Turquia e Israel: a rota de colisão

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Cinco dias após o "incidente da flotilha", os efeitos já ultrapassaram largamente o bloqueio de Gaza. Está em andamento uma dinâmica de colisão entre Israel e a Turquia, cuja "relação especial" era um dos pilares da ordem no Médio Oriente.

A sua ruptura, anunciada desde a ofensiva de 2008 em Gaza, transforma o mapa estratégico da região, coloca Israel em posição de fraqueza e assinala o apogeu da diplomacia turca no mundo árabe, onde Erdogan é celebrado como um "novo Nasser". A grande diferença é que a ruptura não se manifestou sobre a forma de gradual distanciação, mas como um inesperado choque frontal.

O ataque de 31 de Maio foi "o exemplo perfeito de como um raide não deve ser feito", afirmou um militar americano. Declarou, sob anonimato, um diplomata israelita: "Começou à uma hora da manhã como pesadelo e tornou-se depois numa catástrofe."

Na primeira reacção ao fiasco, o Governo israelita optou pela sua táctica favorita: negar a realidade. O ministro da Defesa, Ehud Barak, recorreu ao argumento da "ameaça existencial" para justificar o raide violento contra a flotilha, explicando que a menor hesitação em relação a Gaza enviaria aos inimigos uma mensagem de fraqueza: "Não estamos na América do Norte nem na Europa Ocidental, vivemos no Médio Oriente, num lugar onde não há misericórdia para o fraco e onde não há uma segunda oportunidade para quem não se defenda a si mesmo."

O primeiro-ministro, Bibi Netanyahu, recorreu ao "complexo do cerco", o que levou o diário Haaretz a ironizar: "Netanyahu tinha razão. Todas as suas predições se tornaram verdade. Disse que o mundo inteiro estava contra nós - e agora tem razão." O Governo israelita manietou-se a si mesmo.

O levantamento do bloqueio de Gaza - uma estratégia fracassada - é a única porta de saída, dizem vários analistas israelitas. O general Giora Eiland, ex-chefe do Conselho de Segurança Nacional, que não passa por "pomba", apelou a que o Governo dê prioridade aos interesses de segurança israelita, acabe com o bloqueio de Gaza e negoceie um cessar-fogo com o Hamas, como fez com outros inimigos árabes, obtendo a libertação do soldado Gilad Shalit e impondo garantias de segurança.

Ao assumir uma posição de rigidez, o Governo israelita faz com que qualquer revisão da política de Gaza seja vista como desaire e fraqueza. O tempo joga contra Netanyahu. Muitos se voltam para Obama pedindo-lhe que "salve Israel de si mesmo".

Também do lado turco há o risco de uma dinâmica de derrapagem, derivada de um "excesso de êxito". O erro israelita isolou tão gravemente o país que Ancara se sentiu impelida a elevar excessivamente as expectativas. Nas cidades árabes, inclusive em Jerusalém Oriental, há manifestações com a bandeira da Turquia, que se tornou na potência protectora dos palestinianos. Ancara compreendeu que o apoio à causa palestiniana era a chave para ter um papel importante no Médio Oriente. Daí a aposta em Gaza, em concorrência com o Irão. Hoje, 75 por cento dos árabes têm uma elevada opinião da Turquia - o que provoca algum ciúme nos dirigentes árabes.

Também a dinâmica interna começa a inquietar alguns analistas turcos. Erdogan e o seu partido exigem a "punição" de Israel e um formal pedido de desculpas. "Nada será como dantes", dizem.

A um ano das eleições, há o risco de uma escalada nacionalista, com a oposição laicista e a extrema-direita a subirem a parada, propondo o corte de relações com Israel. O funeral dos "mártires do Mavi Marmara" incendiou as emoções. Uma sondagem indica que 60 por cento dos turcos consideram que a reacção de Erdogan foi insuficiente e pedem medidas mais fortes.

O risco de Erdogan, escreve o analista turco Mehmet Ali Birand, é perder o controlo da sua própria política. A viragem ao Médio Oriente não significa "voltar as costas ao Ocidente". "O primeiro-ministro quer elevar a Turquia a um estatuto que lhe permita ter uma palavra a dizer no Médio Oriente, nos Balcãs e no Cáucaso, de modo a incrementar a sua atracção junto da Europa e dos Estados Unidos."

Ancara está a conquistar uma posição de liderança na região, mas Israel tem meios para retaliar (questão arménia, PKK, o peso do lobby israelita no Congresso americano) e pode acabar por virar o processo contra a Turquia, adverte Birand. No mundo árabe há um esboço de reacção pan-islâmica e "a percepção de uma viragem ao islão é muito perigosa". Erdogan - sublinha - deve conter a sua retórica e pôr um travão ao envio de novas flotilhas.

Um sinal importante foi ontem dado pelo mais influente líder religioso turco, Fethullah Güllen, "exilado" nos EUA e que passa por ser o mentor do PKK. Em entrevista ao Wall Street Journal, condenou a violência israelita mas igualmente a flotilha, por os seus responsáveis não terem procurado a prévia autorização israelita: mais do que levar ajuda foi "um desafio à autoridade, o que não leva a resultados frutuosos".

De momento, a política americana dá prioridade ao "arrefecimento" do conflito, evitando a escolha impossível entre dois aliados. E também prevenir que, de divórcio, a ruptura israelo-turca degenere em conflito.

A primeira dificuldade é a gestão do bloqueio a Gaza, que se transformou numa ratoeira para Israel e num ponto de honra para a Turquia, de que esta não pode abdicar sem desprestígio. Israel é uma questão sempre sensível na política doméstica americana. Mas a Administração Obama também sabe que uma colagem a Israel a enfraqueceria drasticamente no Médio Oriente.

A segunda dificuldade é a adaptação ao novo quadro multipolar. Este não se resume aos "grandes" do Conselho de Segurança da ONU. As potências regionais emergentes querem assumir um papel de primeiro plano. O Brasil e a Turquia deram o exemplo ao intervir no conflito do nuclear iraniano.

Hoje, no Médio Oriente, "os interesses turcos e americanos só parcialmente coincidem", anota F. Stephen Larrabee, especialista da Turquia, na Rand Corporation. Erdogan tem a percepção da situação de fraqueza em que Israel se colocou. Nela vê uma oportunidade para reforçar o seu papel no Médio Oriente, particularmente no mundo árabe.

Para conter o "excesso de êxito" de Ancara, Obama precisa de uma solução em Gaza.

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