O casamento tem de ser um direito de todos os cidadãos. Eu vou-me casar com o David

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Foi missionário e chegou a temer o fogo do Inferno. Entretanto, concluiu que Deus tem mais em que pensar do que na homossexualidade. Ricardo Mealha, o mais cotado designer gráfico português, casa-se amanhã com o namorado.

Ricardo Mealha, 41 anos: o mais cotado designer gráfico português, fundador da RMAC, hoje parte da agência de publicidade BBDO, e autor do blogue Portugal Remix, sobre o catolicismo e o passado esclavagista português, é gay. Tem uma relação há seis anos com David Rodrigues, de 28 anos, e decidiu oficializá-la com uma cerimónia a celebrar amanhã na discoteca Lux, em Lisboa. Entre 300 e 500 convites enviados, um deles ao primeiro-ministro José Sócrates. O namorado prefere não falar. Ele fala. "É mais simples do que parece."Havemos de chegar ao porquê decidir casar-se, mas, antes disso, primeira pergunta inevitável: porquê decidir tornar público um gesto que podia mais simplesmente ser privado?

É a questão principal. Tem que ver com pôr em perspectiva aquilo que nos persegue, que nos acompanha a todos, quotidianamente: tentar perceber o que é isto de ser português, o que é isto de viver em Portugal.

Nestes anos todos, acho que fiz muitas coisas importantes pelo meu país no sentido do progresso e da inovação e de tudo aquilo de que a sociedade portuguesa tem falta. Portugal tem muita falta de inovação há já 500, 300 anos. É um país de comércio, um país de mandar fazer, de importar. Em Portugal, a criação, seja ela industrial ou artística, é sempre uma complicação. [Ora,] A criação está ligada à liberdade. Liberdade de opinião, direitos humanos... Não podemos separar nada, está tudo ligado e a base é sempre a criatividade e a liberdade. A partir daí surge tudo na sociedade.

Portugal continua dependente da opinião e do medo do vizinho, do querer ser grande mas não saber como. Neste momento está a passar por um período muito complicado e que vai piorar. Porque estamos sem rumo. Ainda hoje estava a ler a entrevista [do sociólogo António Barreto] ao [jornal] i. Chego ao aeroporto [vindo de São Paulo] e leio: "Portugal está à beira da irrelevância e do desaparecimento."

O que é isto? O que é que isto significa? Qual é a base de tudo isto? Portugal é um país tão complexo, com tantas referências culturais, com tantos estratos de informação... Como simplificar a questão portuguesa? Não se simplifica. É um país com 900 anos de atraso. Supostamente de grande progresso e conhecimento há 500 anos mas que, de repente, não existe. É um paradoxo. Um país bipolar. Não se percebe bem o que se passa aqui. Voltando ao casamento: não é que faça questão de ir à janela e gritar que sou homossexual. A minha vida, o meu dia-a-dia são outros; quis tomar este passo público para, de alguma forma, à minha escala, contribuir para o progresso da mentalidade dos portugueses em relação ao que é a base de qualquer sociedade: os direitos humanos.

A primeira pergunta parte de não ser uma figura conhecida por gestos de reivindicação e afirmação pública pelos direitos LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros] .

Pois não. Nem sequer faço parte de qualquer organização. E sem nenhuma razão particular. Sou assim, naturalmente. Meço, obviamente, os meus actos e as minhas palavras, mas levo a minha vida à minha maneira. Considero-me acima de tudo uma pessoa livre em termos de pensamento e opinião e tudo o que faço tem de ter uma base muito confortável e muito independente. Cheguei à conclusão de que era a altura certa de eu e o David nos casarmos. Vamos para fora durante uns tempos e a lei [sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo] vai ou não ser aprovada. Em princípio vai ser, mas este país "engonha" imenso: vai-se fazer; vai ser muito inovador; já não se faz...

Como a questão do referendo sobre o aborto, em 1998, durante o governo de António Guterres...

Tem sempre a ver com a Igreja. São as questões do costume, num país que tem o catolicismo na sua essência. Portugal nasceu como país católico. A nossa razão de ser foi antiárabe. Somos um país do contra. Somos a favor de uma ideologia cristã católica. Desde o início. Os Descobrimentos, a escravatura... Tudo teve a ver com um objectivo: expandir a fé cristã da Igreja de Roma. E, essa questão, apesar de hoje em dia as pessoas pensarem que é muito irrelevante, não é nada irrelevante: eu vivo na Avenida João XXI, que era um Papa português, na freguesia São João de Deus, ao lado da freguesia de Nossa Senhora de Fátima [em Lisboa]; estudei na Academia de Música de Santa Cecília, no Colégio São João de Brito... É só santos e santas.

