Privatização pode degradar caminhos-de-ferro

O governo holandês retomou o controlo dos seus caminhos-de-ferro, e em Inglaterra a empresa gestora da infra-estrutura ferroviária está sob administração judicial. A liberalização e privatização no sector ferroviário estão longe de constituir o êxito que muitos esperavam.

Se a ministra dos Transportes dos Países Baixos, Tineke Netelenbos, só precisava de um pretexto para fazer "rolar cabeças", encontrou-o no início do ano: a regularidade dos comboios holandeses era de 79,9 por cento, em vez dos 80 por cento previstos no contrato estabelecido entre os NS (caminhos-de-ferro neerlandeses) e o Governo. É certo que o incumprimento foi de apenas 0,1 por cento, mas juntando-se-lhe as tensões sociais vividas nos caminhos-de-ferro, o descontentamento dos passageiros, os acidentes e as elevadas taxas de avarias dos últimos anos, a ministra achou que era bastante para demitir a administração dos NS e substituí-la por um conjunto de altos funcionários nomeados pelos ministérios dos Transportes e das Finanças.O Governo holandês retoma, assim, o controlo de um sector que desde há sete anos vinha a experimentar os caminhos da separação e da liberalização. Os NS tinham sido transformados em várias empresas: uma gestora de infra-estruturas, um gestor de capacidades (detentor dos canais horários dos comboios), uma empresa de planeamento a longo prazo, e um "operador de comboios e de estações" (em Portugal, as estações são propriedade da Refer e não da CP). Este último, por sua vez, criou cinco unidades de negócios (Passageiros, Estações, Imobiliário, Manutenção e Mercadorias), tendo em vista a sua eventual privatização. Pelo caminho, foram vendidas algumas actividades não directamente relacionadas com o negócio ferroviário e criada uma "holding" - a NS Group - que superintende as várias entidades.A prática, porém, não correspondeu às expectativas deste modelo. Desde 1995 que a pontualidade dos comboios holandeses não pára de descer, devido sobretudo à falta de pessoal e de material circulante, mas também por não conseguir responder ao crescente aumento da procura, num país onde, ao contrário de Portugal, toda a gente anda de comboio. Em 2001, o número de marchas suprimidas, por falta de composições disponíveis ou por congestionamento das linhas foi dos maiores de sempre. Resultado: os caminhos-de-ferro holandeses chegaram a receber dez mil reclamações por semana devidas ao mau serviço prestado.O Ministério dos Transportes propôs agora um plano de recuperação quinquenal destinado a resolver estes problemas e a aumentar o tráfego de passageiros em 20 por cento. A nova legislação prevê a constituição de uma empresa pública de infra-estruturas e a atribuição de concessões de longo prazo para os serviços ferroviários, por forma a atingir os altos níveis de qualidade dos velhos caminhos-de-ferro holandeses.Para já, e durante seis meses, os NS serão geridos por uma equipa directamente dependente do Governo.No outro lado da Mancha, os comboios estão também em baixa, depois dos acidentes ocorridos nos últimos tempos. O mal, porém, tem raízes anteriores à privatização feita durante o consulado da senhora Thatcher. A antiga British Railways viveu várias décadas de subinvestimento e chegou mesmo a estar três anos seguidos sem uma libra de investimento. Com a privatização, mais de duas dezenas de operadores privados ocuparam o lugar da velha companhia estatal, mas quase todos subsidiados no âmbito de contratos feitos com o Governo que visavam tornar atractiva aquela actividade. Por sua vez, a empresa de infra-estruturas Railtrack, também privada, não recebia uma libra do Estado, mas obtinha receitas suficientes devido à cobrança da taxa de uso (portagem ferroviária) aos operadores.Nos primeiros tempos, enquanto os operadores investiam na compra de novos comboios e tentavam inovar nos serviços para captar clientela, a Railtrack, dentro de uma lógica de empresa privada a funcionar no mercado, privilegiou a distribuição de dividendos aos seus accionistas. A generalidade dos analistas admite que houve erros estratégicos, como o de privilegiar a modernização das estações em vez das linhas, descurando aquilo que deveria ser a principal missão de um gestor de infra-estruturas.Como a rede já estava obsoleta, esta estratégia traduziu-se em inúmeros atrasos, greves, degradação da sinalização e das linhas e - o que é mais grave - séries de acidentes, alguns dos quais com vítimas mortais. Um ministro britânico já admitiu mesmo que os caminhos-de-ferro de Sua Majestade são dos piores da Europa.Para estancar a hemorragia, o Governo colocou a empresa de infra-estruturas sob administração judicial e lançou mão de um investimento público no valor de 43,2 mil milhões de euros, mais 15 por cento do que o anunciado há alguns meses, mas ainda assim insuficiente para atingir os 63 mil milhões de euros tidos como necessários para modernizar nos próximos dez anos o material circulante e as infra-estruturas, remediar o congestionamento de algumas linhas e fazer face ao aumento de procura de passageiros e mercadorias para os próximos anos.O presidente da Autoridade Estratégica dos Caminhos-de-Ferro (SRA), Richard Bowker, garantiu que este plano tem o aval do Governo e prometeu realizá-lo. Só não se conhece a fórmula para voltar a atrair capitais privados para este negócio.

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