A esmeralda

Com as contas canceladas, o Partido Nacional-Democrata alemão vai processar os bancos que as encerraram e pedir a anulação dessa decisão. Ao mesmo tempo em que afirma ter aumentado as filiações e em que se vão registando manifestações neo-nazis. Para o exterior, segundo um inquérito, a imagem de uma Alemanha racista e nacionalista tem crescido.

Digerido ou processado? O problema deve ser colocado a um nutricionista. Um polícia não pode responder a tudo à primeira, menos ainda quando a realidade, tantas vezes previsível, se põe a inventar. O auto de notícia foi redigido com rigor, é o que interessa. A conclusão oficial parece a correcta: "... não foi conduzida ao hospital para ser radiografada em virtude de tal diligência se achar desnecessária, uma vez que o cheque após ser ingerido é digerido pelo organismo, tornando-se assim impossível a sua identificação."Foi decepcionante: falhou a mais complicada manobra de salvamento da história da esquadra de Alfragide. Aconteceu há quatro anos, mas ainda hoje as paredes do edifício, a secretária com a antiga máquina de escrever, recordam o esforço dos dois guardas. Era uma tarde de Novembro e estavam a tentar identificar uma detida. Chamava-se Vera, mas tentava convencer todos de que era Esmeralda. Há horas que dizia chamar-se Esmeralda. A teimosia do instinto de sobrevivência pode ter várias espessuras, mas nunca se quebra à primeira. O parágrafo policial dá-nos impulso para a aventura, a busca desta Esmeralda:"Conduzida à esquadra e já no interior da mesma, quando se procedia à sua identificação, repentinamente deitou a mão ao cheque que tinha preenchido e assinado por si, meteu-o na boca e engoliu-o, pese embora os esforços levados a efeito por mim e pelo meu colega", o guarda Sérgio, "no sentido de evitar que esta o engolisse". Os quais, continua lugubremente o relatório, "resultaram infrutíferos."Várias questões se põem, mas a polícia responde à primeira: eles não fizeram mal à senhora. No texto, o guarda assegura: "sem no entanto causar qualquer ferimento à identificada."Nesta fase preliminar do processo só podemos imaginar o movimento de três pessoas em rotação pela esquadra, como astronautas acelerados. Um dos guardas descobre Vera a meter um papel na boca, olha para a secretária (onde tinha as provas do crime), grita "o cheque!" e tenta abrir-lhe a boca. O colega Sérgio corre para o ajudar e começam as manobras de emergência que aprenderam no curso. Mas no curso só aprenderam como se salvam pessoas feridas a tiro, electrocutadas, naufragadas. Não há nada escrito sobre salvar cheques engolidos. Também se retira um objecto estranho do esófago/traqueia, mas não é o mesmo. No meio dos vómitos, das pancadas nas costas, dos olhos vermelhos, de tanto grito, Vera foi virada ao contrário pelos polícias, retorcida, sacudida como se faz a um bebé que se engasgou com um grumo de arroz cozido. Vera era leve e fraca, mas cerrou os dentes uns nos outros, e até tentou cerrar os dentes nas mãos dos guardas. De súbito, os polícias sentiram-se cansados e realistas. Um deles agarrou o outro e disse-lhe que parasse. Era inútil, a prova estava engolida. Seria estraçalhada pelas enzimas e sucos gástricos. Registaram a data do desaparecimento do cheque e foram lavar as mãos, angustiados.O cheque tinha algum valor (108 contos) mas era duplamente falso. Vera enganara um banco: andava com o bilhete de identidade de uma senhora chamada Esmeralda, com mais 15 anos. Vera passava cheques em nome dela. A pobre senhora já foi chamada a tribunal por outras burlas que não cometeu, só porque não avisou o Estado que o seu bilhete se tinha extraviado.O BI de Esmeralda não foi comido. A polícia colou-o ao processo: vê-se a fotografia de Vera colada sobre a de Esmeralda. Na verdade, uma porcaria de um trabalho, para quem olha com atenção.Na tarde em que Vera comeu um cheque foi ao hipermercado, onde se vende tudo, até ouro, e comprou duas pulseiras. A empregada desconfiou, ela nem as experimentou no pulso. E a cara de Vera era demasiado magra. Mostrou-se nervosa quando lhe disseram para esperar. Com cheques de mais de cem contos, chama-se a gerente, é uma regra. E Vera fugiu e foi apanhada já na zona têxtil pelo guarda. Ao engolir a prova directa, Vera conduziu os polícias a mais um raciocínio: "Relativamente ao cheque, disse ser de sua propriedade e do banco (...), mas tal versão não será verdadeira, uma vez que esta retirou a fotografia do BI de Esmeralda, que se encontrava na sua posse"f+b.f-b O cheque não era dela, "caso contrário não o teria engolido".Soube-se que dormia num barracão de contraplacado no Casal Ventoso. As testemunhas lembram-na: estava com muito pior aspecto, ao vivo, do que na sua própria fotografia. Na fotografia já estava muito feia, com os olhos esbugalhados da heroína, e ainda tinha piorado. A pele era quase verde.Quando isso acontece a uma mulher, talvez uma Vera deseje chamar-se Esmeralda.

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