O modelo constitucional, os eleitores e os eleitos

Há uma incongruência entre eleitores e eleitos que poderá gerar mais insatisfação com o funcionamento do sistema político

Nos 35 anos de Abril, vale a pena reflectir sobre a nossa arquitectura constitucional, a qual aponta para o chamado modelo da "democracia consociativa". Porém, com o passar do tempo, a prática política foi-se afastando desse modelo em direcção a uma "democracia maioritária". Mas as próximas legislativas poderão apontar para nova inflexão: se houver uma redução significativa dos votos nos dois maiores partidos, um crescimento dos pequenos e a ausência de uma maioria absoluta. Os eleitores parecem antecipar esse cenário e as suas preferências apontam maioritariamente para ele. Pelo contrário, as elites estão bastante mais apegadas ao "modelo maioritário". Há, por isso, uma incongruência entre eleitores e eleitos, a qual poderá gerar mais insatisfação com o funcionamento do sistema político. De acordo com a teoria de Arend Lijphart, cada tipo de democracia tem associado um conjunto de instituições que funcionam como um sistema de incentivos e constrangimentos para a actuação dos actores políticos. O modelo da "democracia maioritária" tem usualmente associado um sistema eleitoral maioritário e um regime de alternância entre dois grandes partidos. A política é concebida como um "jogo de soma nula": os vencedores (em cada eleição) "levam tudo" (no que diz respeito ao controlo dos mecanismos de tomada de decisões ao nível do governo central). Este modelo tem várias vantagens, nomeadamente a possibilidade de se produzirem governos estáveis e mais facilmente responsabilizáveis pelos eleitores.
O modelo da "democracia consociativa" tem geralmente associado um sistema eleitoral proporcional e governos de coligação. A política é concebida como partilha do poder e os direitos das minorias são bastante protegidos, nomeadamente através de uma espécie de direito de veto. Neste modelo valoriza-se mais a representação e a participação. O exercício do poder assenta numa lógica de incorporação de vários segmentos do eleitorado no governo. O sistema eleitoral é uma instituição central em cada um dos modelos e, por isso, o nosso regime, assente na representação proporcional, aponta mais para a democracia consociativa: nomeadamente, não produzindo facilmente maiorias absolutas artificiais (isto é, só de lugares no Parlamento) de um só partido. Ou seja, esta arquitectura necessita de actores políticos dispostos a cooperarem e a estabelecerem compromissos para governarem. Porém, a dificuldade das várias forças políticas em se entenderem, nomeadamente à esquerda, terá levado a uma concentração do voto nos dois maiores partidos, desde 1987: uma reacção dos cidadãos à instabilidade governativa que se viveu nas primeiras décadas do novo regime. A bipartidarização induzida por estas mudanças nos comportamentos dos eleitores levou a uma alteração de facto no modelo. As coisas parecem porém estar em vias de mudar: a maioria absoluta parece cada vez mais uma miragem e a concentração de votos nos dois maiores poderá recuar.
Os eleitores parecem desejar essa mudança. É isso que revela um inquérito realizado no ano passado junto de uma amostra representativa da população (ver Tabela 1): a maioria prefere uma coligação a um governo de um só partido; esta preferência é mais vincada entre os simpatizantes dos pequenos partidos, mas é também maioritária entre os simpatizantes do PS e do PSD. Pelo contrário, o inquérito aos deputados (com as mesmas questões) revelou que estes estão muito mais apegados à ideia de maioria de um só partido (excepto entre os pequenos partidos). Numa coisa há acordo: o governo, monopartidário ou de coligação, precisa de uma maioria no Parlamento.
Entre os eleitores, a preferência por entendimentos partidários foi mais uma vez revelada numa sondagem da TVI (ver Tabela 2): 42,0 por cento pensam que, caso não haja maioria absoluta, os partidos se devem entender para formar governo, uma percentagem que se reforça (45,1) entre os simpatizantes do PS. No conjunto do eleitorado, os parceiros mais desejados para um tal acordo são o PSD e o BE, ex-aequo; entre os simpatizantes do PS a preferência vai claramente para o BE.
Porventura como resultado da governação musculada que caracterizou esta legislatura, os eleitores parecem desejar uma mudança nas práticas do nosso sistema político. Há, porém, uma certa incongruência entre eleitos e eleitores não apenas em termos de modelo desejado mas também em termos dos entendimentos necessários para o "modelo consociativo" funcionar. Esta incongruência poderá ser mais uma fonte de insatisfação dos cidadãos com a democracia. Nas próximas legislativas veremos se os partidos (e quais deles) estarão (ou não) à altura das suas responsabilidades. Politólogo, ISCTE (andre.freire@meo.pt)

Sugerir correcção