Zadie Smith O contrário da "posh girl"

Aos 32 anos, Zadie Smith é uma das mais aclamadas jovens escritoras britânicas. A divulgação do seu terceiro romance, Uma Questão de Beleza, trouxe-a a Portugal esta semana. É de aproveitar: ela não prevê escrever novo livro em pelo menos oito anos

a Não se pode dizer que Zadie Smith seja fácil. Na verdade, começamos por achar que, para uma escritora de 32 anos e apenas três obras publicadas, é, no mínimo, arrogante - no mínimo, mesmo para alguém com um verdadeiro pelotão da prémios na bagagem. Mas, confessemos: já vamos ter com ela de pé atrás. Temos um passado: no final de 2007, quando On Beauty foi publicado como Uma Questão de Beleza pela Dom Quixote a troca de e-mails para uma entrevista foi verdadeiramente tensa. Com momentos como este:Pergunta: Em Uma Questão de Beleza nunca conseguimos localizar completamente o momento em que decorre a acção, se hoje se em algum momento de finais do século XIX. O que é que lhe interessou neste efeito?
Resposta: Se quer dizer que a minha linguagem é antiquada, nesse caso, não sei que dizer. Suponho que as pessoas achem que as histórias dos jovens, ou talvez dos negros, devam ser escritas num tipo de calão moderno, completamente explosivo, e que só as histórias de homens brancos mais velhos peçam frases elegantes. É isso? Por outro lado, na sua estrutura, Uma Questão de Beleza faz um piscar de olho ao século XIX. É antiquado, sim.
Antiquado, diz ela. Talvez, de facto, a questão se possa pôr assim sem ser forçosamente um desmérito.
Inspirado em A Mansão/Howards End, Uma Questão de Beleza, que foi finalista do Booker Prize e vencedor do Orange, parte do mesmo tipo de tensões entre classes que o clássico de E. M. Forster. Uma narrativa bastante clássica, ela própria, que decorre entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, acompanhando duas famílias ligadas ao meio académico e que se amam e odeiam à volta da apreciação de um pintor: Rembrandt. Um quase-monumento de 500 páginas, uma dúzia de personagens nucleares e uma série de níveis discursivos, do jargão dos alunos e professores de Estética de uma universidade ao calão de um grupo de imigrantes ilegais.
No fundo, tenta aqui descobrir-se o que acontece à grande tradição literária de inicio de novecentos quando trabalhada hoje. Com um registo arrastado a que muitas vezes falta leveza, Uma Questão de Beleza agarra e repele em igual medida e é quase com surpresa que damos por nós num page turning compulsivo.
Estamos a seguir este fio de raciocínio quando Zadie Smith finalmente entra na sala. É difícil não olhar para ela duas vezes - uma mulher lindissima, alta, magra, com os ossos do rosto perfeitamente delineados. O contraste: uma voz profunda, algo masculina, que não parece caber no seu corpo. E é com esse vozeirão rouco, que ela, a dada altura, nos está a explicar que se as suas referências literárias primeiras são bastante canónicas - Forster, por exemplo - isso se deve ao seu percurso pessoal, o percurso de alguém da working class britânica, vinda de escolas públicas com turmas gigantescas e que, com esforço, conseguiu formar-se em Cambridge: "Não venho de uma família intelectual portanto os livros que li são os que me deram para ler na escola", diz ela. Arriscamos um "e isso não é pouco vulgar?". Queremos dizer "pouco vulgar que um jovem não procure as rupturas, percurso alternativos em detrimento do cânone", mas não temos tempo. "O que é que é pouco vulgar? Não vir de uma família intelectual? A mim parece-me bastante banal", atira o vozeirão. E é então que Zadie Smith se revela perante nós.
Katie e Zadie
Ali estava ela, a desfazer nervosamente uma sandwich de salmão com os dedos e olhos postos no chão e, de repente, ali estava ela, outra pessoa, a olhar-nos bem de frente e com as garras de fora, à defesa, mas pronta para o ataque.
