O modelo de governo da Igreja está em causa

Os católicos têm que repensar a sua relação com uma sociedade que lhes escapa

Os episódios que ultimamente têm trazido o Vaticano e o papado para a praça pública revelam que está em questão o modelo do governo da Igreja. Apesar de tentativas tímidas para que a estrutura de liderança do catolicismo fosse mais descentralizada e colegial, o papado e a Cúria Romana continuam a ser essencialmente centralizados, não respondendo a muitas das questões dos tempos actuais.

Tome-se o exemplo das viagens pontifícias, que João Paulo II democratizou. Inicialmente, ainda com João XXIII e Paulo VI, elas apareceram como uma descida do pedestal em que, durante séculos, o Papa tinha sido transportado. O líder católico passava, agora, a estar próximo dos fiéis.

No início, ainda havia, em algumas ocasiões, leigos católicos chamados a discursar perante o Papa. Mesmo que controladas, essas intervenções expunham razões e formas de sentir dos crentes.

O modelo esgotou-se rapidamente. Hoje, as viagens estão reduzidas à possibilidade de ver o Papa mais perto. E este não tem qualquer oportunidade de contactar directamente os católicos locais, de escutar as suas expectativas, de perceber os seus desejos para o devir do catolicismo.

A situação repete-se no resto da vida da Igreja, com uma estrutura - a Cúria Romana e o colégio dos cardeais - por vezes muito distante da realidade vivida pelos católicos.

Não admira, por isso, que, de repente, o Papa apareça preocupado com casos como o dos 400 padres austríacos e o seu "apelo à desobediência". Estes padres, cujo objectivo essencial é traído pelo título redutor do seu documento, limitam-se a repetir o que já largas franjas de católicos dizem há muito - ou que muitos outros deixaram de dizer, por simplesmente terem abandonado a Igreja, naquilo que muitos caracterizam como um "cisma silencioso". A saber, que é necessário que a Igreja se repense e reflicta a relação com uma sociedade que lhe escapa.

Em 1962, com os bispos católicos do mundo reunidos no Concílio Vaticano II (os 50 anos do início assinalam-se em Outubro), a Igreja tentou adaptar o papado aos tempos actuais, criando estruturas como o Sínodo dos Bispos, cujo objectivo era levar a Roma a voz dos episcopados locais. Mas as tentativas de muitos bispos no sentido de dar mais poder aos sínodos (ou, a outra escala, às conferências episcopais) foram todas coarctadas. E o pouco valor que o sínodo adquirira acabou submerso no poder da Cúria.

Cidadãos de corpo inteiro na sociedade, os católicos não podem ficar toda a vida com o fato da primeira comunhão, naquilo que à sua cidadania religiosa diz respeito. É isso mesmo que decorre da doutrina do Vaticano II, que reconheceu a igualdade radical, pelo baptismo, de todos os crentes. Por isso, só uma estrutura de governo menos centralizada e mais aberta à participação de todos pode devolver à Igreja Católica o suplemento de alma que ela tem vindo a perder.

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