A sala de ginástica do desenho

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Pedro Calapez está de regresso ao desenho, desta vez numa sala semi-arruinada de um palacete de Lisboa. Gymnasium, diz, é o seu diário íntimo.

Esta história, a história dos mais recentes desenhos de Pedro Calapez, começa pelo espaço: um palácio semi-arruinado, sede da instituição cultural Carpe Diem funciona, onde o artista escolheu uma sala para expor os seus trabalhos. O percurso até lá chegar é uma festa para os olhos: há uma grande escadaria de degraus inclinados, estuques no tecto, azulejos setecentistas e pinturas murais pelas paredes. Há estátuas antigas, um jardim que se vê de todas as janelas, outras exposições que inauguraram ao mesmo tempo que esta. Passa-se mesmo por uma capela minúscula e imagina-se a família Carvalho e Melo (parece que o Marquês de Pombal nasceu nesta casa) a assistir ao ofício do alto de um exíguo varandim que ameaça cair a todo o momento. No rés-do-chão, para quem queira, a livraria vende múltiplos assinados que ajudam a manter os custos de manutenção do espaço a um nível aceitável.

Enfim, trata-se de um espaço que não possui nenhuma das características do "cubo branco" em que o museu ou a galeria se tornaram. É necessário que quem aqui exponha ou visite conte com a informação visual excessiva que irá necessariamente interferir com as obras distribuídas pelos diferentes espaços.

A sala que até Maio recebe Gymnasium (diário íntimo), a nova exposição de desenho de Pedro Calapez, é justamente um destes espaços onde o arabesco em gesso, o traço retorcido, as volutas e as espirais enchem por completo o tecto, parecendo replicar cada motivo desenvolvido nos 16 painéis que se encostam às paredes. O artista não se quis inspirar desse trabalho em estuque. Aliás, o seu processo de trabalho, conforme nos conta, parte de um traço elementar desenhado no tablet gráfico, que é depois trabalhado digitalmente. O que vemos são as impressões em grande formato deste trabalho. Calapez, num curto texto que acompanha a exposição, explica: os traços são "esticados, contorcidos, rendilhados, bloqueados, invertidos, ampliados, repetidos, manipulados", até que a relação com o signo original se esbata e quase desapareça.

Se este processo de trabalho é aquele que tem sido adoptado pelo artista desde há anos, o que surpreende aqui é esta espécie de regresso ao desenho que, na verdade, não o é exactamente. Embora as suas mais recentes exposições incidam sobre pintura, Pedro Calapez continua a praticar o desenho de forma autónoma, desenvolvendo aqui um corpo de trabalho coerente de que Gymnasium é apenas a série mais recente. Na pintura, as suas obras têm ostentado uma qualidade matérica e textural que contrasta nitidamente com o aspecto liso, quase fotográfico da imagem digital impressa a laser e colada sobre alumínio. Há nestas obras uma espécie de contenção, de austeridade e de sobriedade que, apesar da forma contorcida e rendilhada, como ele diz, se opõe em tudo à exuberância cromática das pinturas vistas em outras exposições: também sobre alumínio, em placas que avançam ou recuam em relação ao plano da parede, ou, mais recentemente, sobre tijolo, numa longínqua convocação das séries de Donald Judd. Ou ainda, que se opõe aos torcidos e tremidos do tecto já oitocentista, com as suas deslavadas invocações mitológicas.

Sombras

O nome da série, Gymnasium, recorda os espaços de jogos na antiga Grécia, onde os atletas competiam nus e que eram também espaços de reflexão e jogo intelectual. Este processo duplica, na realidade, o próprio processo criativo, que se materializa sempre na repetição e na diferença. Calapez não parte aqui de uma imagem pré-existente, como já aconteceu em diferentes períodos do seu corpo de trabalho, mas de um signo mínimo, de uma espécie de grau zero do desenho, que através da multiplicação e da deformação possibilitadas pelo programa informático que utiliza, se concretizam numa obra completa que já é um outro em relação à matriz de que partiu. Há ainda outras referências: no formato, por exemplo, que estabelece um regresso aos seus primeiros tempos de actividade artística, e sobretudo na utilização da gama de cinzas e negros sobre fundo claro, uma referência clara a obras em que a alteridade entre negativo e positivo era a regra que possibilitava a materialização do traço.

É que esta é também uma exposição sobre sombras. Há uma citação de Tanizaki que serve de mote à exposição, onde este autor refere que o belo é "apenas um desenho de sombras, um jogo de claro-escuros produzido pela justaposição de diferentes substâncias". Estas sombras, que para o artista incluem também todas aquelas que são produzidas pela imaginação a partir das histórias ficcionadas sobre o palácio, não são apenas aquelas que vemos materializarem-se sobre a chapa de alumínio a partir da impressão digital. É que o próprio desenho computorizado não tem matéria: somatório de bits, é tão efémero e impalpável quanto o processo mental que está na origem da ideia.

Pedro Calapez refere uma espécie de diário íntimo que se alimenta e escreve a partir das deambulações quotidianas, das quais guarda o movimento permanente dos claros e dos escuros, das sombras e das iluminações de todas as formas que cruzam o seu olhar. Esse movimento, o mesmo que os antigos atletas olímpicos almejavam alcançar na sua forma mais pura, surge de uma forma quase paradoxal neste contexto. E, contudo, é esse mesmo movimento que origina a transmutação de cada signo no écrã do computador. Como é ele, sempre sem materialidade, que permite o pensamento: em claro-escuro, sobre diferentes substâncias, gráfico, coisa mental.

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