Alexander McQueen mãos de tesoura

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Algumas das suas peças mostram um artista sob influência de H.P. Lovecraft, Edgar Allan Poe ou Tim Burton

A exposição "Savage Beauty", no Metropolitam Museum of Art, em Nova Iorque, mergulha nas várias dimensões do imaginário - romântico - de um designer de moda que se impôs como genial artista. É para a moda o que "Frankenstein" de Mary Shelley é para a literatura, diz Kristin Knox, sua biógrafa. Francisco Valente, em Nova Iorque

A morte prematura de Alexander McQueen em Fevereiro de 2010 suscitou inúmeras reacções de consternação entre colegas de profissão e admiradores, mas a comoção gerada pelo seu suicídio, aos 40 anos de idade, revelou mais do que uma perda do mundo da moda. As criações revolucionárias de McQueen partiam de um universo artístico entre os extremos da vida e da arte, imbuído de uma paixão romântica pelas possibilidades do corpo feminino.

Aí, McQueen usou a plataforma da moda para, à semelhança de um artista em qualquer outra área, expor a sua visão do mundo e tocar em todas as esferas do comportamento, elevando os nossos corpos, pulsões e a nossa história à dimensão de um novo e sumptuoso imaginário.

Kristin Knox, biógrafa de Alexander McQueen ("Alexander McQueen: Genius of a Generation") e autora do blogue "The Clothes Whisperer", salienta que o trabalho do designer britânico era marcado por "uma qualidade reservada aos grandes artistas e que associamos, de forma mais directa, aos poetas e pintores torturados."

Para Knox, "se um artista não abraçar a vida em toda a sua extensão, e isso inclui a morte, a sua arte torna-se vazia e não consegue quebrar a superfície da artificialidade ou tocar em algo de verdadeiramente profundo", diz ao Ípsilon. As diferentes divisões da exposição "Savage Beauty" acabam por ser, deste modo, entradas nas diversas dimensões do universo de McQueen, alguém que dizia oscilar "entre a vida e a morte, a felicidade e a tristeza, o bem e o mal."

Mas se o nome do criador britânico evoca extravagantes rupturas, os seus inícios partiram de um universo tradicional - Savile Row, rua dos alfaiates londrinos -, traço reflectido nas suas primeiras peças (no início dos anos 90) e que permitiu, posteriormente, uma desconstrução das tradicionais formas do corpo e do vestuário. "Foi precisamente a mestria de McQueen sobre a tradição e os princípios da costura que permitiu com que se rebelasse contra isso", diz-nos Kristin Knox. "Não é possível entrarmos em conflito com a autoridade se não compreendermos como é que a tradição funciona. A arte é um diálogo que se forma de geração em geração, está invariavelmente ligada ao que foi feito antes. E McQueen, ao ver-se como um artista e não apenas um designer de moda, não podia simplesmente cortar com a influência e inspiração dos grandes mestres do passado."

Uma alma romântica

Mas McQueen soube rapidamente traduzir as suas íntimas paixões num universo mais obscuro: a do romantismo e os seus contornos góticos. Algumas das suas peças mais conhecidas mostram um artista sob influência dos universos de H.P. Lovecraft, Edgar Allan Poe ou Tim Burton (a quem dedicou uma colecção). Habitar o universo de McQueen, aqui, é imergir, à semelhança desses autores, nas mais profundas dimensões do nosso imaginário, espelhadas em vigorosas peças que empossam o corpo feminino de uma elegante atracção por um abismo fantástico. "McQueen era obcecado pelo gótico e pelo romantismo", diz-nos Kristin Knox. "Era um romântico no sentido do movimento do romantismo na viragem do séc. XVIII para o séc. XIX, tanto na arte como na literatura. É para a moda o que Lord Byron ou Percy Bysshe Shelly são para a literatura, ou mesmo o "Frankenstein" de Mary Shelly." Segundo Knox, a profundidade desta faceta do universo de McQueen não terá sido totalmente entendida durante a sua vida. "Aderiu aos princípios do romantismo de forma estreita, mas isso não era muito notado. A sua icónica caveira [motivo recorrente nas suas criações], é um bom exemplo: as pessoas tomaram-na apenas pela sua aparência ou enquanto símbolo rock"n"roll da estética punk de Londres, mas se olharmos para os românticos, Byron encarava a caveira humana como um talismã, pois acreditava que todas as partes naturais da experiência humana eram belas." Segundo Knox, "a morte, para os românticos, era a experiência natural por excelência e a sua inevitabilidade o único denominador comum do nosso mundo, fazendo dela algo de bonito e sublime."

