Dão-se consultas de FilosofiaDão-se consultas de Filosofia

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Os grandes filósofos da Grécia Antiga eram respeitados na sua qualidade de conselheiros Jim Dandy/corbis

Sentam-se em gabinetes e recebem clientes com dilemas éticos e males existenciais. Os novos conselheiros dizem que é tempo de tirar a Filosofia das escolas e universidades e torná-la útil no dia-a-dia.

Na lista de especialidades disponíveis na clínica Corpo e Mente, em Coimbra, estão a ortopedia, a fisiatria, a psiquiatria, a clínica geral, a medicina dentária, a psiquiatria mas também o aconselhamento filosófico. Filipe Menezes senta-se num consultório e ali recebe clientes não com maleitas orgânicas, de ossos, músculos, dentes, ou doenças mentais, mas com problemas filosóficos.

E são tantos. Qual o sentido da vida? O que é a felicidade? Deus existe?

Nos consultórios dos colegas há marquesas onde os doentes são observados, auscultados, palpados, onde lhes prescrevem medicamentos. Filipe Menezes usa como única terapêutica a argumentação - escuta e faz perguntas e, idealmente, leva ao questionamento que conduz à mudança.

Parece-lhe vago? Jorge Humberto Dias, um dos primeiros conselheiros filosóficos em Portugal, recorda o seu maior sucesso: "Consegui que um senhor parasse de pensar em suicídio", e tudo isto com o uso da lógica e uma folha A4, onde lhe pediu que desmontasse os fundamentos que estavam por detrás da sua vontade de pôr fim à vida.

No esquema havia uma circunferência onde estavam escritos conflitos familiares, que estava ligada a uma seta que apontava em direcção ao suicídio. "Primeiro tento esquematizar o pensamento e depois é que vou pôr em causa." Após algumas sessões, o homem de 40 anos mudou de emprego e começou a pôr em causa aquele seu objectivo inicial, recorda o primeiro presidente da Associação Portuguesa de Aconselhamento Ético e Filosófico (APAEF), fundada em 2004 e a primeira a promover esta actividade no país.

Outro exemplo: Filipe Menezes, que exerce em Coimbra e na Figueira da Foz, lembra-se de receber um senhor "com o emprego que tinha escolhido, uma família de quem gostava" - elementos "que nós imaginamos serem essenciais para andar estruturado". Pois esse senhor, culto, com quem chegava a falar durante duas a três horas - tanto sabia de economia, como de direito ou ciências - vivia "angustiado".

"Faltava-lhe significado para a vida", lembra. "Via a vida como um círculo rodeado de portas que queria abrir." Filipe Menezes entende que "o nosso problema não é falta de sentido. É o excesso de sentido". As oito sessões de aconselhamento filosófico serviram como "uma pausa". Pensa que o ajudou.

Tranquilizem-se os que pensam que sairão do consultório do filósofo com uma lista de livros a ler antes da próxima consulta. "Quase nunca falo de autores", conta Nuno Paulo Tavares, actual presidente da APAEF, a não ser que a pessoa tenha formação na área, mostre curiosidade ou se perceba que isso é útil.

Devolver a filosofia à cidade

Com sessões que custam cerca de 30 euros, o aconselhamento filosófico pretende surgir como um lembrete: a filosofia não é apenas coisa de livros e conceitos complicados e indecifráveis, tem que ver com a vida de todos os dias e pode ajudar a melhorá-la. É essa história ancestral da Filosofia Antiga que querem fazer renascer. Há uma tradição e os grandes filósofos eram respeitados na sua qualidade de conselheiros, reforça Eugénio Oliveira, presidente da mais recente organização na área, a Associação Portuguesa de Ética e Filosofia Prática, fundada há cerca de um ano em Braga. Exemplos: Descartes foi conselheiro da rainha da Suécia, Aristóteles de Alexandre, o Grande.

Constatação dos que praticam a actividade: a filosofia é hoje um mundo sobretudo encerrado no meio académico e escolar, mas ela "não nasceu nas universidades", nota Nuno Paulo Tavares, professor de Filosofia na Escola Secundária de Gondomar, que dá consultas de aconselhamento filosófico em casa. Sócrates era um filósofo que andava pelas ruas de Atenas a interpelar as pessoas. Não é por acaso que nada deixou escrito - foi o seu pupilo, Platão, quem registou os seus diálogos, acrescenta.

