Por favor,não lhe chamemrapaz-prodígio

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Nico Muhly sabe de onde vem - "O meu universo é o da música clássica" - mas não sabe exactamente para onde vai quando começa a compor: "O processo envolve fazer milhões de rascunhos, enviá-los para o lixo, e refazer, refazer e refazer"

Compõe óperas, há orquestras que interpretam as suas peças, Antony e Björk bajulam-no e ainda tem tempo para criar álbuns a solo e andar em digressão com um grupo de amigos que se junta quinta-feira, no Maria Matos. Ninguém pára Nico Muhly. Vítor Belanciano

Gosta de falar sobre tudo: música, literatura, religião, filosofia, séries de TV, novas tecnologias ou cozinha, onde tem fama de arrasar. Só não lhe chamem rapaz-prodígio, como a mais influente imprensa americana fez quando começou a dar nas vistas há três anos. Aí o seu humor pode transfigurar-se. "Irrita-me um pouco esse tipo de nomeações. Não sou nenhum ser bizarro. Sou músico, nada mais."

Nico Muhly, 27 anos, americano - ele gosta mais que lhe chamem nova-iorquino, o que faz alguma diferença -, faz parte de uma nova geração de compositores que se move com à vontade entre a música clássica contemporânea e a cultura pop, capaz de compor para ópera, dança clássica ou cinema como de criar álbuns que desafiam classificações - caso do excelente "Mothertongue" - ou de encetar colaborações com figuras como Philip Glass, Antony ou Björk.

Na próxima quinta-feira, no Teatro Maria Matos, Lisboa, estará pela primeira vez em Portugal, para um espectáculo com três músicos - "um grupo de amigos" que, em conjunto, partilham uma editora, a Bedroom Community, onde lançam os seus discos.

Nico ocupar-se-á do piano e dos teclados, Sam Amidon do banjo, da guitarra e da voz, Ben Frost e Valgeir Sigurõsson das electrónicas. A "Whale Watching Tour", assim se chama a coisa, nasceu na Islândia natal de Valgeir Sigurõsson (produtor de Björk, CocoRosie ou Múm), e são cerca de duas horas de celebração colectiva que passa pela folk americana, pela música de câmara e pela electrónica.

Para Portugal, Muhly promete uma atmosfera "intensa e divertida", explicando que "gosta de viajar e de tocar ao vivo", embora as digressões lhe usurpem o precioso tempo: "É assustador porque não componho de forma tão rápida como os músicos rock", comenta.

Da música clássica

para o mundo

Quando se fala dele, a divisão entre os universos da música clássica e da pop é recorrente. Mas Nico Muhly não tem dúvidas acerca do lugar a que pertence: "Venho de uma tradição clássica tanto como você é de Portugal. Não interessa onde vive em determinado momento porque essa identidade permanecerá e será transportada consigo. Pela mesma razão, o meu universo é o da música clássica."

É verdade, embora os seus dois álbuns ("Speaks Volumes", de 2007, e "Mothertongue", de 2008) não sejam conclusivos nesse ponto. São discos que espelham aprendizagem clássica, mas que abrem portas a outras paletas sonoras, pop, folk, electrónicas. Pelo meio existem arranjos para cordas dissonantes ou sons concretos de alguém a tomar banho, a comer torradas ou a fritar ovos. Certo, fez o trajecto tradicional por colégios e conservatórios, mas nunca perdeu de vista outras músicas, outras experiências, outras ferramentas. Quem o seguir, por exemplo, na rede social Twitter, sabe que a tecnologia, e as questões filosóficas inerentes relacionadas com os direitos de autor e a propriedade intelectual o apaixonam.

"A propriedade intelectual é o meu tópico favorito", conta. "Não tenho uma posição definida sobre o assunto mas é infinitamente fascinante. As ideias na música são como na comida. Um prato londrino que aparece num menu em Minneapolis deve ser encarado com roubo ou homenagem? É um assunto muito, muito interessante."

A visão transversal que revela, em relação à música mas não só, é facilitada pelo facto de pertencer a uma geração que cresceu com ferramentas como o Google, o MySpace ou o YouTube, que permitem a interactividade entre universos. Mas Muhly não tem uma visão sagrada da tecnologia. "Utilizo imenso o computador, como instrumento e ferramenta. Gosto de escrever peças musicais - concertos para violino, por exemplo - no computador, embora não tenham nada a ver com tecnologia. Dito isto, não sei até que ponto a tecnologia afecta o meu trabalho. Sei apenas que está lá. Mas tenho de dizer que um dos grandes prazeres da vida é ver Internet numa cama de hotel: é nesses momentos que 99% das minhas ideias nascem", admite.