Portanto, pensa que os problemas ligados à legalização do casamento homossexual têm que ver com o fundo católico da sociedade portuguesa...

Claro que têm.

... E com uma ainda não separação absoluta entre a Igreja e o Estado.

Obviamente que têm.

Em que medida é que acha que a Igreja tem ainda um ascendente sobre o Estado português?

Na medida de todas as coisas que nos são ensinadas enquanto crianças. Na medida do pecado, de não agradar a Deus, de irmos todos para o Inferno. Na medida do medo. Há um medo. Um medo de não aprovação. O Papa vem aí no dia 13 de Maio e é contra o casamento homossexual. E aí? Como é que é? Como é que é neste país, o último reduto onde Nossa Senhora de Fátima apareceu? O que é que nos acontece se ela não estiver do nosso lado? Onde é que ficam as nossas almas? Ficamos todos perdidos? Isto é a ideologia generalizada do português que tem fé, que segue a fé católica.

Quase ninguém fala publicamente nesses termos. Acha que se traduziu esse fundo mental num discurso mais abstracto, menos ideologicamente carregado?

Obviamente. Todos os políticos sabem perfeitamente o que se passa lá fora, em todos os países. Os Estados Unidos da América, neste momento, têm um Presidente negro. Nós, os portugueses, que na era moderna fomos quem deu o impulso à escravatura em África, de repente damo-nos conta de que o país mais poderoso do mundo tem um Presidente que é negro. Isso causa um impacto na nossa mentalidade: concluímos que estamos atrasados.

Fomos também o primeiro país a abolir essa mesma escravatura.

Não, não fomos.

É um mito?

É. Remonta ao século XVIII. É uma legislação de D. José, uma lei muito engraçada, muito interessante. [Na altura,] tínhamos um excesso de escravos enorme, aqui na metrópole. As pessoas não trabalhavam, não faziam nenhum, havia ócio, para variar. E, porque havia necessidade de mão-de-obra no Brasil, proibiu-se a entrada de novos escravos na metrópole. Foram todos encaminhados para o Brasil. É o que, na escola, se chama a abolição da escravatura no século XVIII. Mas nós fomos o último país, com o Brasil, a abolir a escravatura. A primeira associação para a protecção dos escravos foi criada só a seguir à [implantação da] República, em 1910. Os ingleses andaram atrás de nós por causa do tráfico negreiro até 1909. Atenção: é uma história muito mal contada, essa [da abolição da escravatura]. Parece a história de um país progressista, mas não é verdade. A Revolução Industrial não vingou neste país por causa do trabalho escravo. Os ingleses queriam pôr cá as máquinas a vapor e não conseguiam. Nós estávamos habituados aos negros, mas sem nos misturar com eles. Hoje, olhamos para a sociedade portuguesa e somos todos brancos. Os negros não estão cá. Alcácer do Sal era uma comunidade de negros gigante - os arrozais eram todos trabalhados por negros. Havia os negros de Negrais por todo o país. Mas não estão cá. Não nos misturávamos.

O revisionismo histórico em Portugal tem de acontecer rapidamente para podermos perceber quem somos. É muito complicado. Ensinaram-nos sobre a miscigenação e o papel incrível de Portugal na Índia e no Brasil. Mas foi porque era necessário: éramos meia dúzia, tínhamos de nos reproduzir, não é? Cá, no nosso território, onde é que acontece?

É um exercício pensar onde estão os negros nos círculos com mais poder em Portugal.

Não estão. Vêem-se na Linha de Sintra, a apanhar o comboio. E não estou a comparar. Os ingleses, os holandeses... Não me interessa, não me interessam os outros. Interessa-me a minha cultura e a minha sociedade. E em relação à minha mentalidade o meu país está globalmente atrasado, está atrasado em relação àquilo que se pode considerar um estar do século XXI, muito atrasado, muito atrás. Para onde vamos? Não sei. Eu vou agora para o Brasil por um ano.

Porquê o Brasil?

Porque é um país novo.

Não tem o peso da Velha Europa.

