Quando Deus é uma canção que fica no ouvido

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Os protagonistas da peça viajam até a uma aldeia fictícia do Uganda, onde tentam evangelizar a tribo joan marcus

Enquanto a América puritana e conservadora ganha terreno, um musical promete fazer coisas a Deus que nem Deus sabe como fazer. A culpa é de Matt Stone e Trey Parker, os criadores da série South Park que, em plena Broadway, se atiram, sem pudores, ao mais esquecido dos livros teológicos: O Livro dos Mórmones. Esta polémica peça é a mais nomeada nos prémios Tony, entregues hoje.

O ano parecia perdido no que ao teatro musical norte-americano dizia respeito. Spider-Man: Turn off the dark continuava a afundar-se em problemas técnicos e sem data de estreia prevista. Foi preciso repor, à pressa, The Birdcage, a versão original de A Gaiola das Malucas, com o seu autor, Harvey Fierstein a regressar ao papel de Zaza, a inevitável diva. As adaptações de filmes, de Dança Comigo a Legalmente Loura, cumpriam o fetichismo habitual sem grande chama e mesmo a estreia no teatro musical de Daniel Radcliffe, a tentar fugir ao papel de Harry Potter numa nova adaptação de How to Succeed in Business Without Really Trying, estava dependente das primeiras vendas para definir o seu futuro. Havia a esperança de que a surpresa de ver Robin Williams interpretar um tigre em Bengal Tiger at the Baghdad Zoo, a partir do livro de Rajiv Joseph, pudesse voltar a colocar a Broadway no círculo das conversas quotidianas. E eis senão quando, a 24 de Março, se estreia The Book of Mormon, descrito como "o musical preferido de Deus".

Os mais inesperados dos autores, Matt Stone e Trey Parker, os eternos rebeldes e criadores da série televisiva de animação para adultos South Park, atiraram-se sem pudores e em plena Broadway à mais weirdo (ou esquisitóide, a expressão é deles) das religiões, no seu estilo escatológico, catatónico e mordaz. Foram anos de espera até que o pudessem fazer, disseram, mas a espera valeu a pena. A peça ganhou todos os prémios possíveis, dos Drama Desk aos Drama League, atribuídos pelo circuito crítico de Nova Iorque e pelo circuito exterior à cidade, e posiciona-se não apenas como favorito mas como inevitável vencedor dos fundamentais prémios Tony, entregues esta noite nos EUA. O sistema teatral nova-iorquino respirou de alívio.

De repente, da radical Fox News à liberal CNN, não havia canal de televisão que não quisesse fazer uma reportagem à porta do Eugene O"Neill Theater. E das páginas que o New York Times lhe deu, à capa que a revista Hollywood Reporter fez, parecia só haver um assunto: até onde se pode ir quanto se fala de fé? E tudo isto por tuta e meia.

Ao contrário dos custos exorbitantes de Spider-Man, ou da complexidade na construção no elenco de Women on the Verge of a Nervous Breakdown (que adapta o filme Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos de Pedro Almodóvar), ou do aparato cénico de Wicked (a sequela de O Feiticeiro de Oz), sem crianças-talento como Billy Elliot nem canções-chavão como Mamma Mia!, nove músicos, zero estrelas, cachets normais e sem cenários a desafiar as leis da gravidade fizeram com que um espectáculo que custou entre 7 e 10 milhões de dólares - e que gasta 600 mil dólares por semana - pudesse prever recuperar o investimento feito em pouco mais de seis meses.

A culpa está no que The Book of Mormon trouxe, pela sua originalidade mais do que pela sua irreverência, pela qualidade musical exigente mais do que pelas canções catchy e não cheesy, pelo modo como estrutura a narrativa e não encavalita sequências musicais, como contraria os determinismos bidimensionais das personagens. É uma Broadway à antiga, com estrelas a baterem-se por lugares na plateia, com críticas nacionais em vez de apenas nos órgãos especializados, com conversas no metro sobre os limites do teatro, com filas à porta e bilhetes vendidos no mercado negro, com brilhos e o glamour que se quer de uma Meca do teatro. E Meca é, aqui, a palavra-chave, como já se percebeu.

A história é simples: dois rapazes, Elder Price (Andrew Rannels), perfeito até ao tutano, irrealista e moralista até à contradição, é, por sorteio, enviado para o Uganda, na companhia de um desleixado, Elder wwCunningham (Josh Gad), que só quer ter amigos (tudo isto numa África que não corresponde àquilo que O Rei Leão mostrou, reconhecem as personagens mórmones, ao que os nativos respondem: "Esse filme tomou demasiadas liberdades artísticas"). O que encontram é uma aldeia ocupada por um general, que precisa tanto de ser salva como tem vontade de os matar.

