A casa de Rubens (1)

Ia principiar por dizer que tudo começou com os dois enormes trípticos da Erecção e da Descida da Cruz de Rubens, hoje na Catedral de Nossa Senhora de Antuérpia. Mas, acertando melhor da memória o traiçoeiro foco, observei que me enganava e vos enganava.De Rubens (ou com Rubens) tudo começou com aquele livro que me deram numa Páscoa solar dos anos 40 do século cada dia mais passado, ainda eu não chegava sequer à estante em que mo arrumavam. Como já várias vezes contei (e não me vou repetir, pois tudo que é demais é demasiado) era um livro dedicado a museus alemães: Berlim, Dresde, Munique. Rubens abunda neles e abundava no citado livro. Mas uma reprodução avultou para mim mais do que todas as outras.
Era O Rapto das Filhas de Leucipo pelos Dioscuros. Os Dioscuros, Castor e Pólux, os filhos do Cisne e de Leda, eram surpresos em plena acção. Castor, equestre e envergando uma armadura, já levantara do chão Hileira, a resplandecente, exuberantemente nua, em nu frontal. Mais um pouco e estaria ela ao colo dele, na garupa do cavalo castanho, que também de frente nos olha, com alguma mansidão e interiorizante certeza. Pólux está ainda no chão, de pé, nu da cintura para cima, e do chão levanta Febe, a luminosa, igualmente nua, mas virando-nos as costas com uma mão ainda pousada no pé de Pólux. Distam muito mais do outro cavalo, branco e feroz, que, com as patas dianteiras muito levantadas, domina o outro em altura e impera no quadro.
Muito mais tarde aprendi que as roubavam a outros gémeos, Linceu e Idas, filhos de Poseidon e que em sangue e violência acabaria esta história. Mas, em Rubens, e na verdejante paisagem da cena, não há sangue nem sequer há violência. As duas mulheres nuas estão mais desejosas do que atemorizadas, nas lácteas carnes, das mais lácteas do pintor delas, e em louríssimos cabelos. Os dois cavaleiros, muito mais encobertos do que as despidíssimas presas, são mais concentrados do que ferozes. O que possa haver de rapto e de turbilhão está nos dois cavalos, tão ou mais protagonistas da tela do que os dois gémeos e as duas mulheres.
Nessa altura, não sabia ainda que Castor e Pólux luzem nas noites estreladas, às vezes, como agora, em conjunção com Marte. Como o título do quadro só falava de Dioscuros e escuríssimos eram os corpos dos gémeos - escuridão acentuada pelo contraste com a brancura ofuscante das irmãs - como um dos cavalos é castanho escuro e o outro branco, a sensação dominante é de luta entre o claro e o escuro, em que o claro perturbava muito mais do que o escuro.
Cerca de cinquenta anos se passaram até que vi o quadro pela primeira vez, em carne e osso (tanta carne, tão pouco osso) na Pinacoteca Antiga de Munique, onde cinquenta anos esperou por mim. A espiral barroca? A suprema vitória do movimento? Tudo isso e muito mais. Mas é nas cores que continua a residir a origem da turbação ou, em termos de "crescido", esse erotismo apoteótico que em Rubens nunca é afirmação da morte, mas plétora da vida.

Pouco mais ou menos pela mesma época (anos 40, não anos 90) deram-me dois postais reproduzindo os painéis centrais dos célebres trípticos da Cruz do pintor de Antuérpia. E, se a mitologia pagã deu lugar à mitologia cristã, idêntico é o vórtice de cores e de corpos que me apaixonou nessas representações. Tudo aquilo para que Argan, tantos anos depois, me deu as palavras exactas, quando falou de "abismos abertos e massas concentradas em turbilhões", de "futuro e passado que não dissolvem sensações, mas as intensificam e aceleram numa posse do presente em que os sentidos tem o papel predominante". O cavalo branco ou os braços erectos das filhas de Leucipo rimavam com os torsos nus e miguelangescos dos soldados que retesam os músculos para levantar a Cruz onde Cristo foi pregado ou com as vestes encarnadas e dançantes do Evangelista e com os louríssimos cabelos de Madalena, em cujo ombro pousa o pé de Jesus nas telas da Catedral de Antuérpia.Antes de Rubens e primeiro do que Rubens, Tiziano, o pintor que melhor exprimiu o sentimento da morte. Mas, logo a seguir, à dextra mão, Rubens, o pintor que melhor exprimiu o sentimento da vida.