Não tem, não tem o peso de Portugal. Tem, neste momento, independência energética; descobriu petróleo e vai, gradualmente, libertar-se da maior praga que introduzimos lá, que foi a cana de açúcar, que ainda escraviza milhões de pessoas. O Brasil é um país novo, nasceu agora. Não renasceu, nasceu agora. [Nós, os portugueses,] levámos para lá a nossa cultura, a nossa língua, a nossa maneira de estar, que era o que era, mas que se provou ser um desastre. E o Brasil, agora, nasceu. Nasceu com a nossa língua maravilhosa a que chamo "a verdadeira auto-estrada". Chegar ao Brasil e perceber que posso pensar em português, comunicar em português com pessoas com outra mentalidade e outra maneira de estar na vida é incrível. São pessoas que não são quadradas. Não têm forma. Adaptam-se a maneiras diferentes de estar na vida, pessoas que questionam, criam. Existe indústria, existe imensa vontade de ser e fazer, que é o que não existe em Portugal neste momento. Portanto, o que é que eu sou: um português que quer estar rodeado de pessoas com vontade de construir. Em Portugal tenho um grupo extenso de amigos, pessoas como eu, mas abafados por esta mentalidade que é redutora, asfixiante e tudo isso, mas que, acima de tudo, não é livre.

Tem-se sentido asfixiado?

Pessoalmente, não. Tenho tido imensa sorte. Não tenho oposição de ninguém, nem pelo meu trabalho nem por ser gay nem por nada. Sou muito bem tratado. Só que, de repente, quero ir mais longe. E é complicado ir à rua e falar com as pessoas em Portugal. As pessoas não são flexíveis, não são alegres, não são felizes. Não têm a energia que eu tenho. Preciso de um terreno mais fértil para poder crescer.

E, portanto, decidiu que queria oficializar esta relação de seis anos.

Seis anos e meio.

Decidiu que queria casar e pensou: vou aproveitar, tornar público, dar o exemplo, fazer um gesto de afirmação política, contribuir para a discussão.

Tem que ver com direitos humanos. À parte a minha profissão, o meu cavalo de batalha dos últimos anos tem sido a escravatura. A questão de Portugal e da escravatura é parte do meu mal de viver num país que não reconhece os erros que fez. Enquanto os outros países reconhecem - de Espanha à Inglaterra, à Holanda, à França; o próprio Brasil, os Estados Unidos -, em Portugal há um silêncio mórbido. Não falamos sobre os crimes cometidos contra a humanidade durante 400 anos. Somos, na era moderna, o país que mais tráfico de escravos fez. Mercadores das especiarias e do marfim, sim, mas mercadores também da morte. Isso é um peso. A nossa história foi contada pelo Estado Novo e não foi recontada. Aos olhos do século XXI não temos qualquer glória. Agora, não sou negro. Sou homossexual. Pensei em que é que podia contribuir, à minha escala, pela defesa dos direitos humanos.

Em que medida defende o casamento homossexual como uma questão de direitos humanos?

O problema do casamento é ser uma palavra conotada com uma cerimónia religiosa com um fim de reprodução biológica. Mas isso são outras questões. Para mim, o casamento é uma união que é e tem de ser um direito de todos os cidadãos. Eu vou-me casar. Vou celebrar o meu casamento. Depois se verá no registo, se é reconhecido em Janeiro, Fevereiro, Março, Abril... quando a lei passar, nem que seja daqui a um ano. [Entretanto], vou viver para o Brasil, em Janeiro, e, antes, vou fazer uma festa, com todos os meus amigos.

Vamos falar da Igreja, esse tabu: a Igreja é o problema. Eu não sou contra a Igreja, mas este meu statement é contra a Igreja. Num país católico, a Igreja é uma coisa muito complicada.

Que exemplos pode dar do peso na Igreja em decisões políticas?O diploma das uniões de facto ser mandado para trás pelo Presidente da República, por exemplo. Somos um pais católico: os nossos políticos são católicos, a mentalidade de todos os portugueses é católica. Temos este grande peso de o homem, para chegar a Deus, ter de passar pela instituição Igreja. Não chegamos à salvação, que é o fim último da nossa existência neste planeta, a não ser através de uma porta chamada Igreja Católica Romana. E a Igreja Católica Romana não está de acordo com a mentalidade vigente. O que é uma coisa estranha, não é? Porque, sendo a voz divina uma voz eternamente certa e sendo a Igreja a voz da verdade, nós é que devíamos estar atrasados em relação a ela. A Igreja devia ver que estamos num mundo novo e que tem de se adaptar a uma nova realidade. Mas não é assim. O Vaticano é um Estado poderosíssimo, absolutista, inflexível. Nós achamos que não, que temos de convencer a Igreja, coitadinha, de que está errada. Não é bem assim. A Igreja é uma organização retrógrada, que serve para bloquear a nossa liberdade e acessos às nossas opções de vida. As pessoas são o que são, são naturalmente humanas e não precisam de um instrumento mediador entre si e a divindade. Não faz sentido nenhum.

