Somos todos da cidade de Auschstaadt*

No espaço de uma casa abandonada, várias personagens dialogam sumariamente. Um texto complexo e belo que nos relembra a perenidade da obra de Marguerite Duras.

Como dizer o medo, a dor, o desconforto, a culpa, o remorso, enfim, as inabilidades da vida, se não através de um texto desconcertante e, no entanto, belo. E, por isso, belo. Não fosse ele escrito por Marguerite Duras, cuja obra, quase impecável - há um ou outro texto seu menos interessante e que a autora se permitiu publicar -, nos reconcilia com os sentimentos contraditórios e confusos que nos reconduzem à essência da nossa humanidade.De "Abahn Sabana David" se diz ser um dos textos mais complexos, se não o mais complexo, escrito pela autora. A própria Duras terá comentado não ter percebido nada quando o voltou a ler. (A pose de simplicidade espontânea era um dos fortes da escritora, a par de uma frontalidade de loiça quebrada.)Diríamos que este é daqueles textos para ler devagar, muito devagar, hesitando em cada frase, tocando-lhe os sons, a sonoridade, a melodia; relendo-o, degustando-o. Como um poema? Sim. Como um poema.De que medo fala Duras? Do medo da morte, da morte colectiva, da impunidade da morte colectiva. E de que dor? Da dor de não podermos fazer nada, de permanecermos espectadores impotentes dessa morte, sem acção e sem condição. E de que desconforto? Do desconforto que produz em nós a falta de acção e condição para mudar, para escolher a mudança. E de que culpa? Da culpa de não anteciparmos a mudança. E de que remorso? Do remorso de não termos sabido evitar o holocausto nazi.Escrito em 1970, vinte e cinco anos depois do final da II Grande Guerra e cerca de 20 anos após Duras se ter incompatibilizado com o Partido Comunista Francês (resultado de uma querela patética criada pelo partido, minuciosamente documentada e descrita em "Marguerite Duras - Uma Biografia", de Laure Adler), Abahn... repete alguns dos temas que preocuparam a Duras-activista, ou, mais à sua maneira, a Duras-interventora.Por esta obra perpassam, assim, muitas das recorrências que a autora não se cansou de prenunciar. A perseguição aos judeus, na objectividade do holocausto e na subjectividade do estigma que persegue este povo, dada a sua qualidade nómada intrínseca e a sua riqueza empenhada e trabalhadora que, de algum modo, suscita a inveja e a cobiça generalizadas; a imigração, enquanto factual exercício contemporâneo de exploração do homem pelo homem, máxima comunista cuja verdade Duras sempre denunciou por antecipação; a legitimidade do sentimento de revolta inerente às classes sociais desfavorecidas, mas que não conhece um caminho de consciencialização profunda e colectiva, apresentando-se confusa e ineficaz; a apropriação desse sentimento de revolta por dialécticas mais ou menos cultas, manipuladoras e também elas ineficazes para o exercício objectivo da mudança.As personagens que povoam este poema desalinhado e, aparentemente, desarrumado - exercício subliminar superlativo da incapacidade de agir que denuncia - reproduzem todos estes topos:O judeu Abanh que, na sua desmultiplicação por dois, sublinha a ineficácia do extermínio e que, simultaneamente, na sua aparente indiferença perante a vida ou a morte, reclama o cansaço do sofrimento induzido por uma dor incessantemente infligida que se adivinha interminável. "- Acreditámos num tipo de espera racional, interminável. // [...] - O que é que aconteceu? - pergunta David. // O objectivo passava a ser a paciência. // [...] - O judeu acreditava que a vitória existia - diz Abahn. - Já não acredita." (pp. 79/80) David, o imigrante, português, de mãos entranhadas de cimento, adormecido na sua necessidade de revolta, sem filosofia, tonto na sua incompreendida - por si - missão de odiar o objecto transviado das suas mágoas de trabalhador em terra alheia. "- De qualquer forma temos de tentar - diz o judeu a David. // David tem um sobressalto // - O quê? // - Avançar para o comunismo - diz o judeu. // - Qual? - pergunta David. // David sorri como se aquilo fosse uma brincadeira. Os judeus também sorriem. // - Não sabemos qual - diz Abahn. - Tu também não sabes." (p. 83)Gringo, a face (in)visível do partido, que se adivinha o comunista, exaltado condutor de massas sofridas anónimas, vingativas e vingadoras, e para sempre anónimas. "[...] E Gringo respondeu-te: FALTA-TE EDUCAÇÃO POLÍTICA. VAMOS MATAR O JUDEU, ASSIM PERCEBERÁS." (p. 105)Entre eles, um conjunto mínimo de personagens presenciais ou citadas, mulheres, sombras de outras sombras de um texto sombrio."'Abahn Sabana David não é um livro crítico, é uma construção política. Uma palavra lógica, construtiva, não militante, uma demonstração da ineficácia da militância política. Demorei quatro ou cinco vezes mais a escrever este livro." Marguerite Duras, em 1972, dixit. * Frase proferida por Abahn

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