Quem parte e reparte

A "aposta no capital humano" é uma frase decorada mas sem conteúdo

Adivulgação dos salários dos administradores das grandes empresas causa sempre perturbação. Em Portugal ou nos Estados Unidos. A perturbação é compreensível: um trabalhador médio, que faça honestamente o seu trabalho quotidiano, aufere em Portugal um salário bruto de 620 euros (dados oficiais da Segurança Social relativos a 2005). Mesmo que num casal ambos os cônjuges trabalhem é fácil imaginar que tipo de vida os seus salários conjugados lhes permitem levar. Uma vida complicada. E mais complicada ainda se pensarmos que esta família pode ter filhos ou um idoso a cargo ou um familiar com uma deficiência ou uma doença crónica. Quando as pessoas que têm esta vida lêem que, de 2000 a 2005, os salários dos administradores das empresas do PSI20 foram multiplicados por 3,2 (um aumento de 220 por cento), atingindo valores de 3 e 4 milhões de euros por ano, é natural que sintam alguma surpresa.Os salários milionários dos gestores são tanto mais chocantes quanto 20 por cento dos portugueses vive abaixo do limiar de pobreza, auferindo menos de 300 euros por mês. E são tanto mais surpreendentes quanto, no mesmo período, os salários nacionais aumentaram 15,7 por cento e a economia cresceu a menos de um por cento ao ano.
Ou seja: considerados colectivamente, conclui-se que os administradores se ofereceram a si mesmos (ou os accionistas lhes ofereceram) salários que a sua performance não fazia esperar antes nem justificou depois.
Ninguém contesta a legalidade destes aumentos. Mas a sua moralidade é altamente duvidosa.
Pode-se aceitar (e mesmo isso é contestável) que um gestor guarde para si uma fatia proporcionalmente mais generosa do que para os trabalhadores da sua empresa dos ganhos que a actividade de todos proporcionou. Mas mesmo isso só pode acontecer quando os trabalhadores da empresa considerada alcançaram um nível mínimo de remuneração que garante uma satisfação razoável. O que não é aceitável de todo é que um gestor guarde para si uma parte crescente de um bolo que não cresceu e que não ajudou a fazer crescer - quando não o levou mesmo a diminuir. Esta atitude só pode ser considerada injusta em termos sociais, contraproducente em termos económicos e ilegítima em termos éticos. O sistema de valores (e o sistema de recompensas) que esta atitude reflecte é um sistema perverso, onde os que têm mais recebem mais ainda, apenas porque têm mais, e os que têm menos recebem menos, apenas porque têm menos. É um sistema que amplia injustiças sociais, que amplia a conflitualidade, que não promove a competência e a qualidade e que muito menos promove o investimento pessoal ou o empenho profissional.
O discurso interno dos gestores para as suas empresas nunca se cansa de sublinhar a importância do "capital humano" nem de repetir que "o mais importante são as pessoas". Infelizmente, como os dados agora publicados revelam e a experiência quotidiana mostra, trata-se de frases decoradas mas com pouco ou nenhum conteúdo. A motivação dos trabalhadores não pode ter lugar num modelo onde o sistema de recompensas possui esta perversidade e, sem essa motivação, é evidente que qualquer aumento de produtividade se torna duplamente árduo. Se pensarmos que a produtividade depende ainda do investimento (nomeadamente em tecnologia), da formação (nomeadamente on-the-job training) e da organização, torna-se claríssima a origem da baixa produtividade nacional: ocupando a pole position das causas da improdutividade vamos encontrar os mesmíssimos gestores que se pagam a si mesmo os salários milionários.
Na teoria e na melhor prática capitalista, as empresas são fonte de riqueza e de bem-estar para os seus proprietários, para os seus empregados, para os seus fornecedores, para os seus clientes e para as suas comunidades. Esta ideia, que muitos capitalistas tentaram pôr em prática, de W. K. Kellogg a Andrew Carnegie, está hoje algo afastada da mente de empresários e administradores, tendo sido substituída pelo conceito de valorização bolsista. E esta, curiosamente ou não, é tendencialmente tanto maior quanto mais baixa for a remuneração média dos trabalhadores de uma dada empresa - "o mercado" detesta custos fixos elevados, que possam reduzir a remuneração dos accionistas. Ou seja: "o mercado" premeia o comportamento imoral dos gestores que se concedem a si mesmos aumentos de 220 por cento enquanto dão aumentos de 15 por cento aos seus trabalhadores. Jornalista

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