Pelo meio, Elder Price descobre que Deus não existe e Elder Cunningham percebe que a fé é uma arma poderosa. A aldeia descobre que os mórmones são iguais aos outros profetas que já os tentaram salvar e os outros Elders apercebem-se de que vivem uma mentira na qual gostam de acreditar. No fundo, e não querendo poupar ninguém, Trey Parker e Matt Stone, juntamente com o compositor Robert Lopez (já autor do inesperado sucesso Avenue Q, onde as marionetas de luva e fios, vulgo Marretas, comentavam acidamente a realidade e decadência contemporânea), fizeram uma história profundamente clássica.

Um musical para a família?

"Não queríamos que isto fosse apenas cínico nem uma humilhação dos mórmones", disseram eles à Hollywood Reporter, que os seguiu nas nove semanas de preparação do musical, mais de dois anos depois dos primeiros contactos para montar a peça. "Queríamos que isto fosse esperançoso e alegre, porque é isso que os musicais são." Mas pode-se, de facto, acreditar nisso quando a canção principal tem como refrão "When He fucks you in the butt, fuck Him back in his gut"? O "Him" [ele] aqui é Deus. O "you" [vocês] são os nativos da tal tribo algures no Uganda que os mórmones querem evangelizar. E porque nem uns nem outros sabem a resposta, levantam o dedo, gritam: "Fuck you God!" E insistem: "Fuck Him in the ass, fuck Him in the eye... fuck Him in the other eye", cantam em Hasa Diga Eebowai, que significa, explicam eles depois, "We"ll fuck God in the ass".

Aplaudir a canção depois disto é um sinal de aceitação, de libertação herética ou, simplesmente, de que se está a aplaudir a qualidade da música, a construção métrica do verso, a orgânica estrutura interna do número ou, simplesmente, representa uma forma de manter a compostura, porque tudo o que fazem e dizem vai muito mais longe do que imaginaríamos. E nós a rirmos disso, com isso e de nós?

Na manhã seguinte à estreia, a televisão NBC mostrava-se dividida. No programa matinal discutia-se se era ou não um espectáculo familiar. Se era ou não um espectáculo ousado. Mas segundo os padrões de quem? De uma Broadway que desesperava por qualquer tipo de publicidade? Talvez não fosse aquilo a que se pode chamar espectáculo para todos, quando se dizem coisas assim: "A promessa de cura do cancro está na compra deste iPhone com uma aplicação que o ajuda a rezar a Deus quando estiver preso no trânsito." Ou quando a mensagem mais positiva vem de um feiticeiro com uma T-shirt que ostenta a esfíngica imagem de Che Guevara e o refrão da sua canção diz que tem "ímanes no escroto". Disseram-lhe que isso o livrava de "levar com a sida [sic]". E só porque não tinha resultado a técnica anterior: "Ter relações com um bebé, porque já não há muitas virgens." "Mas a sida está por todo o lado", diz. "Fuck God!", gritam todos. E gritam como defesa contra um general, o todo-poderoso Butt Fucking Naked, que se chama assim, diz ele, "porque é assim que estou quando mato pessoas". E há mais: mórmones que acham que pior do que ser gay é ser mentiroso, "mas ser gay é muito, muito mau, e ser-se um gay mentiroso é pior do que ser um mentiroso gay". Mas não é a fé (e a religião) algo que, quando existe, existe em e para todos?

Que Matt Stone e Trey Parker nunca se preocuparam com o que iam pensar deles é um dado adquirido. Anos de South Park habituaram-nos a esperar deles o sangue, as tripas e a irreverência característica do puritanismo e conservadorismo que norteia a criação artística e, em particular, a televisão norte-americana. O que não sabíamos é que esta sua vontade em falar dos mórmones tinha raízes profundas. Uma das primeiras namoradas de Parker era mórmon e o autor recordou ao New York Times como ficava fascinado cada vez que ia a casa dela: "O que raio estão a fazer?" O modo como construíram a peça, armadilhando-a de referências banais que tanto serviam de metáfora para contar a história original dos mórmones, quanto para dinamitar o modelo habitual dos musicais, granjeou-lhes uma peça que a crítica diz ser o exemplo máximo a que poderia aspirar um musical no século XXI.