Teve uma educação católica?

Claro que tive. Temos todos.

E em que momento é que olha para a base da sua formação espiritual e a interroga, começa a questioná-la, a duvidar dela?

Há cerca de 20 anos.

Que idade tinha?

Vinte.

E já sabia que era homossexual?

Sempre soube, sempre senti atracção por pessoas do mesmo sexo que eu. Passei por um período, que acho que todos os homossexuais com uma base de formação católica passam, em que perguntava: será que vou para o fogo do Inferno? Será que Deus não me aceita se eu tomar esta opção, se seguir a expressão física da minha sexualidade? Fiquei baralhado. Depois, optei por ter uma vida sexual de acordo com aquilo que é a minha maneira natural de estar na vida e percebi que Deus nem sequer está para aí virado... [risos]

Tem mais com que se preocupar...

Tem muitíssimo mais com que se preocupar do que com a história do sexo. [risos] Isso é uma paranóia de quem tem uma orientação religiosa patriarcal, comandada por homens que vêem na sexualidade um factor de limitação. A Igreja tem de ter um instrumento para regular as pessoas. Neste momento, como já não tem relevância nenhuma na sociedade, surge com a questão do sexo. Já não é a gula [nem nenhum dos outros pecados capitais], nada disso: é o sexo. É o preservativo, o casamento gay...

Os homossexuais têm de ser respeitados. Aceites nunca vão ser, mas tem de se lhes perdoar, de alguma forma. Aquele sentimento de superioridade face ao outro. Um bocado como os negros, não é?

Como assim?

Os negros não tinham alma, não é? Estamos a falar do tempo do Infante D. Henrique. O Infante D. Henrique precisava de autorização para conquistar o Norte de África, por isso, o Papa Inocêncio V passou-lhe uma bula em que dizia que se podiam subjugar e escravizar perpetuamente todos os negros porque eles não tinham alma. Foi com essa premissa que fomos pelo mundo fora, com este nível de manipulação da realidade do outro. E Portugal, até hoje, tem um grande problema com o outro. Quem é o outro? O branco, o preto, o gay, o gordo, o magro... Tivemos um problema sempre, uma desconfiança em relação ao outro. Não aceitamos outras pessoas na nossa vida. Pode ter outras influências, porque Portugal não é só a Igreja Católica, mas vem daqui. Na altura de D. Afonso Henriques, já os árabes cá estavam há 500 anos e, como sabemos, somos uma misturada enorme de culturas. Mas tudo isso foi tapado, embalado pela Igreja Católica Romana.

Talvez para aceitar o outro seja necessária uma etapa de aceitação própria, não só individual como colectiva.

Sim. Acho que tem muito que ver com isso. É difícil colocarmo-nos no lugar do outro, é preciso muita lucidez. Eu acho que, na sua essência, o ser humano, independentemente da cor ou posição social, é bom. Sou muito positivo nesse aspecto. Não sou desconfiado por natureza. E acho que é a maneira de estar na vida. Estamos aqui para criar, ser livres e, em comunidade, conseguir construir uma sociedade boa. Sou humanista, acredito no ser humano. Já a Igreja...

Precisamente, quando fala no momento em que assume a sua homossexualidade, confia nos outros; fala primeiro no medo de não ser aceite por Deus do que no medo de não ser aceite pela família, o contexto social mais alargado.

Teve a ver com um percurso de vida diferente. Eu fui missionário. Não de uma religião católica, mas de uma religião new age sediada nos Estados Unidos. Fui missionário lá durante um ano e meio, dois. A seguir fui missionário no Brasil mais um ano e tal. Depois voltei para Portugal. Foi entre 1987 e 1991, mais ou menos. As religiões new age são uma mistura de todas as religiões - catolicismo, budismo, Cabala... Mas, apesar de uma visão muito abrangente da espiritualidade, [a minha] era uma religião muito conservadora, com uma base fundamentalista e antigay. Aliás, o fundamentalismo cristão na América é fortíssimo.

Voltamos a falar na origem das coisas: osEstados Unidos são fundados por fundamentalistas cristãos...