Como explica o autor canadiano Lou Marinoff emMais Platão, Menos Prozac(Editorial Presença), Sócrates acreditava que "as pessoas já são dotadas de conhecimento, que o que temos de saber está dentro de nós e só necessitamos de alguém que nos ajude a trazê-lo à luz". Se estamos a braços com uma questão importante, "talvez estejamos a precisar dos serviços de uma espécie de parteira filosófica que nos ajude a iluminar a nossa própria sabedoria", lê-se no livro.

"Não se trata de inventar. É um retorno à matriz", reforça Nuno Paulo Tavares. "A filosofia nasceu do diálogo." Pode mesmo dizer-se que "se Sócrates fazia filosofia na cidade", este movimento quer "devolver a filosofia à cidade". "É uma nova versão de uma velha tradição", junta Nuno Paulo Tavares, citando outro autor, o israelita Ran Lahav.

A corrente parte quase de um lamento pela situação actual da filosofia. Eugénio Oliveira, presidente da associação de Braga, fala de "um desperdício da filosofia", por ter estado limitada ao meio académico e, mesmo aqui, cada vez mais a perder terreno.

Desvalorização na escola

Em Portugal, a sua desvalorização no meio escolar tem-se vindo a agravar, sublinha. Os exames nacionais para as específicas de Filosofia já não se fazem, constata Eugénio Oliveira, que é professor de ensino secundário em Famalicão. E como a ideia é que metade do ensino seja profissional, a Filosofia está ausente, diz Alexandre Franco de Sá, presidente da Associação Portuguesa de Professores de Filosofia, criticando "o completo caos curricular no ensino secundário".

O cenário é semelhante na universidade, constata Jorge Humberto Dias. Têm fechado licenciaturas nos Açores e em Évora, e na Universidade Católica de Lisboa passou de ensino diurno apenas a nocturno; as que permanecem têm cada vez menos alunos, a Universidade da Beira Interior só tem dois alunos, quando o Governo obriga a que os cursos tenham mais de dez. Atribui esta diminuição de terreno à falta de movimentos profissionais fortes, como os advogados ou médicos, que dialoguem com o Governo. "Se ninguém demonstrar que a filosofia é útil, ela vai morrendo aos poucos."

Os cursos em Portugal têm fechado por falta de saídas profissionais, quase reduzidas ao ensino. Não será esta apenas uma forma de arranjar emprego para as centenas de filósofos sem trabalho? Jorge Humberto Dias, que exerce no Faust-Instituto de Língua e Cultura, em Quarteira (Algarve), responde que "é uma realidade, é uma nova saída profissional". "Não vejo mal que se criem oportunidades de emprego, mas não podem ser feitas só com esse propósito, como um expediente", ressalva Filipe Menezes, professor secundário em Coimbra há 13 anos.

Campo para "charlatães"?

A Associação Portuguesa de Professores de Filosofia nunca desenvolveu actividades na área mas vê o aconselhamento filosófico "como uma área com interesse". O seu presidente, Alexandre Franco de Sá, não aceita a visão da filosofia como uma disciplina distante e fechada em castelos de marfim. "A filosofia nunca foi apenas uma disciplina académica. A dicotomia universidade/mundo da vida parece-me falsa." Professor na Faculdade de Letras de Coimbra, fala de pontes com outras áreas, como o demonstra uma conferência que vai juntar no Hospital de Santa Maria médicos e filósofos.

Franco de Sá admite que os novosmedia desvalorizam "uma cultura de leitura demorada e de reflexão" que se associa à filosofia. Há, por isso, a tentação de tornar a filosofia mais pop.

Acusações de superficialismo não convencem Jorge Humberto Dias. "Quem faz essas críticas são os intelectuais, teóricos e abstractos." "Resolver problemas das pessoas é superficial?" E usa uma comparação: se um engenheiro aplicar os conhecimentos de Matemática que aprendeu na universidade para construir uma ponte, isso não tem utilidade?

