Para que serve a literatura

"Histórias com Cidades", o novo livro de José Riço Direitinho, é um conjunto de contos a mostrar que "a literatura não serve para nada". Ou talvez e apenas, e já é muito, que a literatura serve para ler.

Sete histórias, com pessoas, é o que José Riço Direitinho nos oferece.A demência declarada passeia-se pelas cidades, que se exibem como cenários inofensivos. Elas ali estão, oferecendo ruas, bares, becos, monumentos, passeios, jardins, a noite e o dia ao nosso mal-estar. Sem culpabilização. Não se imagine um discurso anti-cosmopolita, mas tão-só a construção da existência amarga de personagens em espaços mais ou menos familiares que a imaginação recria. "Estou em Copenhaga da mesma maneira que podia estar na América Latina... em Lima, em Montevideu, em Santiago do Chile, em Bogotá ou em Buenos Aires", (pág. 48), afirma, distraidamente, uma personagem de um dos contos. A incomodidade não depende do lugar que se habita, não é maior nem menor por vivermos na Europa civilizada ou nas urbes imensas da América Latina. A incomodidade é interior e no interior se resolve, dissolve ou intensifica. Aqui, resolve-se. De forma bruta, mais real do que ficcional. Contudo, é no universo da ficção que nos encontramos pelo sentido literário da escrita de José Riço Direitinho.O sentimento de ruptura que caracteriza os textos destas "Histórias com Cidades", conhece movimentos que espiamos conto a conto. Nos dois primeiros (se, na leitura, obedecermos à sequência proposta) aguardamos ainda o inesperado dos seus desenlaces; a partir do terceiro, suspeitando já algo de insólito, deixamo-nos ir pelo ritmo da escrita, aprendendo as pausas que se impõem, as hesitações, as alternâncias de olhares entre o narrador e o narrado, as vivências que se expõem.Autor de dois romances ("Breviário das Más Inclinações" e "Relógio do Cárcere"), José Riço Direitinho regressa aqui ao género conto com que se estreou na literatura (publicada em forma de livro - as suas primeiras experiências ocuparam algumas edições das páginas do DN Jovem), em 1992, com "A Casa do Fim". Porém, em todos aqueles textos, a sua preferência estava em espelhar experiências ficcionais situadas em ambiente rural, marcadas por uma mundividência feita de metáforas menos familiarizadas com os excessos cosmopolitas que caracterizam as sociedades modernas, ou o desejo delas. Aqui se revela a sua urbanidade, e, ainda assim, a morbilidade que caracteriza as suas histórias.Causa estranheza, ao lermos estas páginas, reconhecer a constante sonorização de nomes nórdicos ou a nomeação de locais distantes pela ausência de referentes geográficos familiares. Apenas um José, ou mesmo Zé, se destaca entre as personagens que vão compondo o conjunto dos contos, recolocando-nos no universo da escrita nacional. Este exercício permite entender que a literatura se lê pelo que é. O estrangeirismo da situação assim criada, devolve-nos a marca do literário. O código de elementos que o compõem prescinde assim de tabuletas reconhecíveis no imediato. Esta aproximação não deixa, no entanto, de causar alguma incomodidade: a de reconhecermos que se precisamos de um porto para nos identificarmos com a escrita de um português, essa amarra apenas demonstra como podemos ser relativamente provincianos e esquecer que o que interessa não é o modo como se retrata, mas a maneira como se regista. Atentemos, então, a esse não negligenciável pormenor.Daí que seja relativamente exagerado que o editor tenha sentido a necessidade de acrescentar uma página ao corpo desta obra, pejada de citações retiradas da imprensa estrangeira e reproduzindo elogios críticos à obra de José Riço Direitinho. Como se por si só tal constituísse um selo de qualidade, mais valia que os críticos nacionais, incapazes de uma análise amorosa, soubessem colmatar. Ou, desmerecendo a obra, como se ela necessitasse dessas mesmas referências internacionais para se constituir como elemento individual. Sobretudo quando o próprio autor, deixando-se substituir preguiçosamente por uma personagem, afirma: "[...] hoje não vou dar aulas... tenho medo... tenho muito medo... não vou dar aulas... não vou porque a literatura não serve para nada... [...]" (pág. 118) Tal como nos parece supérfluo que o autor, à guisa de conclusão, tenha incluído uns "Apontamentos Que Servem Aqui Como Um Muito Imperfeito e Singular Epílogo". Escritas com tese pré-definida desmascaram o autor, mesmo que se trate apenas de um fingimento. O tema não era esse.Devolvam-se, deste modo, estes sete tristes contos ao universo de que fazem parte. Talvez pudessem ter menos angústia, mas o autor os quis assim, e assim também estão bem. E assim é que estão bem.

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