Exactamente. Portanto, tudo óptimo: união de várias religiões, um pensamento muito mais progressista, a ligação com a essência divina a não necessitar de uma organização religiosa... Mas existem bases para o nosso progresso que têm que ver com a limitação sexual: as pessoas não se devem exprimir sexualmente porque isso é um problema. O homem foi criado à imagem de Deus. Adão e Eva são os nossos pais, portanto nós também temos de ser pais de alguém. A base [desta religião new age] era judaico-cristã. Foi uma das razões para ter saído: ter assumido a minha sexualidade. Achei que não era compatível, que não estava a ser honesto. Ou uma coisa ou outra. É um problema, também, da sociedade portuguesa: as pessoas não assumem. Tantos homens que casam com mulheres e depois têm casos por fora! As pessoas não assumem. Não dizem: "Vou optar na minha vida por este caminho." Pode-se mudar de ideias, mas, quando estamos num caminho, temos de estar convictos do que estamos a fazer, não devemos trair os nossos princípios.

Não há homossexual que vá a uma sauna gay em Lisboa e não comente que muitos presentes são homens casados, de aliança no dedo.

É. É uma coisa muito estranha. Uma vida dupla que não faz sentido.

A sua descoberta sexual dá-se com outros membros da sua igreja?

Não. A minha descoberta sexual foi anterior. Quando entrei para esta religião, tive de me regrar, de alguma forma. Acreditei que a salvação da minha alma passava por ali. [risos]

A sua família fazia parte da mesma religião?

Alguns sim, outros não.

E como reagem quando não só abandona a Igreja como assume a sua homossexualidade?

Tenho uma família inteligente, que percebe e acompanha. A minha mãe sabe que me vou casar. O meu pai sempre me aceitou a mim e ao David. As minhas irmãs, os meus sobrinhos... Toda a gente. Não tenho problemas familiares nenhuns.

Vem de um contexto privilegiado, portanto, se não em termos económicos, pelo menos em termos intelectuais e afectivos.

Acho que, acima de tudo, é isso: tem a ver com inteligência. É perceber que espiritualidade e sexualidade não têm nada a ver. A inteligência não escolhe classes sociais.

No seu contexto, é difícil, mas acontece com frequência: casais gay juntos há anos que em momento de crise e doença se vêem separados pela família, impedidos de se visitar no hospital, de receber heranças...

Acontece agora, mas as pessoas vão progredir, tudo vai progredir naturalmente. A privação de um dos membros do casal visitar no hospital daqui a cinco anos já não vai acontecer em lado nenhum. Tem a ver com os arquétipos que regem as relações humanas. É uma realidade subjacente ao progresso da sociedade. Não há volta a dar a isto. A questão dos casamento gay pode ir mais depressa ou mais devagar, mas é como a escravatura: acabou, está decidido. São coisas que têm a ver com uma maneira de estar na vida compatível com a liberdade e educação do ser humano. Naturalmente, vai lá.

Não teme um retrocesso?

Não. Nem pensar. O problema de Portugal não é o casamento gay. Nós temos sobretudo um problema de identidade.

Mas já vivemos momentos como a aprovação da Proposition 8 [que em Novembro de 2008 definiu que, na Califórnia, tido como o mais liberal dos estados norte-americanos, "apenas o casamento entre um homem e uma mulher é válido"], isto, precisamente quando toda a gente achava que se tinha atingido um ponto de não-retorno [seis meses antes, o Supremo Tribunal declarara como inconstitucional a discriminação de lésbicas e gays no acesso ao casamento]...

Sim. E na Argentina agora aconteceu o mesmo. Mas são períodos de tensão. Mais uns anos e não vejo que haja problema. De qualquer forma, eu não sou um militante de nada. O meu casamento é uma festa, uma celebração de amor. A celebração de uma coisa em que tanto eu como o David acreditamos - a base muito forte da nossa vida: uma relação que funciona, no dia-a-dia, uma relação maravilhosa, com uma base de amor, afecto. É um ritual que tem de ser marcado e de que as pessoas vão ser testemunhas. Parece complicado, mas é muito simples. Claro que se passarmos para um referendo as pessoas não querem, não querem acreditar que uma parcela minoritária da sociedade possa ter acesso a um privilégio que era, até agora, apenas da maioria. Têm medo.

Portugal hoje, o medo de existir, como diria José Gil...

