Valorização

humana

permite cadeias sem guardas

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ADRIANO MIRANDA

Prisões onde os detidos vivem em autogestão e sem vigilância. Sim, é possível. Valdeci António Ferreira já criou 24 no Brasil

De passagem por Portugal, a convite da associação "Foste Visitar-me", Valdeci António Ferreira, advogado e teólogo, de 46 anos, deslocou-se a Santa Cruz do Bispo e Custóias e deu uma conferência para explicar por que motivo acredita que esta experiência pode ser aplicada em todos os países. "Quem sabe, no futuro, Portugal possa ser um "farol" para o resto da Europa", diz, em entrevista ao PÚBLICO.

Não se vêem guardas com molhos de chaves penduradas à cintura. Os presos assumem a vigilância uns dos outros, fecham-se nas celas à noite e abrem-nas de manhã bem cedo para ir trabalhar. É difícil acreditar que este sistema resulte...

A minha experiência dizia-me que era impossível. Não fui eu que criei este regime. Há 26 anos li um livro de Mário Ottoboni, um cristão jornalista e advogado, e acabei descobrindo o trabalho de apoio a condenados, em São José dos Campos, onde nasceu toda esta experiência. As chaves ficavam nas mãos dos presos e eles não fugiam... Telefonei-lhe e fui conhecer. E vi como era possível ter um presídio humano onde as pessoas podiam ser tratadas com respeito. Voltei convencido e, agora, com a tarefa de convencer os outros.

Voltou para Itaúna, onde vivia, e onde expandiu a Associação de Protecção e Assistência aos Condenados - APAC, com o objectivo de desenvolver este método para humanizar as cadeias. Em Itaúna já há 168 presos entregues a si próprios e um total de 24 cadeias com este método no resto do estado de Minas Gerais. Foi fácil introduzir o modelo?

Não. Quando comecei a visitar as cadeias, vi que havia outros visitantes e organizei um grupo. Fizemos uma série de reformas na cadeia, construímos pátios, beliches, pintámos... Mas tudo o que construíamos durante o dia, praticamente era destruído à noite. Pelas autoridades, que achavam que estávamos a proteger bandidos que tinham aquela ideia equivocada de que o preso tem de sofrer, não tem recuperação. Tinha essa incompreensão.

Mas não desistiram...

Não. Éramos muitas vezes impedidos de entrar para dar um curso, para celebrar missa, ficávamos horas diante da cadeia. Chegámos a celebrar missa na rua, fechando o trânsito e não tinha nenhum apoio, nem de juiz, nem de promotor, nem de ninguém. Éramos um grupo quase de aventureiros.

Hoje dedica-se apenas a esta actividade missionária de visitante de cadeias. Como sobrevive?

Com a ajuda de um juiz de Itaúna, Paulo António de Carvalho, da área criminal, que é um apaixonado da causa.

Como conseguiram avançar com as APAC?

Conseguimos um terreno da câmara e fizemos muitas campanhas, muitas rifas, muitas feijoadas. Para ganhar dinheiro para construir uma cadeia sem polícias. E, aos poucos, fomos convencendo o juiz, o promotor, fomos envolvendo a comunidade, e levámos muitos visitantes a São José dos Campos para lhes mostrar que era possível.

Até que surgiu uma oportunidade, quando houve um motim numa cadeia.

Houve uma grande rebelião, num cadeia pública. E não havia para onde mandar os presos. E então o juiz perguntou se poderíamos receber provisoriamente aqueles presos, até que se construísse uma nova cadeia. Aconteceu um acidente de percurso. E o juiz há muito que já observava o nosso trabalho e viu a seriedade do grupo.

Nessa altura, já existia uma experiência de dois anos com os presos em regime aberto.

Durante um ano ficámos nessa experiência e nesse ano foi construída uma nova cadeia para a polícia administrar. Aquando da inauguração todos pensavam que iam entregar a chave à polícia e o juiz entregou-a à APAC. Embora não existisse nenhuma lei que legitimasse isso.

Mas isso não foi bem aceite...

Dois dias depois, o Estado cortou a comida dos presos como forma de retaliação e, durante um ano e oito meses, a comunidade de Itaúna é que alimentava os seus próprios presos. Só oito meses depois, após um embate político, conseguimos reverter a situação.

E, na sua opinião, por que é que acabaram por ganhar?

Os resultados eram muito fortes. Onde a polícia cuidava havia corrupção, drogas, fugas, violência, mortes. NaAPAC , que, em princípio, estava contrária à lei, não tinha nada disso e havia recuperação com taxas de mais de 90 por cento.

A partir de 2004, o tribunal de justiça assumiu o projecto das APAC como parte do seu programa de justiça no estado de Minas Gerais...

Hoje, todos os novos juízes têm de fazer estágios nas APAC.

Como explica este sucesso?

Valorização humana. Eles são valorizados, tratados como pessoas com direitos e deveres.

Afinal, em que consiste este método de trabalho da APAC, que leva os presos a aceitar a privação da liberdade?

Acreditar na pessoa. O modeloAPAC parte dessa premissa. E o preso corresponde a essa confiança que lhe é depositada. É um método também baseado na disciplina muito rígida imposta por eles próprios e pela administração. Existe um conselho de sinceridade e solidariedade formado pelos próprios e cabe aos conselhos zelar pela organização da segurança e pela disciplina.

Através de uma negociação?

Diria que sim. A administração daAPAC escolhe o presidente do conselho e ele, por sua vez, escolhe os seus pares.

E como se dá a mudança?

Há 12 elementos nesta metodologia que, quando aplicados, vão gerar a mudança, entre os quais a participação da família do detido, o trabalho, a religião, a assistência jurídica. É o conjunto desses 12 elementos que, quando aplicados no dia-a-dia pela equipa de voluntários, vai provocar uma mudança de mentalidades em todas as pessoas.

Não há fugas?

Há fugas, mas o número é reduzidíssimo. Estamos há cinco anos e quatro meses sem fugas do regime fechado.

Porque resolveu vir a Portugal?

Fui convidado pela associação de visitantes de cadeias "Foste Visitar-me", criada em 2007. Para despertar as pessoas, para quem sabe, no futuro, ter umaAPAC piloto em Portugal, para ser uma luz, um farol para toda a Europa.

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