterrâneo para ouvir discos de stoner rock, que ensaiam hoje no carinhosamente baptizado Bunker, que é o armazém do supermercado, com menos de 10 m2, do pai do baterista Paulo Senra, não conseguem e não querem fazer de outra maneira.

Álbum em três dias

"Se uma canção não está pronta numa hora, deitamo-la fora", diz o vocalista João Pimenta. "Corremos o risco de perder grandes músicas, mas se aquilo não estiver a fluir, não vale a pena insistir. Seria como remendar a coisa". Pela urgência da interpretação, pressente-se que o estúdio não é lugar mais prazenteiro para os Alto!: "Não somos bichos de estúdio. Queremos é contacto com as pessoas". O álbum? "Gravámo-lo em três dias", confessa Pimenta, antes de citar Ian McKaye, dos Fugazi: "Só gravamos discos como pretexto para fazer digressões". Afinal, haverá muita coisa a acontecer neste buraco que não fica na Galiza e os Alto! querem estar lá, à nossa frente, a gritar por outras palavras o Testify! pedido pelos MC5 no Grande Ballroom de Detroit.

Esta banda, saberá quem já assistiu a um dos seus concertos, não é para remendos. É a "coisa" por inteiro ou nada. Confirmem-no no 20 20 20, o festival que, no sábado, junta 20 bandas, 20 djs e 20 designers no Instituto de Design de Guimarães: numa sala, a exposição de 20 cartazes, noutra, os djs (Ghuna X, Mister Teaser, Rodrigo Affreixo, Hang The DJ) que terão de concentrar o talento para animar a pista de dança em não mais que três canções e as bandas (Alto!, Black Bombaim, Cangarra, Glockenswise, The Shine, Salto ou Memória de Peixe) que actuam em contra-relógio - um quarto de hora e nem mais um segundo.

João Pimenta diz entre sorrisos que Alto!, sucessor dos EPs Computer Says No (e eis referida a série Little Britain) e See You In Hell, Ron (Ron, de Ron Asheton, dos Stooges), tem algo de crise de meia-idade. Pimenta completou 30 anos em 2011 e decidiu fazer do disco uma viagem às viagens do seu passado. Viagem desordenada, em que os locais citados são meros sinalizadores: como essa Chalk farm que grita London is burning (os motins, precisamente) ou essa outra, Hlavní Nádrazí, em que descobrimos que foi Leonard Cohen, e não uma mulher, como é habitual no rock"n"roll, a salvar a alma de João Pimenta - aconteceu numa viagem de comboio desde Praga e ele, que vinha deprimido por qualquer coisa que metia uma miúda pelo meio, passou os três dias da viagem agarrado a Songs Of Love And Hate: "O álbum está repleto de depressão, mas ao terceiro dia, já era um disco de esperança. Tornei-me o maior fã do mundo de Leonard Cohen".

Mais que as histórias por trás das canções, interessa a forma como nelas se desenha um psicadelismo corroído que sobressalta os nossos corações eternos amantes da compilação Nuggets. João Pimenta, Paulo Senra, Bruno Costa (guitarra), Tiago Silva (baixo) e Ricardo Miranda (guitarra e teclas) sabem perfeitamente como agitar o buraco. Quando João Pimenta viu os mais velhos Astonishing Urbana Fall, seus colegas de liceu e banda mítica de Barcelos, apresentados numa capa do então jornal Blitz como uma das esperanças nacionais para um ano qualquer que já lá vai há muito, sentiu "uma coisa à Ramones": "Se estes estão aqui ao lado no liceu e conseguem isto, se calhar também vou tentar". Estavam lançadas as sementes para aquilo que se designa genericamente como a cena de Barcelos, de onde têm saído recentemente das melhores coisas que o rock"n"roll cá da terra tem para oferecer - falamos, por exemplo, dos Black Bombaim ou dos Glockenwise. Agora temos os Alto!. Gente que rocka como ninguém, gente que sabe o que faz.

Queriam um órgão que trouxesse outra dimensão à música, mas Farfisas eram caros demais. Sacaram de um teclado italiano dos anos 1980, o Antonelli, e fizeram magia com a peça. Passam tempo demais enfiados em carrinhas a galgar quilómetros para dar concertos e ganhar uns tostões de cachet? Pois que se siga em frente. Mete-se um Campingaz e panelas na carrinha e não nos devemos surpreender se os apanharmos a grelhar febras num cromeleque alentejano. Até pode ser que improvisem uma jam para o pessoal que se reúna à sua volta.

Os Alto! acreditam que o rock"n"roll deve acontecer assim, olhos nos olhos e de forma inesperada. Os Alto! sabem fazer as coisas acontecer.

Ver crítica de discos págs. 37 e segs.

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