Temos de nos reinventar e isso implica sermos criativos, mas como não temos nenhuma solidez científica, como somos uma sociedade analfabeta - temos ainda uma taxa de oito por cento de analfabetismo, continuamos com 18, se não 40 por cento, de pobres (depende de como se lêem os dados) -, temos complexos de inferioridade em relação aos ingleses e de superioridade em relação aos marroquinos, talvez... Como é que em 900 anos somos este desastre? Somos um país frustrado. Um país com uma vocação imperial, mas sem império. Não somos nada. Portugal acabou. Na sua essência, era um império. Além disso, não somos nada. Temos uma comunidade emigrante gigante, neste momento também bipolar, feita de pessoas com altíssimos cargos, mas também baixíssimos. Temos uma identidade que não conhecemos, que não conseguimos agarrar. Somos o fado? O futebol? A língua? A arte não existe, não há uma tradição portuguesa. O que é que Portugal tem? Fomos para a União Europeia para receber coisas, porque não tínhamos nada para dar. Não partimos para uma aventura para dar. Portugal não contribuiu. Angola serviu-nos para o tráfico negreiro, agora é o El Dorado dos portugueses. O que é que nós podemos fazer por aquele país? Nada. Só pensamos no que aquele país pode fazer por nós. Um país altamente corrupto, com desigualdades sociais incr?veis, em que a democracia é uma coisa que existe onde? E nós todos na ganância de ir para lá porque nos vai dar dinheiro. Como é que é possível um país com 900 anos não ter a responsabilidade de pensar que pode contribuir para o desenvolvimento de uma cultura? Não é possível, no século XXI! Somos um país dependente do Estado, da Igreja, de organismos superiores que nos dizem o que fazer e o que não fazer. Temos o conforto do Estado, o conforto de Deus.

Sou um patriota e acho até que o nosso país está por fazer, que é possível, nas próximas gerações, dar a volta, mas estamos a chegar ao limite máximo. O império acabou, a república tardou, a democracia é recente. Tudo é novo. É um país que espero que esteja prestes a renascer na próxima década porque já não temos para onde ir. O António Barreto já diz: Portugal está a beira da irrelevância e do desaparecimento. O que é que vem a seguir ao desaparecimento? Um renascimento.

Já referiu várias vezes a ideia de renascimento. Este casamento é também um renascimento pessoal?

Completamente.

O que é que muda?

Uma relação estável e de complementaridade foi uma novidade na minha vida. Uma descoberta incrível de que posso crescer e evoluir mais depressa com o David do que sozinho. Não é o conforto doméstico, é uma coisa de dia-a-dia: uma realidade a dois não é só mais emocionante, mas funciona melhor. Foi uma descoberta que fiz. O intercâmbio e a complementaridade. As semelhanças e diferenças que fazem com que a relação seja dinâmica. A entreajuda. Com esta relação, eu cresço mais depressa. Consigo ultrapassar barreiras no meu pensamento. E o David diz a mesma coisa. Portanto, eu acredito no casamento.

Tudo o que está a dizer poderia ser dito por um homem ou uma mulher prestes a entrar num casamento heterossexual. Há diferenças?

Não sei. [risos] Mas todos os casos são diferentes.

Uma questão mais de pessoas do que de sexos?

Absolutamente. A maneira como vejo o casamento, o que a palavra quer dizer em termos etimológicos, agrada-me e faz todo o sentido para a minha vida neste momento. Tem a ver com querer crescer e querer celebrar publicamente o meu afecto.

Fala na raiz etimológica da palavra "casamento"...

O que é colocado por cima das palavras, as construções sociais, dificultam muitas leituras. O casamento é uma união entre duas pessoas. Um ritual. Pode ser um ritual horizontal, comunitário, ou pode ter a dimensão divina, com Deus, um deus que está lá em cima. Para mim, Deus está no outro, cá em baixo. Não aceito a bênção de qualquer coisa superior. O casamento é um contrato, um pacto, sagrado no sentido da intimidade e da honestidade, tendo o amor como base. Para isso não preciso de ser abençoado, o próprio acto já é uma bênção.

Como vai ser a cerimónia?

Vamos ver.

Porquê o Lux?

É a casa de um dos meus melhores amigos, que é o [dono, o empresário] Manuel [Reis]. Achei que já que íamos fazer uma cerimónia pública, tinha de ser num espaço tão contemporâneo como o Lux.

Diz "contemporâneo". O Frágil, o antecessor do Lux que o Manuel Reis criou no Bairro Alto, foi um dos grandes responsáveis pela entrada da contemporaneidade na vida social portuguesa. Acolher esta cerimónia é, da parte dele, um gesto de afirmação social grande.

Absolutamente.

Quantos convidados vai ter?

Foram enviados entre 300 e 500 convites. É uma festa [risos].

Os convites reflectem o gesto de afirmação política?

Sim, mas dirigidos a pessoas que conheço e que, à partida, teriam interesse em estar presentes.

