França discute véus, cruzes e barbas compridas

"Quando um professor me diz 'tira o véu', tenho vontade de lhe responder 'baixe as calças", confessava recentemente ao "Libération" uma muçulmana francesa, aluna de um liceu onde o véu islâmico não é permitido. O debate, iniciado na terça-feira passada no Parlamento, sobre a lei do laicismo em França, abriu uma verdadeira "caixa de Pandora". O que levou o Governo francês a avançar com uma lei que proíbe os "símbolos religiosos ostensivos" nas escolas? Quais são os argumentos dos responsáveis políticos? O que respondem os muçulmanos? E os fiéis de outras religiões? O que são símbolos ostensivos? A lei, cuja aprovação é dada como certa e está prevista para dia 10, começará a ser aplicada no início do novo ano escolar. Esta lei baseia-se em parte num estudo realizado pela comissão Stasi, composta por 20 "sábios", que fez uma análise do estado do laicismo em França. Há dias, no diário "Le Monde" quatro destes "sábios" manifestavam a sua desilusão perante as conclusões tiradas pelo Governo, afirmando que as suas propostas para proteger o carácter laico do Estado francês - essencial para a identidade deste - tinham sido reduzidas a uma única questão: o uso do véu islâmico nas escolas. E, em vez do trabalho de integração que eles tinham desejado, assiste-se hoje à abertura de um fosso entre os muçulmanos franceses e o resto da sociedade. Perante os veementes protestos da comunidade muçulmana, o Governo tem-se esforçado por descentrar a polémica da questão do véu, e frisou que o que está em causa são "símbolos religiosos ostensivos", independentemente da religião a que pertençam. Uma cruz, uma estrela de David ou uma "mão de Fatma" discretas, em redor do pescoço, podem ser usadas pelos alunos, por exemplo. Os autores da lei evitam ser muito específicos, enumerando por exemplo o tipo de símbolos proibidos, preferindo deixar a aplicação prática da legislação a cada escola. Assim, serão os professores ou os responsáveis pelos estabelecimentos de ensino a determinar até que ponto um símbolo é ou não "ostensivo". O debate ganhou contornos surrealistas quando o ministro da Educação, Luc Ferry, autor do projecto de lei, tentou explicar que uma bandana (lenço quadrado) que seja usada não por moda mas por razões religiosas poderia também ser proibida. Assim como as barbas. A situação torna-se mais complicada no caso dos sikhs, por exemplo, que usam o seu longo cabelo dentro de um turbante. A primeira dúvida que se levanta é a de saber o que é um símbolo religioso: o turbante ou o próprio cabelo comprido. A religião sikh proíbe que o cabelo seja cortado desde o nascimento até à morte, o que faz deste o verdadeiro símbolo religioso. Luc Ferry admite que, no caso dos sikhs, estes possam continuar a usar o turbante se o fizerem de forma "discreta" - o que entra, obviamente, em contradição com a firmeza manifestada em relação ao véu islâmico. Alguns líderes muçulmanos em França aconselharam já as mulheres que quiserem usar o véu na escola a fazê-lo de forma a que possa ser interpretado como um adereço de moda e não um símbolo religioso. Visto de fora, o debate sobre o uso ou não de um pedaço de tecido na cabeça pode parecer absurdo. A não ser se, como referia um artigo recente no "International Herald Tribune", o objectivo não declarado do Governo francês for na realidade "combater uma espécie de fanatismo político/religioso que na sua opinião está a criar na vida nacional um enclave onde não se pode entrar". Ou seja, o véu seria apenas um símbolo visível de uma ofensiva de islamistas radicais que estariam a ganhar espaço na sociedade francesa. A acção destes grupos manifestou-se em alguns episódios mais ou menos isolados em que professores foram impedidos de falar nas aulas sobre o Holocausto ou a história das religiões, ou em hospitais onde mulheres muçulmanas se recusaram a ser tratadas por médicos homens e não muçulmanos. A "Economist" explica que "muitos franceses sentem-se desconfortáveis com o islão desafiador e afirmativo", num país que tem a maior população muçulmana na Europa (cerca de cinco milhões), e receiam que se aceitarem o uso do véu estejam a abrir caminho ao tão receado "comunitarismo", em que "grupos étnicos ou religiosos possam possam segregar-se livremente e formar 'estados dentro do estado, com as suas próprias regras e valores". Estas atitudes desafiadoras são vistas como uma verdadeira ameaça ao carácter laico da República francesa. Mas atacar o véu como se ele representasse este tipo de posições pode acabar por ter o efeito contrário ao desejado, aumentando o número de raparigas muçulmanas que agora insistem em usar o "hijab" como forma de defenderem a sua identidade, dizem os críticos da nova lei. Ou pode, como avisam alguns destes, fazer aumentar o número de escolas privadas para muçulmanos, de modo a receber as raparigas que insistem em usar o véu e são impedidas de o fazer nas escolas públicas francesas. Sabrina, uma francesa muçulmana de olhos verdes e cabelos louros, conta ao "Libération" que há três meses, quando a comissão Stasi estava a realizar audições para poder tirar as suas conclusões, ela, que nunca tinha usado véu, foi comprar lenços e roupas "decentes". "Discutimos muito isto", diz, sobre a sua família. "Regressámos ao nosso passado, às nossas raízes. Mesmo o meu pai, que é muito franco-francês, vai começar a fazer as orações, encorajado pela minha mãe. Comprou uma parabólica e agora vemos a televisão do Kuwait".

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