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"Attenberg" tem dividido a crítica entre a rendição e a rejeição, e faz sentido que assim seja

Estreiam

Ela vê-se grega para beijar

Uma surpresa vinda da Grécia, sobre uma rapariga que não quer entrar na idade adulta. Jorge Mourinha

Attenberg

de Athina Rachel Tsangari

com Ariane Lebed, Vangelis Mourikis, Evangelia Randou

mmmnn

É significativamente mais confuso perceber o que se passa no cinema grego do que na sociedade grega: a crise, os impostos, a contestação a gente percebe, o que os cineastas fazem é menos unânime, quer sejam as metáforas familiares do "Canino" de Yorgos Lanthimos, quer sejam os beijos lésbicos ou as coreografias Monty Python de "Attenberg". Sim, leram bem, os beijos lésbicos, porque a primeira coisa que vemos em "Attenberg" são duas mocinhas a beijarem-se de língua e depois a comentarem a experiência. "A tua língua parece uma lesma, vou vomitar", diz uma.

"Attenberg", segunda longa de Athina Rachel Tsangari, caiu de pára-quedas em Veneza 2010 e desde então tem vindo a fazer uma carreira internacional que tem dividido a crítica entre a rendição e a rejeição, e faz sentido que assim seja. A realizadora, que estudou nos EUA, vem do experimentalismo e da arte multimedia, pelo que a sua abordagem a esta história de uma rapariga que enfrenta com grande relutância a entrada na idade adulta é tudo menos convencional. Marina nunca beijou, nunca fez sexo, o desejo mete-lhe nojo, não quer ter namorado porque tem medo que a sua melhor amiga lho roube, tem um emprego sem futuro como motorista numa fábrica local numa cidade-modelo que nunca foi modelo para nada, da mãe nunca saberemos porque (ou se) partiu, o pai arquitecto está doente em estado terminal. Não espanta que ela não tenha a certeza de querer tornar-se adulta, mesmo que já tenha 23 anos (ainda por cima na Grécia de hoje, embora o filme, rodado antes da crise grega, não o reflicta directamente). E a cineasta mostra-nos ao mesmo tempo o mundo real que Marina rejeita e o seu próprio mundo privado, onde faz com o pai imitações dos comportamentos dos animais selvagens retratados nos documentários de Richard Attenborough para a BBC, ou faz com a sua melhor amiga coreografias rigorosas (inspiradas pelo "Ministry of Silly Walks" dos Monty Python) ao som dos Suicide e de Françoise Hardy. (Significativamente, Ariane Labed e Evangelia Randou, as duas actrizes, vêm da dança contemporânea...)

Nessa alternância que sugere algo de irreverentemente adolescente, "Attenberg" tem tanto de genuinamente humano e emocional como de deliberadamente confuso e provocador, traindo o controlo preciso e formalista com que Athina Rachel Tsangari conduz a sua história. É um filme que, à imagem da sua personagem principal, concilia uma inegável maturidade criativa com um tactear à procura do melhor meio de a utilizar dentro de um quadro narrativo. Tão provocante como mas bem mais acessível do que "Canino", "Attenberg" é uma pequena e muito recomendável surpresa que não pode nem deve ser vista como um reflexo da sociedade grega contemporânea - mas que é certamente um bom exemplo do cinema grego contemporâneo.

À espreita do lado negro

Políssia

Poliss

de Maïwenn

com Karin Viard, Joey Starr, Marina Foïs

mmnnn

O título, a palavra "polícia" como se tivesse sido escrita por uma criança a debater-se com os mistérios da ortografia, é um achado, pela síntese e pela referência. A referência parece ser, de modo mais ou menos óbvio, o "Police" de Maurice Pialat; e a síntese, assim ortograficamente inscrita no título, é fácil de fazer: vamos ver polícias em acção, como no filme de Pialat, mas polícias especializados no universo infantil (e adolescente), os que trabalham na Brigada de Menores da polícia parisiense.

"Políssia" é certamente o filme mais importante já feito por Maïwenn Le Besco (que assina só Maiwenn e é irmã de Isild, actriz que alguns espectadores conhecerão bem). Pondo as mãos na massa do realismo, urbano e contemporâneo, o seu filme exibe um desejo de relevância "sociológica" que pelo menos em parte terá sido logrado. Fiel às suas matrizes, de Pialat às séries de televisão, sobretudo americanas, sobre o quotidiano policial (que terão alguma coisa a dever, saibam-no ou não, aos primeiros filmes de Frederick Wiseman), é fácil acreditar em "Políssia", e é fácil acreditar que diz e mostra alguma coisa de verdadeiro sobre a França contemporânea. A Brigada é tomada como uma plataforma de observação, e os casos, aprofundados ou meramente enunciados, terão uma significância que vai para além da questão episódica: há pedofilia, claro, mas muito mais do que só isso, pais irresponsáveis ou desleixados, gravidezes adolescentes, questões religiosas. Como radiografia de um "lado negro" da sociedade francesa, o filme é eficaz e credível.