O primeiro-ministro José Sócrates, por exemplo, está convidado?

Claro. Se vai estar presente ou não, não sei. Eu defendo que o Estado deve estar do lado dos cidadãos. Se o primeiro-ministro puder estar lá, é óptimo, acho que é bom. É uma celebração normalíssima, de festa, amor e amizade, que é uma coisa boa de acontecer em Portugal. É isso. Basicamente. a

vanessa.rato@publico.ptque não faz sentido.

A sua descoberta sexual dá-se com outros membros da sua igreja?

Não. A minha descoberta sexual foi anterior. Quando entrei para esta religião, tive de me regrar, de alguma forma. Acreditei que a salvação da minha alma passava por ali. [risos]

A sua família fazia parte da mesma religião?

Alguns sim, outros não.

E como reagem quando não só abandona a Igreja como assume a sua homossexualidade?

Tenho uma família inteligente, que percebe e acompanha. A minha mãe sabe que me vou casar. O meu pai sempre me aceitou a mim e ao David. As minhas irmãs, os meus sobrinhos... Toda a gente. Não tenho problemas familiares nenhuns.

Vem de um contexto privilegiado, portanto, se não em termos económicos, pelo menos em termos intelectuais e afectivos.

Acho que, acima de tudo, é isso: tem a ver com inteligência. É perceber que espiritualidade e sexualidade não têm nada a ver. A inteligência não escolhe classes sociais.

No seu contexto, é difícil, mas acontece com frequência: casais gay juntos há anos que em momento de crise e doença se vêem separados pela família, impedidos de se visitar no hospital, de receber heranças... Acontece agora, mas as pessoas vão progredir, tudo vai progredir naturalmente. A privação de um dos membros do casal visitar no hospital daqui a cinco anos já não vai acontecer em lado nenhum. Tem a ver com os arquétipos que regem as relações humanas. É uma realidade subjacente ao progresso da sociedade. Não há volta a dar a isto. A questão dos casamento gay pode ir mais depressa ou mais devagar, mas é como a escravatura: acabou, está decidido. São coisas que têm a ver com uma maneira de estar na vida compatível com a liberdade e educação do ser humano. Naturalmente, vai lá.

Não teme um retrocesso?

Não. Nem pensar. O problema de Portugal não é o casamento gay. Nós temos sobretudo um problema de identidade.

Mas já vivemos momentos como a aprovação da Proposition 8 [que em Novembro de 2008 definiu que, na Califórnia, tido como o mais liberal dos estados norte-americanos, "apenas o casamento entre um homem e uma mulher é válido"], isto, precisamente quando toda a gente achava que se tinha atingido um ponto de não-retorno [seis meses antes, o Supremo Tribunal declarara como inconstitucional a discriminação de lésbicas e gays no acesso ao casamento]...

Sim. E na Argentina agora aconteceu o mesmo. Mas são períodos de tensão. Mais uns anos e não vejo que haja problema. De qualquer forma, eu não sou um militante de nada. O meu casamento é uma festa, uma celebração de amor. A celebração de uma coisa em que tanto eu como o David acreditamos - a base muito forte da nossa vida: uma relação que funciona, no dia-a-dia, uma relação maravilhosa, com uma base de amor, afecto. É um ritual que tem de ser marcado e de que as pessoas vão ser testemunhas. Parece complicado, mas é muito simples. Claro que se passarmos para um referendo as pessoas não querem, não querem acreditar que uma parcela minoritária da sociedade possa ter acesso a um privilégio que era, até agora, apenas da maioria. Têm medo.

Portugal hoje, o medo de existir, como diria José Gil...

