O Governo oculto

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DANIEL ROCHA

Desapareceram a exigência ética e a convicção de que a corrupção possa ser o extraordinário e não o banal

Aatmosfera continua carregada. Afinal de contas, as eleições foram apenas um intervalo no ciclo, já quase banal, de casos judiciais envolvendo actores políticos, negócios pouco claros, jogos de influência e acusações de corrupção. Parece mesmo que existem ao mesmo tempo dois governos. Um público, que aparece à vista de todos no Parlamento ou na televisão, a discutir com a oposição ou a anunciar medidas. Outro oculto, que longe dos olhares públicos intervém no mundo dos negócios, capta financiamentos, influencia decisões empresariais. Qual dos dois é o verdadeiro? Um e outro não estão distantes quanto parecem. Não só a influência do Governo oculto se estende aos negócios dos media como a propaganda do Governo público se tornou num formidável instrumento de ocultação.

O problema de fundo é político - e ético. Começa na complacência instalada no regime em relação a problemas como o financiamento partidário, a promiscuidade entre o universo da política e o universo dos negócios e a corrupção. Questões que minam a credibilidade pública da democracia. E permitem questionar em que é que o Governo público é mais do que uma camuflagem por detrás da qual se tomam as decisões que contam.

Pacheco Pereira tem razão quando diz que não é possível separar a justiça da política. A cada novo caso, os partidos encolhem os ombros e repetem declarações de conveniência sobre como é importante confiar na justiça. Compreende-se que casos concretos não sejam usados para o combate partidário quotidiano - em teoria, é até mesmo uma boa prática. Mas na ausência de um discurso sério contra a corrupção e de uma política que a combata eficazmente, esses silêncios confundem-se facilmente com uma conivência. Como se cada um estivesse a proteger os seus telhados de vidro.

Sem leis efectivas contra a corrupção e sem um sistema jurídico capaz de julgar com competência e celeridade, a democracia transforma-se num palco vazio. A complacência que vem do topo contagia toda a sociedade. Os jogos de influência, os favores, a corrupção, tudo isso flui através de um crivo alargado que fecha os olhos aos jogos de bastidores. Desapareceram a exigência ética e a convicção de que é possível viver num sistema político em que a corrupção seja o extraordinário e não o banal.

Não é apenas o problema de haver "Estado a mais" que torna possível esta situação. Ela é também a consequência de uma perda de influência do poder político perante o poder económico. A desideologização do político conduziu a uma reificação do económico. Na ausência de valores ideológicos, a economia tornou-se um valor em si. A desregulação da economia ou a influência excessiva do Estado - que se verifica em Portugal - concorrem no mesmo sentido. Um estado de coisas em que os negócios, os grandes negócios, se tornam o centro da vida política e a política retira o seu poder da capacidade de os influenciar.

Uma nova legislatura começa e com ela o desenho de um novo jogo de equilíbrios entre Governo e Parlamento, à sombra das próximas eleições presidenciais. O caso dos submarinos primeiro, o Face Oculta depois, incluindo as certidões extraídas do processo e relativas às conversas entre Armando Vara e José Sócrates, vieram mostrar que o jogo de equilíbrios será outro. O poder político está outra vez sob suspeita, a política propriamente dita volta a sair para intervalo. Sem que fique claro em que medida os timings políticos influenciam os tempos da justiça. As próprias razões pelas quais cada processo se torna público num dado momento estão elas próprias sob suspeita. Como se fossem também parte de um Governo oculto.

Como se desfaz este nó? Tornou-se demasiado urgente fazê-lo - a alternativa é deixar que a democracia fique reduzida a uma caricatura, a face visível de um jogo de sombras. Há respostas possíveis, se mudarmos as regras. No combate à corrupção, no financiamento partidário, na transparência do sistema.

Não é possível continuar assim - e não é a primeira vez que muitos dizem que não é possível continuar assim. Os custos de olhar para o curto prazo dos interesses imediatos e dos atalhos mais curtos para os satisfazer em vez de privieligiar a estabilidade e a credibilidade do sistema político no longo prazo são elevados. O Governo oculto não pode continuar a esconder-se atrás do Governo público. Jornalista

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