Num procedimento típico ("típico" se pensarmos na "Balada de Hill Street" e descendências), Maïwenn concilia a estrita actividade policial com as vidas privadas dos agentes, os seus casamentos em crise, os seus problemas pessoais. Nunca é forçado, até porque muito bem apoiado num elenco forte e homogéneo, mas tem tendência a tornar-se dispersivo, a perder em objectividade o que ganha em folhetinesco (o que, em todo o caso, é uma escolha). Certas rimas entre "vida" e "profissão" soam, contudo, demasiado redondas, e nem sempre muito felizes (como quando a polícia anorética e incapaz de engravidar é enquadrada num grande plano a olhar fixamente o feto abortado por uma adolescente). Há também uma personagem que "testemunha", não por coincidência interpretada pela própria Maïwenn: uma fotógrafa que vem fazer uma reportagem sobre a Brigada. Mas a importância "teórica" da personagem, assunção de um olhar "externo", um olhar de observador, nunca ganha uma consistência prática que de facto a legitime (até nos esquecemos dela, e se calhar é melhor assim).

Todas as contas feitas, é uma aplicação justa mas canónica (quer dizer, sem surpresas) dos trâmites do realismo francês, "ortografia" que o filme emprega, aqui sim, sem gralhas.

Dinossauro

J. Edgar

de Clint Eastwood

com Leonardo diCaprio, Naomi Watts, Armie Hammer

mnnnn

Há muitas coisas que, nos idos de 1970, não se imaginaria Clint Eastwood filmar como realizador - Pierre Rissient, "attaché de press" das primeiras realizações do actor, resumiu assim: nos idos de 1970 a aposta era Jack Nicholson, ninguém imaginava Eastwood a realizar. Não se podia jurar, por exemplo, no tempo de Dirty Harry, esse macho e esse facho, que Clint faria um filme sobre uma relação de amor entre dois homens, em que um dos membros do "casal" seria J. Edgar Hoover, o homem do FBI durante 40 anos (nomeado director do Bureau of Investigation, antecessor do FBI, em 1924, esteve na fundação do FBI em 1935, que dirigiu até à morte, em 1972).

Mas olhando melhor vê-se que passam coisas de Dirty Harry para o Hoover de "J. Edgar". A violência que o medo instalou neles, por exemplo, que fez deles figuras anacrónicas, homens do seu tempo a lutar contra o tempo que já não compreendem e que já não os compreende. Tal como Dirty Harry vai sendo exposto, ao longo dos filmes da série, aos ataques do feminismo, das sexualidades, da contra-cultura, também J. Edgar passa de fundador da polícia moderna a efabulador paranóico da realidade.

Eastwood especializou-se em expor dinossauros assim, tirando-os do "habitat" e sujeitando-os aos efeitos do tempo. Fez isso, inclusive, com a sua ? ?persona", gesto de contonos delirantemente masoquistas (é bom lembrar aquela foto de Annie Leibowitz com Clint num cenário de "western" enroscado a um poste, abraçado por cordas, com prazer nos lábios por se meter em trabalhos.) Ele próprio, segundo a biografia de Richard Schickel, sempre se sentiu assim: acabado de chegar a Hollywood, no final dos 50s, já era um corpo que nada tinha a ver com os modelos que começavam a dominar, e os "seus" cineastas também eram os que por esses anos chegavam ao fim de carreira.

"J. Edgar" é um filme que estabelece cumplicidade com um "vilão" - ética e sabedoria, digamos, clássicas: entender as razões de todos e perceber que um "mau da fita" é melhor personagem. É um filme em que, tal como em "As Bandeiras dos Nossos Pais" (2006) ou em "A Troca" (2008), Eastwood inventaria a sua memória, confrontando-se com episódios do seu tempo de adolescência (a história dos homens que hastearam a bandeira americana em Iwo Jima) e da infância (o rapto e assassinato do bebé de Charles Lindbergh é um "fantasma" em "A Troca" e reaparece em "J. Edgar", o "biopic" do homem que na memória de Clint começou por ser figura heróica de "comics".)