Temos de nos reinventar e isso implica sermos criativos, mas como não temos nenhuma solidez científica, como somos uma sociedade analfabeta - temos ainda uma taxa de oito por cento de analfabetismo, continuamos com 18, se não 40 por cento, de pobres (depende de como se lêem os dados) -, temos complexos de inferioridade em relação aos ingleses e de superioridade em relação aos marroquinos, talvez... Como é que em 900 anos somos este desastre? Somos um país frustrado. Um país com uma vocação imperial, mas sem império. Não somos nada. Portugal acabou. Na sua essência, era um império. Além disso, não somos nada. Temos uma comunidade emigrante gigante, neste momento também bipolar, feita de pessoas com altíssimos cargos, mas também baixíssimos. Temos uma identidade que não conhecemos, que não conseguimos agarrar. Somos o fado? O futebol? A língua? A arte não existe, não há uma tradição portuguesa. O que é que Portugal tem? Fomos para a União Europeia para receber coisas, porque não tínhamos nada para dar. Não partimos para uma aventura para dar. Portugal não contribuiu. Angola serviu-nos para o tráfico negreiro, agora é o El Dorado dos portugueses. O que é que nós podemos fazer por aquele país? Nada. Só pensamos no que aquele país pode fazer por nós. Um país altamente corrupto, com desigualdades sociais incríveis, em que a democracia é uma coisa que existe onde? E nós todos na ganância de ir para lá porque nos vai dar dinheiro. Como é que é possível um país com 900 anos não ter a responsabilidade de pensar que pode contribuir para o desenvolvimento de uma cultura? Não é possível, no século XXI! Somos um país dependente do Estado, da Igreja, de organismos superiores que nos dizem o que fazer e o que não fazer. Temos o conforto do Estado, o conforto de Deus.

Sou um patriota e acho até que o nosso país está por fazer, que é possível, nas próximas gerações, dar a volta, mas estamos a chegar ao limite máximo. O império acabou, a república tardou, a democracia é recente. Tudo é novo. É um país que espero que esteja prestes a renascer na próxima década porque já não temos para onde ir. O António Barreto já diz: Portugal está a beira da irrelevância e do desaparecimento. O que é que vem a seguir ao desaparecimento? Um renascimento.

Já referiu várias vezes a ideia de renascimento. Este casamento é também um renascimento pessoal?

Completamente.

O que é que muda?

Uma relação estável e de complementaridade foi uma novidade na minha vida. Uma descoberta incrível de que posso crescer e evoluir mais depressa com o David do que sozinho. Não é o conforto doméstico, é uma coisa de dia-a-dia: uma realidade a dois não é só mais emocionante, mas funciona melhor. Foi uma descoberta que fiz. O intercâmbio e a complementaridade. As semelhanças e diferenças que fazem com que a relação seja dinâmica. A entreajuda. Com esta relação, eu cresço mais depressa. Consigo ultrapassar barreiras no meu pensamento. E o David diz a mesma coisa. Portanto, eu acredito no casamento.

Tudo o que está a dizer poderia ser dito por um homem ou uma mulher prestes a entrar num casamento heterossexual. Há diferenças?

Não sei. [risos] Mas todos os casos são diferentes.

Uma questão mais de pessoas do que de sexos?

Absolutamente. A maneira como vejo o casamento, o que a palavra quer dizer em termos etimológicos, agrada-me e faz todo o sentido para a minha vida neste momento. Tem a ver com querer crescer e querer celebrar publicamente o meu afecto.

Fala na raiz etimológica da palavra "casamento"...

O que é colocado por cima das palavras, as construções sociais, dificultam muitas leituras. O casamento é uma união entre duas pessoas. Um ritual. Pode ser um ritual horizontal, comunitário, ou pode ter a dimensão divina, com Deus, um deus que está lá em cima. Para mim, Deus está no outro, cá em baixo. Não aceito a bênção de qualquer coisa superior. O casamento é um contrato, um pacto, sagrado no sentido da intimidade e da honestidade, tendo o amor como base. Para isso não preciso de ser abençoado, o próprio acto já é uma bênção.

Como vai ser a cerimónia?

Vamos ver.

Porquê o Lux?

É a casa de um dos meus melhores amigos, que é o [dono, o empresário] Manuel [Reis]. Achei que já que íamos fazer uma cerimónia pública, tinha de ser num espaço tão contemporâneo como o Lux.

Diz "contemporâneo". O Frágil, o antecessor do Lux que o Manuel Reis criou no Bairro Alto, foi um dos grandes responsáveis pela entrada da contemporaneidade na vida social portuguesa. Acolher esta cerimónia é, da parte dele, um gesto de afirmação social grande.

Absolutamente.

Quantos convidados vai ter?

Foram enviados entre 300 e 500 convites. É uma festa [risos].

Os convites reflectem o gesto de afirmação política?

Sim, mas dirigidos a pessoas que conheço e que, à partida, teriam interesse em estar presentes.

O primeiro-ministro José Sócrates, por exemplo, está convidado?

Claro. Se vai estar presente ou não, não sei. Eu defendo que o Estado deve estar do lado dos cidadãos. Se o primeiro-ministro puder estar lá, é óptimo, acho que é bom. É uma celebração normalíssima, de festa, amor e amizade, que é uma coisa boa de acontecer em Portugal. É isso. Basicamente. a

vanessa.rato@publico.pt

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