Primeiro-ministro ou apresentador do boletim meteorológico?

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O actual executivo exagerou na tentativa de culpabilização primária dos Governos anteriores

1. Contrariamente ao que pensava Ortega y Gasset, há homens que são apenas a sua própria circunstância. Do ponto de vista político, Pedro Passos Coelho e o seu Governo aproximam-se vertiginosamente dessa condição. Na verdade, temos um primeiro-ministro que se parece cada vez mais com um apresentador do boletim meteorológico; anuncia o empobrecimento geral do país e o aumento dramático do desemprego com o mesmo distanciamento impotente que deparamos na expressão daqueles que diariamente nos antecipam o quadro climático dos dias seguintes. É, aliás, de crer que estes perante a obrigação de anunciarem a iminência de um furacão ou de um terramoto revelem uma comoção genuína, em absoluto ausente das comunicações de um chefe de Governo que julga encontrar um certo sentido de Estado no acto de enunciação de más notícias. Pedro Passos Coelho, que está longe de ser uma máquina cerebral, fria e calculista, optou deliberadamente por este estilo, que não traduz a representação automática de uma personalidade, mas exprime ponderadamente a escolha por um certo caminho político. Na vida política, o estilo e a forma integram e determinam o núcleo essencial do discurso. No fundo, apelando a uma pretensa objectividade e procurando alardear uma invulgar coragem, o primeiro-ministro visa transmitir uma mensagem simples e, na aparência, poderosa: este Governo, ao invés de outros, empenha-se em falar a linguagem da verdade; a situação do país é pouco menos que catastrófica, devido aos graves erros cometidos por executivos anteriores; a sociedade portuguesa habituou-se a viver, indevidamente, acima dos padrões modestos que a sua ancestral pobreza impõe; deleitamo-nos, no passado recente, numa falsa "idade de ouro", despesista e ilusória, e vemo-nos agora obrigados a regressar à nossa própria fatalidade; não há, nunca haverá, outro caminho que não este, consubstanciado na adopção de medidas de austeridade, na redução brutal da esfera estatal, no encolhimento de tudo o que é público, e no enaltecimento de tudo quanto tem origem no sector privado. Não estou certo, ao contrário de outros, que o primeiro-ministro faça tudo isto dominado por uma elevada dose de embriaguez ideológica. Haverá, ao seu lado, quem assim proceda, mas não creio que seja o seu caso. Fá-lo-á, talvez, por um misto de ingenuidade adâmica e ausência de verdadeira sabedoria política. Uma e outra coisa são perigosas; relembro, a propósito, um belo apontamento extraído de uma das grandes obras de Agustina, A Sibila: "Onde não há inocência, pode haver pecado; mas onde não há sabedoria há sempre desgraça". Como tudo seria diferente se a nossa classe política ainda lesse Agustina...

Voltemos à acção do Governo. As circunstâncias actuais, marcadas pela crise internacional, pelo elevado endividamento do Estado e dos particulares e pelo recurso ao auxílio financeiro externo, favorecem a adopção do discurso que o primeiro-ministro tem optado por fazer. De certo modo, outorgam-lhe legitimidade e atribuem-lhe um crédito público de inegável importância. Pedro Passos Coelho chegou à chefia do Governo devido a um conjunto de circunstâncias felizes e deu provas de as compreender na primeira fase da sua actuação no desempenho de tal cargo. Durante algum tempo, isso tornou-o invulnerável às críticas. Com outra sagesse teria encontrado aí uma rampa de lançamento que lhe permitiria projectar-se e instalar-se por muito tempo no nosso futuro colectivo. Não foi, porém, capaz de o fazer. Produto de uma circunstância favorável, revelou, desde cedo, uma notória incapacidade para se elevar para além dela; o que poderia ser o limiar de uma existência perene, tornou-se o limite de uma sobrevivência precária. O problema de muitos políticos é a confusão entre o instante e a eternidade, ignorando grosseiramente o efeito corrosivo do tempo. Vendo no acaso um sinal do destino, ignoram que tudo o que é momentâneo está condenado a caducidade rápida. Este Governo tinha quase tudo para se impor, mas cometeu erros, que o impedem de uma projecção para lá da pura actualidade.

Para uma correcta compreensão da presente realidade bastará enunciar três asneiras cometidas e dilucidar pormenorizadamente uma delas. Imbuído de uma forte carga de ingenuidade, o actual executivo exagerou na tentativa de culpabilização primária dos Governos anteriores; repleto de uma auto-satisfação infantil, ignorou os efeitos catastróficos provocados, quer no plano económico, quer de uma perspectiva social e cultural, pela adopção de medidas de cariz profundamente recessivo; dominado por uma arrogância desapropriada, descurou o relacionamento com o principal partido da oposição. Foram erros a mais, e sem justificação plausível. No final, teremos um Governo isolado, contestado e diminuído.

Concentremo-nos na abordagem da questão específica do relacionamento da actual maioria parlamentar com o Partido Socialista. Perante a dimensão da crise, e a natureza especialmente complexa de algumas das decisões a tomar, faria todo o sentido que, desde o primeiro momento, o Governo se empenhasse especialmente no esforço de promoção de um bom entendimento com o maior partido da oposição. A haver alguma resistência a esse entendimento, seria de prever que tal proviesse do Partido Socialista, preocupado em impedir a anulação da sua imagem de partido incumbido da tarefa de construção de uma alternativa de Governo em Portugal. Curiosamente, não foi isso que aconteceu. Afigura-se hoje indiscutível que o Partido Socialista, ao longo da presente legislatura, tem agido com excepcional sentido de responsabilidade institucional, a ponto de ver momentaneamente prejudicado o seu esforço de afirmação como pólo alternativo dotado de uma identidade programática e política forte. Quem quer que seja que conheça o mundo partidário, sabe que não é fácil seguir por este caminho. Quer no momento da votação do Orçamento do Estado, quer no instante da apreciação parlamentar do novo Tratado Europeu, prevaleceu no seio do PS uma posição empenhada em transmitir, quer interna, quer externamente uma imagem de compromisso nacional. Em lugar de corresponder, com igual sentido da responsabilidade a este generoso e sério posicionamento adoptado pelo Partido Socialista, a actual maioria optou por uma reacção que se situa algures entre o desprezo e a hostilidade. Esta atitude atingiu o seu ponto máximo com as declarações desastrosas proferidas no último fim-de-semana pelo vice-presidente do PSD Jorge Moreira da Silva, que se permitiu tratar o Partido Socialista em termos que configuram um verdadeiro insulto institucional. Ficou, assim, claro que, para o PSD, o PS não passa de um refém a instrumentalizar em qualquer momento. Face a tal evidência, não resta ao Partido Socialista, em nome da salvaguarda da sua dignidade e tendo em consideração o contributo que deve dar para o debate democrático, a prossecução de outro caminho que não seja o da afirmação cada vez mais clara da sua identidade programática e política. Esta opção terá consequências práticas mais ou menos imediatas. Não são vislumbráveis razões ponderosas que devam conduzir o PS a adoptar em relação ao próximo Orçamento do Estado atitude idêntica à que manifestou face ao Orçamento anterior. Na altura, o PS absteve-se em nome do interesse nacional. Dada a alteração das circunstâncias, é bem provável que o mesmo interesse nacional reclame outra posição por parte do Partido Socialista. Ainda faltam, contudo, alguns meses.

2. Por razões contrárias à minha vontade, mas não alheias à minha responsabilidade, o texto da semana passada seguiu as regras do novo Acordo Ortográfico. Tratou-se de um lapso, que não voltará a repetir-se.

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