Com ambos me fui encontrando e reencontrando ao longo da vida, pelos museus e igrejas dessa Europa ou dessa América, que neles a quantidade iguala a qualidade. Mas se tive, Graças a Deus, ocasião de ver a maior parte dos originais que tão antigamente me obcecavam, os retábulos de Antuérpia fugiram da minha vista, ou por acaso ou por destino.Em 1983, fui a Antuérpia de propósito para os ver. Vagueei o dia inteiro pelo Museu da cidade do Pintor, onde, aliás, se podem ver muitas das suas obras máximas e guardei o fim da tarde para as Cruzes da minha vida na Catedral. Quando lá cheguei, estavam em restauro e só restou extasiar-me com a Assunção. Depois, tentei muitas vezes, mas, ou porque torna ou porque deixa, nunca mais consegui voltar a Antuérpia. Bruscamente, em Setembro passado, chegou a ocasião. Um convite cinematográfico para Bruxelas, acompanhado pela proposta de um dia livre para escolher entre Bruges, Gand ou a cidade de Rubens. Por maior que fosse o meu desejo de voltar a ver os Van der Weyden ou os Memling de Bruges ou o Cordeiro Místico de Gand, não hesitei. Finalmente, numa tarde solarenta e de céu muito azul, entrei na velha catedral rendilhada de Antuérpia, na companhia de Gabrielle Claes e de Manoel de Oliveira, e vi os quadros que há mais de sessenta anos me perseguiam.
Lembrei-me então da história de Nello e do cão Patrache, contada por Marie-Louise de la Ramée, mais conhecida por Ouida, no melodrama romântico Un Chien des Flandres (1871) várias vezes adaptado ao cinema, em filmes que nunca vi.
Nello era um rapazinho pobre que, como o pintor de Junqueiro, só tinha como amigo fiel um pobre cão vadio. Como o herói do poema, quer ser pintor, mas, ao contrário dele, a Fortuna nunca o visitou. Até lhe falsificaram um concurso, pondo em nome doutro, com mais ricos protectores, as obras que apresentara e roubando-lhe a bolsa, prémio do dito concurso.
Nello tinha como desejo maior ver os quadros de Rubens na Catedral. Nessa época, não estavam em restauro, mas cobertos por uma cortina que só se abria mediante pecúnia. Ora dinheiro era coisa que o rapazito não tinha. Nello tentou muitos expedientes, mas todos falharam. Até que, numa noite de Natal, depois da Missa do Galo, Nello conseguiu esconder-se na igreja e por lá ficar até que todos saíssem e as portas se fechassem. Sozinho, conseguiu finalmente abeirar-se da Descida da Cruz, nessa noite desvelada. À luz da lua viu finalmente o quadro, mas a emoção, o cansaço e a fome venceram-no. Quando "risonho, despontou o dia", o sacristão encontrou o cadáver da criança em frente ao quadro de Rubens.
A minha ansiedade estava, pois, em boa companhia, embora o desfecho das histórias seja tão diferente, com óbvia vantagem para mim.
Outra lenda que eu tinha obrigação de conhecer e não conhecia, se me desfez só agora. Estava convencido que os dois quadros, pintados por Rubens entre 1611 e 1614, pouco depois do seu regresso a Antuérpia e dos oito anos passados em Itália a "devorar" a grande pintura italiana de quinhentos (1600-1608), dois anos após o seu primeiro casamento com Isabella Brant (1609), estava eu convencido, como ia dizendo, que sempre haviam sido destinados à Catedral de Antuérpia e que sempre lá haviam estado. Sabia que, em 1794, em pleno fervor revolucionário, tinham sido levados de Antuérpia para Paris, em nome do "Representante do Povo", donde só haviam regressado em 1815, após Waterloo e o fim de Napoleão, num regresso celebrado por uma cidade em festa. Mas ignorava que A Erecção da Cruz fora pintada para o altar-mor da "Igreja do Burgo" ou de Santa Valburga e que nessa igreja estivera até os franceses demolirem o templo e a levarem para Paris. Só no regresso, o tríptico passou à Catedral, como pendant da Descida da Cruz, essa sim pintada expressamente para ela. Ou seja, Rubens, numa fase da sua vida em que abundaram as encomendas para altares e igrejas, nunca pensou os trípticos como um conjunto e eles coexistem no mesmo espaço apenas vai para dois séculos.
Rubens ainda não tinha 40 anos quando pintou qualquer das obras. É de uso situá-las no que Oldenbourg chamou o Sturm und Drang da sua carreira, ou seja o período em que a afirmação do pintor já é total, mas ainda foge aos excessos futuros e estava mais próximo do maneirismo de Caravaggio ou do último Tintoretto (Rubens terá conhecido pessoalmente Caravaggio em Roma) de que do barroco de que foi expoente máximo.
Mas se o fabuloso movimento ascensional da Erecção da Cruz se pode explicar por um tema que o pedia, como interpretá-lo na Descida da Cruz, em que o corpo morto de Cristo não parece cair mas ser antes puxado para cima? Como se o tema da Ressureição já se inscrevesse em filigrana nessa tela, onde, mais do que nunca, em qualquer outra representação do mesmo tema, a morte é vencida. Numa diagonal ainda mais poderosa do que a da Cruz na Erecção, o imenso lençol branco que domina, tanto o quadro quanto o corpo nu de Cristo, parece ser não mortalha mas Asa que permite o voo e que todos impulsionam para um "mais alto" que não teria sentido se aquele corpo fosse destinado à terra. No alto, parecem voar as duas personagens que agarram o lençol ou com os dentes ou com as mãos.
Subitamente, agora que finalmente os vi, perguntei-me qual deles figurava a Erecção e qual deles figurava a Descida. Uma multidão de corpos, uma panóplia de formas e a imponderabilidade absoluta. A Cruz, na chamada Descida, já não existe. Apenas a um canto e apoiando o Apóstolo do Apocalipse, a Escada de Jacob com o infinito no seu topo.

Sugerir correcção