Fim de época

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"Os males de que se morre são mais específicos, mais complexos, mais lentos, às vezes mais difíceis de descobrir ou definir. Aprendemos, no entanto, a identificar aquele gigantismo que não passa de falsificação malsã de um crescimento, o desperdício que leva a acreditar na existência de riquezas que já se não têm, a abundância tão depressa substituída pela escassez à mínima crise, os divertimentos organizados a partir de cima; aquela atmosfera de inércia e de pânico, de autoritarismo e de anarquia, as reafirmações pomposas de um passado grande no meio da actual mediocridade e da presente desordem, as reformas que não passam de paliativos e acessos de virtude que só através de purgas se manifestam; o gosto do sensacional que acaba por fazer triunfar a política do pior, os poucos homens de génio mal secundados, perdidos na multidão dos habilidosos grosseiros, dos loucos violentos, dos honestos desastrados e dos fracos prudentes. O leitor moderno está em sua casa na História Augusta.

Mount Desert Island, 1958"

Marguerite Yourcenar (1962),

A Benefício de Inventário, Difel, Lisboa, 1989, pp. 22-23.

E sta reflexão de Marguerite Yourcenar foi-me lembrada recentemente por uma personalidade da vida política e cultural portuguesa à mesa de um restaurante onde, munidos de faca e garfo, vagueávamos em conversa pela crise, pela falta de alternativas, pelo mal-estar no país e na Europa, pelo fim de ciclo da política europeia, pela mediocridade que reina em momentos de fim de época. E esta reflexão de Yourcenar voltou-me à memória ao ler a entrevista feita por António Marujo ao historiador José Mattoso, editada domingo no PÚBLICO, a propósito da edição do seu livro Levantar o Céu - Os Labirintos da Sabedoria (Temas e Debates/Círculo de Leitores).

Para além das interessantíssimas reflexões sobre a sua visão da vivência religiosa e da relação com o transcendente e o sagrado, assim como as marcantes sinalizações sobre o que é a evolução histórica e a relatividade do dogmatismo do poder em outras épocas, Mattoso oferece um pensamento profundo e lúcido sobre o momento histórico em que vivemos.

Com a sabedoria de quem é um pensador - isto é, alguém que estudou, que conhece, mas tem também a capacidade de construir uma visão do mundo -, Mattoso traça um quadro da actualidade que mostra como vivemos um fim de ciclo em que os poderes de hoje, à semelhança dos poderes na fase final no Império Romano, agem apenas com base numa visão egoísta e autocentrada, ignorando as pessoas e a sua dignidade.

Deixando de lado soluções absolutas e redentoras, Mattoso estabelece uma diferença básica entre o papel histórico que reconhece aos ideais e às ideologias, bem como à própria religião. E sublinha: "Os ideais são indispensáveis para o homem melhorar a sociedade em que vive. As ideologias, não sei de nenhuma que tivesse resolvido os problemas da humanidade a uma escala suficiente: marxista, socialista, conservadora... Até as próprias religiões, como sistemas de organização da vida."

E, com toda a candura dos seus 79 anos, confessa que a sua "posição céptica é resultado de um certo realismo e lucidez", para, sem nenhum espanto, apontar o caminho do abismo em direcção ao qual a humanidade avança: "Quando se vêem as estatísticas, o aumento do lixo nuclear, das consequências dos aditivos na indústria alimentar, tudo o que preocupa um cidadão normal, não se vê como se possa sair daí. As coisas têm repercussões tais que só a reunião de poderes universais pode alterar a direcção em que se vai. As estatísticas são implacáveis e seria cegueira não ver isso." Acrescentando com uma concisão cristalina: "A escassez de petróleo e de água, de todas as fontes de energia, mostra que é preciso um investimento enorme. (...) Somos incapazes de imaginar o mundo sem energia, sem movimento, sem Internet. As comunicações tornaram-se indispensáveis. Mas quais são os subprodutos? (...) Não há nenhum político que se atreva a propor que se deixe de ter electricidade uma hora ou duas por dia, porque perderia as eleições..."

Já sobre os poderes Mattoso afirma, sem medo:" Sei que o Estado tem mostrado a sua impotência perante os abusos do poder financeiro e que o sistema democrático não resolve os problemas actuais. Ninguém acredita no discurso político, nem mesmo quem o pronuncia. Os interesses corporativos viciam a democracia. O "governo do povo" não defende os direitos dos pobres e excluídos. Favorece quem já tem poder."

Perante a força das palavras de José Mattoso traçando a rota da queda no precipício, o Governo apenas repetiu a sua certeza na inevitabilidade de soluções absurdas. E o país assinalou o primeiro 1.º de Maio com troika e com perda de direitos e massa salarial, ou seja, em dumping social, simbolizado pelo dumping dos preços da cadeia Pingo Doce. Continua-se, assim, a passar por cima da dignidade humana e a viver-se no ambiente descrito por Yourcenar a propósito da História Augusta.

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