Os rapazes de branco

Convém fazer aqui um desvio e explicar o que é a religião mórmon, para além das imagens do par de rapazes vestidos de branco que de vez em quando nos tocam à campainha para nos prometer o paraíso - que, descobrimos na peça, fica em Salt Lake City. Ou "Sal Tlay Ka Siti", como a cantam na peça, de modo a que a métrica coincida com a música.

Existe, de facto, um Livro dos Mórmones e é levado muito a sério, publicado em 1830 por Joseph Smith Jr., que se tornaria no pastor da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. O livro original, segundo Smith, estava gravado em placas douradas, prometidas aos que abraçassem esta fé. O título original e completo é O Livro de Mórmon: Um relato escrito pela mão de Mórmon a partir das placas retiradas das placas de Nephi, que Smith diz ter recebido na sua propriedade, na fronteira entre a cidade de Palmyra e a cidade de Manchester, no estado de Nova Iorque, de um anjo chamado Moroni, identificado como sendo um antepassado dos indígenas americanos. Ou seja, a igreja dos últimos dias seria a mais pura e a única religião inteiramente norte-americana - daí ter tido origem no interior dos Estados Unidos. A única que respeitaria, e defenderia, os valores norte-americanos. Estes escritos narravam um período temporal entre 600 antes de Cristo e 421 depois de Cristo.

Parêntesis para a peça de Stone e Parker: de facto isto surge na peça - até o local prometido é Salt Lake City, no deserto do Utah -, mas os valores e a cultura norte-americana são um amontoado de referências pop e capitalistas que invadiram o mundo num comportamento neocolonialista. Ou seja, a pregação da palavra divina seria feita por estes valores economicistas, ao invés de uma exposição clara das promessas feitas a quem aceitasse passar o portão dourado. O modo como os fiéis da igreja lêem o livro sagrado, que relata um tempo anterior ao encontro com Smith e em grande medida reescrevendo a história da cidade de Palmyra (onde ocorreram, entre 1789 e 1800, grandes confrontos entre os nativos e os colonizadores), permite-lhes desenvolver toda uma outra forma de pensar o papel do ser humano. Os mórmones consideram-se o povo escolhido e, pela culpa e redenção, estariam de passagem para esse outro mundo. No fundo, aquilo que se conta na peça: "Life doesn"t need to be shitty/ Paradise exists in Salt Lake City." Porque, como ensinam os americanos, Jesus Cristo viveu nos Estados Unidos da América.

The Book of Mormon não é apenas um musical irónico e ácido. E o que fez com que as divisões habituais entre defensores da fé e ateus não pudessem seguir a contra-argumentação habitual é que a peça é, na verdade, um verdadeiro manifesto sobre o poder da fé.

Elder Price, o bem comportado mórmon que seguiu todas as regras com o único objectivo de ser colocado em Orlando - e por uma única razão, porque é lá que está a Disneyworld, o mundo mais-que-perfeito -, pode cantar: "I"ll do something incredible that will blow God"s mind." Mas aquilo que na verdade ele está a cantar, por entre o narcisismo da letra, é que ele será, tal como Deus deseja, o melhor exemplo do que o ser humano pode conseguir: um ser perfeito. O problema de base está no facto de Kevin (o nome real de Elder Price) não querer reconhecer a falência - não desta religião em particular, mas de todas em poderem contribuir para esse ser perfeito. E, por isso, tal como canta o líder da igreja que no fim os castigará, "Deus é o nosso melhor trabalho".

O segredo do sucesso da peça, que pôs Sandra Bullock na lista de espera para arranjar bilhetes e que tenta garantir lugares para todos os mórmones que pedem para ir ver The Book of Mormon (e são muitos, vindos de todo o país), que faz com que as pessoas se levantem às cinco da manhã para tentar arranjar bilhetes tem a ver com isto: "É uma história tradicional, e preocupamo-nos com o que as pessoas estão a fazer."

Para os autores, Deus não está ali, mas nas referências, da Guerra das Estrelas ao Homem-Aranha, da petrolífera Esso ao McDonald"s que fazem da cultura norte-americana dominante. Ou seja, da cultura americana, uma cultura com um só Deus. Eles próprios. O que The Book of Mormon faz, por entre tiros de metralhadora, revisitações de batalhas entre Jedi, cavalos despedaçados, galinhas acrobatas e números em que se cantam os mórmones como mensageiros da "mais rápida das religiões" - porque "se deslocam em pares" -, é assumir que a religião é, ela mesma, um pilar fundamental da cultura norte-americana. tiago.costa@publico.pt

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