É uma navegação pela escuridão - nos filmes de Eastwood, e com a cumplicidade de directores de fotografia como Tom Stern, as cores são experimentadas a negro - através da psique americana: Clint, historiador, filmando o passado e a obsessão de Hoover com o inimigo "within", para falar de hoje, da paranóia da segurança e do fascismo à espreita; Clint metendo-se com as sombras do cinema e com a hipnose dentro das salas, mostrando como "Inimigo Público nº 1", em 1931, e "G Men", em 1935, protótipos de "Warner films", construíram um imaginário de "glamourização" do "outlaw", primeiro, e, como reacção, de apologia da ordem heróica do FBI. "J. Edgar" pode ser, então, a versão de hoje de um "Warner film", até porque é no "backlot" da Warner, no que restou dos estúdios clássicos, que Clint tem o escritório da sua Malpaso.

Falando do que restou, do andamento de fixação retórica que está no cinema de Eastwood depois do soberbo "Gran Torino" (2008), "J. Edgar" é a reiteração do que já terminou. Nos seus "flashbacks", na forma como as personagens estão esmagadas por máscaras - as próteses de envelhecimento que Di Caprio e os outros vestem -, é um exemplar carnavalesco, só a espaços domado pelo pudor (a intimidade entre Hoover e o amigo e secretário Clyde Tolson), de um artesanato narrativo e figurativo que já teve os seus dias. Como uma múmia: exposto ao ar, "J. Edgar" desfaz-se. Admire-se a coerência, o individualismo, a solidão - Eastwood cumprindo o seu destino como dinossauro. O odor é de putrefacção.

País do desejo

de Paulo Caldas

com Fábio Assunção, Maria Padilha, Gabriel Braga Nunes

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Sim, há vida no cinema brasileiro para lá de Fernando Meirelles e José Padilha - mas não é certamente em "País do Desejo" que a vamos encontrar. O melodrama de Paulo Caldas parte do caso verídico da menina brasileira do Recife que, violada pelo padrasto, foi excomungada por ter feito um aborto - mas nunca se interessa realmente pelo caso, descartando-o rapidamente como simples pretexto para contar o encontro entre o padre progressista da paróquia onde a menina vive e uma pianista de concerto à beira da morte, e sublinhar o que leva o padre acaba por renunciar à religião. Ainda por cima, conta-o mal: de modo pesadão e demonstrativo, filmado, representado e montado sem chama, sem nunca transcender os lugares-comuns que nos habituámos a ver na telenovela apesar da vontade de romantismo que a banda-sonora (peças clássicas de Fauré, Franck, Debussy e Satie) revela como pretensão injustificada. Só mesmo o investimento da co-produção portuguesa (e a presença de Nicolau Breyner no papel de um bispo vilão de opereta) pode explicar a estreia deste filme confuso e canhestro. J. M.

Continuam

Os Descendentes

The Descendants

de Alexander Payne

com George Clooney, Shailene Woodley, Beau Bridges

mmmnn

Está tudo doido?, pergunta George Clooney na voz-off inicial de "Os Descendentes". Será que as pessoas acreditam genuinamente que lá por se viver no paraíso do Havai a vida não chega cá? História de um advogado que vê a vida cair-lhe em cima toda ao mesmo tempo, com a mulher em coma profundo no hospital, duas filhas adolescentes em crise e um terreno familiar que tem de ser vendido rapidamente envolvendo uma série de complicadas reuniões com primos afastados e próximos, "Os Descendentes" é uma história simples e discreta sobre a universalidade das "vidas normais que não têm nada de excepcional". Gerido com delicadas modulações de tom por um elenco certeiro, com Clooney a entregar-se com o seu entusiasmo habitual ao papel de um banana absoluto, o regresso de Alexander Payne é um filme atento e sensível sobre o modo como a vida nos pode passar ao lado sem darmos por isso, mas surpreendentemente anónimo e conformado para um cineasta que está no seu melhor a contar histórias de desespero surdo. J. M.

Millenium 1- Os Homens que Odeiam as Mulheres

The Girl with the Dragon Tatoo

de David Fincher

com Daniel Craig, Rooney Mara e Christopher Plummer

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Notório o carreirismo desta empreitada de levar de novo ao ecrã a trilogia "Millenium", de Stieg Larson, e notória ausência de fulgor de Fincher, que alinha pelo calculismo - como se se tivesse bastado concluir por uma suposta adequação entre o universo visual do realizador e os abimos onde Larson mergulhou Mikael Blomqvist e Lisbeth Salander, tratando-se depois de adaptação rotineira, mera colagem. Craig é competente, não mais do que isso. Rooney Mara tem sinais exteriores de coisas várias, o grafismo da "gótica", mas um profundo vazio no lugar de personagem. Veja-se, ainda, como o filme se vê às aranhas para justificar de onde vem, como um mal estar identitário: uma intermitência de sotaques, entre a "britishness" de uns e o "sueco" de outros - às vezes duas coisas ao mesmo tempo. V.C.

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