O aconselhamento filosófico está no início em Portugal, não há faculdades que o ensinem, nem entidades que credenciem a formação, alerta o presidente da Associação Portuguesa de Professores de Filosofia. Entende mesmo que nas faculdades portuguesas não há grau de especialização suficiente do corpo docente que as torne aptas a oferecer cursos na área.

O mercado é defree lancers e, este "momento inicial", sem formação específica, "torna possível existirem pessoas sem preparação a dar conselhos que qualquer amigo podia dar". Conhece "casos de abordagens menos sérias" e admite que "é um âmbito que se presta ao aparecimento de charlatães". Aconselha, por isso, prudência e afirma que têm de ser as pessoas que procuram estes profissionais "a separar o trigo do joio". Acredita que "o tempo confirma as pessoas sérias".

Não se sabe quantos conselheiros filosóficos exercerão a sua actividade em Portugal mas esta é uma área em expansão. "Haverá umas 20 a 30 pessoas em ambiente de consultório", estima Filipe Menezes, que dá consultas há cerca de dois anos. Desde 2004, a primeira organização de aconselhamento filosófico em Portugal, a APAEF, fez seis cursos de 35 horas nesta área, lembra Jorge Humberto Dias, mas não sabe quantos terão prosseguido com a actividade.

A Internet, através desites mas sobretudo de blogues, tem sido o grande fórum de divulgação. Basta uma pesquisa no Google para encontrar contactos de conselheiros. De resto, é muito o passa-palavra que funciona, alguém que foi e depois conta a um amigo, um familiar. Os dois a três clientes que atende todas as semanas vieram por aqueles caminhos, mais ou menos metade/metade, conta Nuno Paulo Tavares.

E quem os visita? Em comum têm um bom nível sócio-educativo. São quase todos licenciados, descreve Nuno Paulo Tavares. "Em geral, já fizeram psicoterapias, são pessoas que andam à procura de alguma coisa. Recebo mais homens que mulheres", completa Filipe Menezes.

Terapia para saudáveis

Se a corrente é recente em Portugal, a história do aconselhamento filosófico como conceito moderno já tem mais de 20 anos. Considera-se pai do aconselhamento filosófico o alemão Gerd Achenbach, que na década de 1980 afixou um placard anunciando o novo serviço, lançando a ideia da filosofia como terapia. Daí em diante os praticantes proliferaram, em Inglaterra, Canadá, Israel. No Brasil, chamam-lhe Filosofia Clínica e há filósofos a trabalhar em hospitais e centros de saúde, diz Filipe Menezes. Alain de Botton, no seu Consolo da Filosofia, também segue esta via.

Mas o grande empurrão veio em 2002 sob a forma de um livro, cujo título quase pode servir desloganpublicitário à corrente:Mais Platão, Menos Prozac, obest seller de Lou Marinoff, "a super-estrela" do aconselhamento filosófico. "É o autor mais mediático, não necessariamente o mais científico", nota Filipe Menezes. É o divulgador de uma corrente que alguns designam pejorativamente como filosofia pop ou light.

Implícita no título está uma crítica. A psiquiatria e a psicologia não resolvem muitos problemas das pessoas e apresentam, muitas vezes, como solução antidepressivos e ansiolíticos. "Criou-se a ideia de que o sofrimento é um mal a eliminar, quando pode ser um motor de desenvolvimento ético, social. Se não sofro, vou tentar mudar o quê?", questiona Filipe Menezes.

Apesar da expansão dos últimos anos, falta divulgação. "Como é que a pessoa sabe que tem um problema filosófico se não sabe o que é? As pessoas sabem o que é um problema jurídico, psicológico", constata Jorge Humberto Dias. As situações mais frequentes no seu consultório são o desespero perante o futuro, a indecisão perante dilemas, a angústia perante a morte, as dificuldades na gestão de conflitos.

As situações-tipo são divórcios, mortes de pessoas próximas, conflitos familiares, todas áreas em que a psiquiatra e a psicologia já intervêm. Respondendo aos críticos que dizem que este campo de actuação já pertence àquelas disciplinas,Jorge Humberto Dias garante:"Não fazemos o trabalho de outros profissionais".

