Contra "o inferno e os comunistas"

A milenarista "Cruz de Amor", a nova "arca" da salvação segundo uma vidente francesa, já tem pontos de venda em todo o país. A empresa que as fabrica em Famalicão não tem mãos a medir, apesar de a maior (7, 38 metros) custar 650 contos. Tudo para combater "o inferno e os comunistas".

"A culpa é dos comunistas". É assim, sem margem para qualquer dúvida, que uma das adoradoras da "Cruz de Amor" e divulgadora da Fraternidade Missionária Cristo Jovem na região de Coimbra, justifica a celeuma que, nos últimos dias, tem rodeado o assunto. Embora a fraternidade tenha a sua sede em Requião, Famalicão, epicentro da campanha, a divulgação da "Cruz de Amor" chegou já a todo o país. Procurando dar resposta a uma alegada aparição de Jesus a uma vidente francesa, a cruz é apresentada como sendo "a única forma de salvação": dizem os seus promotores que só quem tiver uma "Cruz de Amor", quem a acolher, "quem a compreender e quem a abençoar, estará salvo".Disponíveis em vários tamanhos, as cruzes que mais polémica têm causado são as maiores, as que medem 7,38 metros (a centésima parte do Monte Calvário, em Jerusalém). Decoradas a azul e branco, ficam ligadas toda a noite e a luz que emanam acaba por incomodar os que vivem mais próximos. Além disso, o facto de estarem associadas ao fim do milénio e serem apresentadas como a "única salvação" está também a causar algum mal-estar dentro da própria Igreja Católica. Foi em Beja que se ouviram as primeiras críticas. Um facto que as "testemunhas da cruz" - como gostam de ser chamados os que acreditam no poder da "Cruz de Amor" - garantem que se deve a ser no Alentejo, uma região onde "só moram comunistas". "A começar pelo presidente da câmara, que é 'vermelho' e que não quer nada com a Igreja", finaliza a mulher que, nos últimos meses, tem vendido dezenas de cruzes aos crentes de Coimbra.Conhecida pela forma algo antiquada como entende o culto (no Convento de Requião não entram mulheres de calças nem homens com barba ou cabelo comprido) e pelo modo "miraculoso" como vê o cristianismo, a Fraternidade está cada vez mais a ser observada pela hierarquia da Igreja Católica. Liderada pelo padre Milheiros, a comunidade de Famalicão foi uma das primeiras a divulgar as ainda não oficialmente reconhecidas aparições da Virgem Maria em Medugorje, na antiga Jugoslávia. Desde aí são várias as alegadas aparições e visões que a fraternidade tem divulgado, trazendo mesmo a Portugal alguns dos pretensos videntes. Natural de Bragança, o padre Milheiros está há dezenas de anos na diocese de Braga, tendo chegado mesmo a ser o responsável por um movimento juvenil. Contudo, a forma como o sacerdote encarava a religião, ameaçando constantemente as pessoas de que ou cumpriam as suas ordens ou "iam para o Inferno", fez com D. Francisco Maria da Silva (antecessor de D. Eurico Dias Nogueira na diocese bracarense) lhe movesse um inquérito. Embora as investigações levadas a cabo pela diocese fossem inconclusivas, o padre optou por abandonar a vida activa que levava e "refugiar-se" no convento que, entretanto, começou a construir num imenso terreno que comprou em Famalicão. Na fraternidade - rodeada por muros altos e com entradas controladas - o padre Milheiros continuou a divulgar a sua forma de ver a fé. Anualmente, milhares de pessoas visitam a Fraternidade Missionária Cristo Jovem. Lá dentro, os visitantes podem ver réplicas de vários locais ligados à igreja e diz quem conhece o sacerdote (que está agora a recuperar de uma delicada operação) que as miniaturas dos monumentos vão continuar. Aliás, ainda esta semana, vários operários estavam a construir mais uma réplica, ao que consta, do Santuário de Fátima.Com pontos de venda no Porto (na Avenida de Rodrigues Freitas) e em várias casas particulares em Coimbra, Lisboa, Évora, Beja e Cartaxo, a "Cruz de Amor", segundo a revista da fraternidade publicada no mês de Janeiro, vende-se cada vez mais. Apesar de custar dez mil escudos, a cruz familiar - que mede 73,8 centímetros - é a mais vendida. Com a recomendação de que deve ser colocada no local mais frequentado da casa, já foi distribuída, às centenas, por todo o país. Mas, por vezes, sem grande convicção da parte dos compradores."Sabe como é, nestas coisas da Igreja mais vale estar a favor do que contra", referiu ao PÚBLICO uma moradora de Requião que, por já ter participado várias vezes nas cerimónias religiosas da fraternidade, faz questão de não ser identificada. Aliás, é a mesma senhora que recorda ainda com alguma mágoa a forma como o padre Milheiros maltratou uma das irmãs da fraternidade, só porque ela, num momento de distracção, deixou entrar um homem com o cabelo grande. "Foi um horror", conta a senhora. "Não lhe bateu, mas esteve quase". Quanto ao "medo do Inferno e do comunismo", refere ainda a antiga frequentadora da fraternidade que, "para eles, é tudo vermelho. É tudo a mesma coisa".Com menos saída que as pequenas, a verdadeira "Cruz de Amor", que mede 7, 38 metros, é também visível em muitos locais do país. Fabricadas pela empresa Luzacril, em Vila Nova de Famalicão, as cruzes são encomendadas, normalmente, pela irmã Isabel (uma das senhoras que acompanham o padre Milheiros) e depois são entregues aos compradores. Apesar de custarem 650 contos, a empresa que as fabrica não tem mãos a medir. É que, para além das que ficam em Portugal, a Luzacril está também a fazer já encomendas para o estrangeiro, sobretudo para Espanha. O negócio, que parece não parar de crescer, levou já a que, na passada semana, um representante do arcebispo primaz de Braga se deslocasse a Requião, para apurar o que se passa na fraternidade. O relatório feito pelo prelado ainda não foi revelado, mas tudo indica que dá conta de algumas situações "menos claras" nas quais a hierarquia da Igreja bracarense deverá intervir.

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