Actas do Conselho de Estado mostram Spínola verdadeiro descolonizador

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Já depois da lei da descolonização aprovada, Almeida Santos propunha um programa de governo para as ainda colónias e defendia a nomeação de um governador para AngolaAntónio de SpínolaAdelino da Palma CarlosAlmeida Santos dr

Investigadora galega publicou livro com apontamentos e actas inéditas do Conselho de Estado entre Julho de 1974 e Março de 1975. Os documentos lançam dados novos sobre como se decidiu a descolonização

Quem foi, de facto, o responsável pela Lei 7/74 que permitiu a descolonização? O Presidente António Spínola? O Governo de Adelino Palma Carlos ou o de Vasco Gonçalves? O Conselho de Estado? E como foi o processo de aprovação?

Durante 38 anos as actas do primeiro Conselho de Estado pós-revolução, órgão fundamental de estruturação do regime democrático, julgaram-se perdidas ou mesmo inexistentes. Agora, uma investigadora galega analisou o espólio documental do comandante Almada Contreiras, conselheiro de Estado, depositado no Arquivo Militar de Lisboa, que inclui actas nunca aprovadas ou publicadas e apontamentos das reuniões e de encontros informais. E concluiu que afinal o Presidente esteve muito mais "comprometido com soluções de que, de resto, discordava, do que bastantes pensavam ou pensam", como afirma Marcelo Rebelo de Sousa no prefácio de O 25 de Abril e o Conselho de Estado - A questão das actas (Edições Colibri). Mais: emana do livro uma sensação "menos simpática para António Spínola do que o próprio viria a criar com a sua narrativa da experiência presidencial".

Instituído em Maio de 1974 com funções legislativas para lançar os alicerces do Estado democrático, o Conselho de Estado depressa esbarrou com a urgência de decisão sobre as colónias: a guerra de 13 anos agudizava-se, população e militares exigiam o fim do conflito, a diplomacia estrangeira pressionava para uma solução (Portugal foi confrontado com o reconhecimento da Guiné como Estado pela ONU).

O programa original do Movimento das Forças Armadas (MFA) previa a consulta à nação sobre o futuro das colónias e admitia o reconhecimento do direito à autodeterminação. A consulta teria lugar depois de se eleger um Presidente da República e um Governo - poderes legitimadores dessa emancipação. A admissão do direito à autodeterminação (a chamada alínea c) é suprimida do programa final do MFA. O cenário da consulta demoraria pelo menos um ano, mas tinha no primeiro-ministro, Adelino da Palma Carlos, um feroz adepto, que o incluiu na Constituição provisória que propôs a Spínola e ao Conselho de Estado.

A urgência obrigava a antecipar a questão da emancipação das colónias. O Conselho decidiu autonomizar a norma sobre a autodeterminação da lei constitucional e criar a Lei 6/74 (primeiro numerada 5/74) que, apesar de aprovada nunca foi publicada devido ao caso Palma Carlos. Este exigia o referendo e demitiu-se: "[O primeiro-ministro] Insiste na sua demissão por não se encontrar habilitado, embora o Conselho seja de opinião contrária, a assumir responsabilidade de entregar as parcelas do território ultramarino, isto é, reconhecer a sua independência", lê-se nos manuscritos de Contreiras.

Demite-se o civil Palma Carlos a 9 de Julho, entra o militar Vasco Gonçalves a 18. No Conselho de Estado, o Presidente opta pela prudência: exige que o Conselho assuma a urgência da decisão, que justifique a "impossibilidade" da consulta, e revogue o princípio da Lei 1933, para fazer uma nova versão da Lei 6/74. "Não aceito a responsabilidade de alienar uma parte do território sem a confirmação do Conselho de Estado ou da Nação", disse o Presidente, citado pelas anotações do comandante, na reunião de 19 de Julho.

Nesse encontro, o conselheiro Freitas do Amaral apresentou uma proposta mais redutora para a lei: reconhecer-se-ia a autodeterminação aos "territórios ultramarinos que optarem pela independência". Foi liminarmente recusada. A última versão aprovada tomou a designação 7/74 e os considerandos são generalistas. Menciona o reconhecimento por Portugal "do direito dos povos à autodeterminação com todas as suas consequências", incluindo "a aceitação da independência dos territórios ultramarinos".

"O mais importante não é o que escrevo, mas as actas e as transcrições de documentos inéditos", defende María José Santiago. O período foi "muito complexo. A cada hora era preciso tomar uma decisão, mudar números, datas, palavras" - o que dificulta a aferição do fio condutor da realidade daqueles meses difíceis.

A responsabilidade da lei de descolonização é partilhada: a sua génese "está no programa original dos militares - por conhecerem o terreno e saberem não haver alternativa", mas a honra da aplicação é de Spínola, que a recuperou contra várias vozes. "Quem supostamente nunca a iria fazer - porque tinha como ideal o sistema federal - foi quem afinal a publicou", diz a investigadora.

Porém, para María José Santiago o documento mais interessante é o "Esboço de uma linha de actuação política para os territórios Ultramarinos", assinado por Almeida Santos. São 34 páginas inéditas de "um verdadeiro programa de descolonização". Nem nas suas memórias o histórico socialista o mencionou.

O então ministro da Coordenação Interterritorial propunha que Portugal criasse estruturas políticas provisórias nas colónias, nomeando ministros e até uma espécie de governador, por exemplo, que seria "o germe de uma ligação definitiva de Angola à metrópole, de tipo comunitário". Defende mais investimento nas colónias para provar a boa-fé de Lisboa e para que vejam Portugal como "parceiro conveniente", escreve.

Para María José Santiago, "contrariado ou não, mas com um amplo apoio dos diversos quadrantes políticos e a acção determinante do Conselho de Estado, o general António de Spínola terá de ficar para a história como o Presidente descolonizador português, o que, afinal, em última análise, de alguma maneira o tornará homólogo do seu admirado general Charles De Gaulle".

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