A fronteira está entre a saúde e a doença."Não tratamos de pessoas com problemas psíquicos", ressalva Filipe Menezes. Nuno Paulo Tavares conta queTerapia para Sãosera, aliás, o título escolhido por Marinoff para o seu livro, mas acabou por ficar o mais chamativo e vendávelMais Platão, Menos Prozac. O aconselhamento filosófico assenta numa ideia mais lata de "saúde" definida pela Organização Mundial de Saúde, que "não é separável da ideia de felicidade", diz Filipe Menezes.

Filosofia "pode fazer mal"

Desengane-se quem pensa que esta actividade, mesmo mal praticada, é inócua. "O discurso filosófico não é inofensivo. Há problemas da nossa existência que não são fáceis de resolver, não são comezinhos", alerta Alexandre Franco de Sá . "Pode fazer mal, pode criar confusão."

"Eticamente existe uma responsabilidade. Recuso-me a trabalhar com seres humanos fragilizados", afirma Filipe Menezes. "Tirar a filosofia da academia, sim, mas não só para popularizar", alerta, notando que "há colegas que dizem que nem sequer é preciso ter formação" na área.

Mesmo chamar-lhe aconselhamento filosófico não é consensual entre os seus praticantes. "Acho a designação um equívoco", afirma Filipe Menezes. Pessoalmente, prefere "acompanhamento" porque ninguém vai dizer a um cliente "faça isto e aquilo". Pela mesma razão, Nuno Paulo Tavares prefere o termo consultoria ou assessoria filosófica, porque o fim é "ajudar as pessoas a pensar, pensar com elas" e "não dar-lhes conselhos universais que dariam para resolver todos os problemas".

A Associação Portuguesa de Ética e Filosofia Prática, a mais recente no país, tenta ir mais além. É que o aconselhamento filosófico é apenas uma das subáreas da chamada Filosofia Prática: outras são a filosofia nas empresas - ligada a questões éticas - e a ética aplicada a áreas como a genética ou a biomedicina. Outra forma de trazer a filosofia para a rua são os cafés filosóficos que a associação organiza em bibliotecas e museus, além da ideia de levar a filosofia e a ética, por exemplo, ao mundo do futebol, explica Eugénio Oliveira. Querem motivar o interesse da Federação Portuguesa de Futebol.

Na Filosofia Prática, a filosofia para crianças "é a área mais desenvolvida". Jorge Humberto Dias fala de sessões com crianças onde abordam, por exemplo, a questão da morte. Um menino de cinco anos perguntou-lhe o que acontecerá à casa dos avós quando eles morrerem. Pode ser que na geração dos que agora são crianças já ninguém estranhe quando alguém disser no trabalho: "Preciso de sair mais cedo porque tenho consulta com o filósofo." a

cgomes@publico.ptNa lista de especialidades disponíveis na clínica Corpo e Mente, em Coimbra, estão a Ortopedia, a Fisiatria, a Psiquiatria, a Clínica Geral, a Medicina Dentária, a Psiquiatria mas também o Aconselhamento Filosófico. Filipe Menezes senta-se num consultório e ali recebe clientes não com maleitas orgânicas, de ossos, músculos, dentes, ou doenças mentais, como as atendidas pelos colegas, mas, sim, com problemas filosóficos.

E são tantos. Qual o sentido da vida? O que é a felicidade? Deus existe?

Nos consultórios dos colegas há marquesas onde os doentes são observados, auscultados, palpados, onde lhes prescrevem medicamentos. Filipe Menezes usa como única terapêutica a argumentação - escuta e faz perguntas e, idealmente, leva ao questionamento que conduz à mudança.

Parece-lhe vago? Jorge Humberto Dias, um dos primeiros conselheiros filosóficos em Portugal, recorda o seu maior sucesso: "Consegui que um senhor parasse de pensar em suicídio", e tudo isto com o uso da lógica e uma folha A4, onde lhe pediu que desmontasse os fundamentos que estavam por detrás da sua vontade de pôr fim à vida.

No esquema havia uma circunferência onde estavam escritos conflitos familiares, que estava ligada a uma seta que apontava em direcção ao suicídio. "Primeiro tento esquematizar o pensamento e depois é que vou pôr em causa." Após

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