Já tínhamos tido a sensação (e confirma-se) de que havia um auto-retrato derrisório da autora em Uma Questão de Beleza - Katie, a menina pobre que decide ser escritora e ganha uma bolsa para uma das melhores universidades norte-americanas (quando a encontramos está a desfazer-se em lágrimas depois de uma aula de Estética em que se discutiram questões ligadas ao conceito de "liminal", uma palavra que ela pura e simplesmente nunca tinha ouvido). Já mais calma, Zadie Smith há-de explicar: "Talvez se procurem as rupturas quando nos sentimos à vontade com a norma. Eu só sentia que tinha que ler o que tinha que ler. A Katie... Acho que é um sentimento comum a muita a gente, particularmente se a sua educação pré-universitária for frágil. Quando cheguei a Cambridge tinha aulas com pessoas vindas das melhores escolas do mundo. Tinham estado em Eaton, Harrow, sabiam grego e latim, para não falar nas línguas europeias. Eram brilhantes. [Para além de mim] havia mais algumas pessoas de escolas públicas - estávamos sempre a tentar fingir que percebíamos o que se estava a passar mas a verdade é que não percebíamos nada! Tínhamos entusiasmo, mas, quer dizer, aquelas são pessoas cujos pais, avós e até bisavós estudaram em Cambridge, a família toda ao longo de 400 anos!"
É impossível não ficar intimidado, diz. "Eu própria estive a ponto de desistir. Mas há um momento em que deixamos de ter tanto medo. É quando percebemos que aquelas pessoas podem ter uma excelente educação, mas isso não quer forçosamente dizer que sejam inteligentes."
Sem pressa de escrever
Zadie Smith auto-analiza-se: "Eu era muito forte e voluntariosa." Diz era, no passado. Talvez porque desde a publicação da sua obra de estreia, aos 23 anos, a sua vida mudou radicalmente. Houve Dentes Brancos (2000), o igualmente bem sucedido O Homem dos Autógrafos (2002) e Uma Questão de Beleza (2005), mais o acumular do tal pelotão de prémios (o Guardian First Book Award, o Whitbread First Novel Award, o Betty Trask Award, o Commonwealth Writers Prize, o Orange, dois EMMA...).
Alguém com este percurso pode dar-se ao luxo de ir viver para Roma por dois anos para aprender italiano e não pensar em escrever nova obra, diz-nos ela. "A grande dádiva é que, quando se tem algum sucesso, quando fazemos dinheiro não nos exigem nada. Não consigo imaginar que o meu próximo livro saia sequer nos próximos oito anos." Oito anos? "Eu acho que os livros são para escrever quando saem, quando se precisa e se quer escrever um livro. Para quê escrever um livro cada dois anos? Não tenho que ser uma máquina de fazer romances. O problema dos romances, é que é prazer mas também é difícil, é muito tempo. São três, quatro, cinco anos com eles, é esgotante. É uma experiência muito longa e aborrecida."
Zadie Smith volta a surpreender: uma escritora em pico inicial de carreira a dizer que escrever um romance é uma experiência longa e aborrecida? E que é feito da mística literária? "Pois... Eu adoro ser escritora. E quando era leitora também tinha a sensação do mundo dos escritores como uma espécie de irmandade mágica. Mas acho que mistificar demasiado a questão da escrita é uma cortina de fumo, uma compensação para o facto de, na verdade, não se escrever muito bem. Todos os extremos, como o modelo Salinger me parecem um exagero. O que adoro no Salinger ou no Pynchon não é o facto de eles se terem escondido durante 40 anos. Estou-me a marimbar para isso. Quero lá saber! Aquilo de que gosto são os livros que o Salinger nos deixou ler, e os do Pynchon - a mística aborrece-me de morte; nem consigo explicar o quanto me aborrece essa sensação de pequena fraude."

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