Pequenas grandes coisas

Nico Muhly cresceu em Providence e formou-se na Universidade de Columbia em música clássica e literatura inglesa. Cantou no coro da igreja, começou a aprender piano aos 11 anos e desde sempre revelou um grande fascínio por música sacra. Em concreto, sobre a função emocional dessa música. "Há uma espécie de "narrativa escondida" na música sacra que me agrada, como se as emoções estivessem profundamente ocultas na textura do som", afirma, tentando explicar o encantamento da música religiosa renascentista dos séculos XVII e XVIII.

Há cinco anos, foi distinguido pela conhecida Juilliard School, onde estudou também composição, e peças suas foram tocadas por orquestras respeitadas como a American Symphony Orchestra ou a Chicago Symphony quando tinha pouco mais de 20 anos. No ano passado foi recompensado com uma noite dedicada às suas composições no Carnegie Hall de Nova Iorque.

Aos 18 já tinha começado a trabalhar regularmente com Philip Glass, nos filmes e discos deste, e nos últimos anos encetou inúmeras cooperações. Antony cantou no seu primeiro álbum e ele fez os arranjos do último longa-duração deste, "I Am A Bird Now". Os arranjos dos três últimos álbuns de Björk têm o seu dedo e colaborou nos últimos tempos com Bonnie Prince Billy, Rufus Wainwright, Sufjan Stevens, Grizzly Bear ou Owen Palett (Final Fantasy).

Quando compõe, a última coisa em que pensa é nas notas que os músicos irão tocar. Começa com fragmentos de memórias, livros, documentos, manuscritos ou simples vídeos do YouTube. "O processo começa normalmente com um simples gesto ou com linguagem", explica. "Por exemplo, se ouvir alguém dizer qualquer coisa de interessante, fico a pensar naquilo durante dias. Por norma é assim que chego à estrutura da música. Outras vezes, vejo pessoas a fazer qualquer coisa - um pequeno gesto, como cozinhar, por exemplo, e isso evoca-me a forma como toco piano. O processo normalmente envolve fazer milhões de rascunhos, enviá-los para o lixo, escrever milhões de notas, e enviá-las para o lixo, e refazer, refazer e refazer."

Mas também existem influências musicais naquilo que faz, principalmente da escola minimalista personificada por Philip Glass ou Steve Reich. Em simultâneo partilha algumas afinidades com figuras contemporâneas, não alinhadas em nenhuma tipologia em particular, dos The Books aos Matmos, passando por Final Fantasy ou Herbert, mas quando lhe pedimos que nos diga o que o excita hoje em dia a resposta é outra coisa: "A Islândia excita-me. A cantora francesa Camille excita-me. As reedições de Chet Baker excitam-me. Pizza com queijo e figos excita-me. Um amigo que ensina matemática em Brooklyn excita-me. Não é difícil ficar excitado!".

Nova Iorque, Nova Iorque

Outra das excitações, e uma das grandes influências na sua música segundo o próprio, é a sua cidade. "Amo Nova Iorque mais do que qualquer outra coisa", diz sem hesitar. "Posso ter estado fora, sei lá, um ano, mas, mesmo assim, quando aterro sinto-me emocionalmente envolvido. Uma vez, depois de ter estado três meses em Londres, aterrei no aeroporto JFK e comecei a chorar. A energia de Nova Iorque é incomparável. É a única cidade onde se pode realmente comer tarde, por exemplo. Paris e Londres são óptimas para se estar alguns meses, mas, no fim de contas, não se pode comer sushi às três da manhã. Que cidades são essas!? Nova Iorque tem o estilo de vida de que um artista necessita e o resto são histórias."

O resto é com alguém que não procura mudar perspectivas, seja da música erudita ou da pop. Mas que procura absorver o máximo de possibilidades à sua volta, criando uma música repleta de desvios, algures entre Ligeti e Björk, Brahms e Meredith Monk. Agora encontra-se a compor um novo álbum de originais e uma ópera. Tudo isto apesar de dizer que não tem tempo, enquanto anda em digressão.

É um hiperactivo: um músico que se entusiasma e que, ao mesmo tempo, reflecte sobre as contradições do nosso tempo. Época de excessos, de informação em catadupa, de inúmeros significados desencontrados e de muita música. Talvez demasiada música. "Todos os dias recebo cerca de 20 mp3 e já quase não compro CD", contabiliza. Por momentos, parece surpreender-se com as suas próprias palavras.

Ver agenda de concertos na pág. 45 e segs.

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