As poderosas peças de McQueen, negros e longos vestidos adornados de cabedal, máscaras ou penas, relançam a personalidade feminina como extraordinária figura de ficção e realidade, movendo-se entre desejos de conquista, elegância e autoridade. E no percurso da exposição, a sua divisão de "anjos negros" torna-se, do mesmo modo, numa intimidante e hipnótica entrada na rica complexidade da visão de um autor.

À semelhança dos românticos, McQueen construiu também a sua própria história sentimental a partir das suas raízes. Dividido entre as suas origens escocesas e o seu amor pela Inglaterra, pegaria na violenta história de sangue do Reino Unido para alimentar o seu apaixonado mundo, nomeadamente na colecção "Highland Rape" (1995-96), um grito de revolta tanto contra a pacatez expressiva dos designers de moda britânicos, como uma evocação de um conflito intrínseco às relações culturais do reino. "O sangue é um elemento que percorre ambos os campos do seu trabalho: o que nos liga às nossas famílias e o que foi derramado, durante séculos, sobre o solo inglês", afirma Kristin Knox. "Amar e estudar a História passa por um fascínio pela violência: a história do Ocidente foi escrita em sangue. E isso não é uma visão macabra mas um facto que McQueen nunca quis evitar, como tantos outros que apenas olham para uma visão pitoresca da vida dos séculos passados."

Um olhar sobre a mulher

Mas o interesse de McQueen ia para além do choque de uma história da violência ou de recriações fantasiosas de um particular universo. A sua obsessão focava-se, essencialmente, nas camadas assombradas da psique humana. As suas referências históricas passavam, nas suas palavras reproduzidas na exposição, por "mentes de mulheres do passado, como Catarina a Grande, Maria Antonieta, Joana d"Arc ou Colette, mulheres icónicas, pessoas condenadas", figuras que serviam de referência para um tempo presente. Segundo Knox, "McQueen estava mais interessado no mito que existia por trás da figura da mulher. Ao imbui-la de uma espécie de poder titânico, entrega-lhes o poder, indo muito além daquilo que tradicionalmente se faz na moda. Não se trata de colocar mulheres contra homens ou qualquer tipo de moda feminista, mas de consagrar a mulher como criadora de toda a vida."

A inovação estilística e artística de McQueen estendeu-se, assim, para a desconstrução da figura feminina, salientando as particularidades das suas formas e das suas invulgares feições físicas. Na exposição, lemos McQueen definir-se como "um cirurgião plástico com uma faca na mão", desenvolvendo um lado fetichista que adornava as mulheres com objectos vindos de um "gabinete de curiosidades", acessórios inclassificáveis que remetem para o universo de "Irmãos Inseparáveis" (1988), filme de David Cronenberg sobre dois gémeos ginecologistas cujos objectos de trabalho se inspiravam nas mais mutantes fantasias sobre o corpo. Como Cronenberg, a sexualidade das suas peças atravessou todo o seu trabalho, tal como uma agenda escondida que move um profundo desejo de experimentação sobre as formas da paixão humana. Em "Savage Beauty", o "quarto das maravilhas" onde se dividem tais objectos mostra um dos momentos mais icónicos dos desfiles: dois robots que pintam um vestido branco sobre uma modelo presa a uma plataforma em rodopio, mecanizando uma experimentação directamente feita sobre o seu físico e a pura forma do seu vestuário.

Surge, então, outra particularidade de McQueen: o fantasma do efémero que assombra a sua criação e a natureza sexual do seu trabalho. "Os seus desfiles expressavam a totalidade do seu trabalho artístico, correspondiam mais a trabalhos de instalação do que a um desfile", diz-nos Knox. "As suas roupas suscitavam sempre uma grande admiração, mas a magia da sua mensagem desfazia-se na desmontagem das peças para a venda a retalho. O conjunto da visão apagava-se no momento em que McQueen desaparecia e as modelos trocavam de roupa para o desfile seguinte", afirma. "Os românticos, mais uma vez, eram obcecados pela beleza do efémero e do fugaz, e os desfiles de Alexander McQueen transmitiam essa filosofia de forma bastante poética."

Um dos seus momentos mais memoráveis encontra-se reproduzido numa instalação vídeo: um desfile encerrado numa gigante caixa de vidro, jogando com os reflexos que o público tem de si próprio e a presença fechada de modelos sem olhar para o exterior. A performance atinge o ponto máximo após a queda da estrutura de vidro, e a repentina revelação de um corpo nu totalmente distinto dos lisos corpos das modelos, deitado no centro do percurso e de máscara posta. McQueen desafiava, assim, as noções de percepção e uma pré-concebida ideia de porte e beleza, fazendo desse corpo estranho, e fora de tempo, o maior momento de espanto e admiração de toda a actuação.

Por essa realização, chamava os nosso sentidos para vivermos no seu mundo: um palco, entre a tradição de um porte e a radical experimentação artística, para o supremo desejo e a eterna elegância do universo das pulsões humanas.

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