O hangar dos despojos humanos

Mais uma estreia absoluta no Po.N.T.I' 99. Desta vez, uma produção da companhia Ensemble, que convidou Rogério de Carvalho para encenar uma das obras mais carismáticas de Bernard-Marie Koltès: "Cais Oeste". Amanhã e depois, a tipografia desactivada que irá acolher o futuro Teatro do Bolhão converte-se no hangar de um porto nova-iorquino, por onde erram despojos humanos.

Camilo Castelo-Branco fala, em algumas das suas obras, das sumptuosas festas que se realizavam nos salões do Palácio dos Condes do Bolhão, sito na rua Formosa, próximo do famoso mercado portuense. As festas acabaram e, muitos anos mais tarde, algumas alas do edifício oitocentista deram lugar a uma tipografia, já desactivada. Hoje, o que se pode ler na faixa colocada numa das varandas indica que o palacete irá albergar a Academia Contemporânea do Espectáculo (ACE), algumas companhias teatrais e no grandioso espaço onde outrora trabalhavam as máquinas construir-se-á um novo auditório. O Teatro do Bolhão, assim se chamará, está já a ser projectado pelo arquitecto José Gigante, mas a execução das obras ainda não tem prazo definido. Apesar de o Porto 2001 apontar este equipamento na sua programação, a verdade é que ainda falta dar muitos passos, nomeadamente no que concerne aos financiamentos, para o projecto avançar.O estado degradado da antiga tipografia - o telhado deixa entrar a água da chuva e as paredes, nuas, destilam humidade - poderia muito bem servir de cenário a uma qualquer peça de Bernard-Marie Koltès (1948-1991). Assim pensou a companhia Ensemble- Sociedade de Actores, que, na sala onde será instalado o Teatro do Bolhão, vai estrear, amanhã e depois, às 21h30, no âmbito do Po.N.T.I' 99, "Cais Oeste", numa encenação de Rogério de Carvalho. A peculiaridade dos locais assinalados por Koltès para as suas peças reside quase sempre na neutralidade. Gosta de espaços inóspitos, residuais, onde a ordem natural das coisas anda por caminhos desviados. "Cais Oeste" é um antigo porto, abandonado nas margens do Hudson, na zona ocidental de Nova Iorque, onde Koltès passou algumas noites, deambulando entre traficantes, prostitutos e vagabundos. Sobre este canto de desolação, onde existe um enorme hangar vazio, disse ser como "um quadrado no meio de um jardim, misteriosamente deixado ao abandono e no qual as plantas se desenvolveram de uma forma diferente". Por isso, a tipografia transformada num hangar despido não podia ser mais propícia ao confronto oratório de personagens que, nota a actriz Emília Silvestre, não são mais do que "despojos humanos". Tal como em muitas obras de Koltès, também em "Cais Oeste" tudo se reconverte em transação, restando as palavras como as únicas armas de uma luta onde a emoção e os sentimentos foram esquecidos. Tudo gira em torno do encontro entre Koch, um homem rico que escolhe o porto que bordeja o Hudson para se suicidar, e Abad, o emigrante ilegal que ali se esconde. Mas, tal como as caixas chinesas, "Cais Oeste" vai revelando muitas outras histórias de solidão, de verdades obscuras, interpretadas por Monique, Charles, Clare e Cécile. "Fica-se sempre com a sensação de que as personagens estão a esconder alguma coisa", diz Emília Silvestre, "porque aquilo que dizem raramente corresponde àquilo que sentem verdadeiramente". Obra profundamente poética, "Cais Oeste" descortina também uma crítica social, atenuada pela comoção com a qual Koltès define as diferenças humanas. Muito pouco condescendente em relação a toda a parafernália de condimentos ilusórios que envolve o teatro - os figurinos ou os cenários exuberantes, por exemplo -, o autor desenvolve aqui a ideia de construir uma acção linear, sólida quanto baste para acolher muitas outras acções. A esta sobriedade dramatúrgica juntou a "vontade de transmitir a sensação estranha que se experimenta ao atravessar um lugar imenso, aparentemente desabitado, com as mudanças de luz que se sucedem ao longo da noite penetrando pelos buracos do telhado; os ruídos de passos e de vozes que se multiplicam no vazio, a presença de alguém que não vemos mas nos roça ao passar, ou talvez da mão que irá agarrar-nos de repente". Depois desta estreia absoluta no Po.N.T.I' 99, "Cais Oeste", cujo elenco é composto por Emília Silvestre, Jorge Pinto, Sérgio Praia, Dom Petro Dikota, Pedro Mendonça, Odete Mosso, Márcia Breia e António Capelo, será reposto de 3 a 15 de Janeiro. Também no futuro Teatro do Bolhão. Esta encenação de Rogério de Carvalho foi ainda o mote para a organização de uma série de encontros, conferências e projecção de filmes inéditos sobre Koltès. Sob a tutela de várias entidades, entre as quais o Institut Français do Porto e a Faculdade de Letras, realiza-se hoje, às 16h00, no café-concerto do Rivoli Teatro Municipal, uma mesa-redonda sobre produção, tradução e edição do texto teatral. Participam Daniel Girard (director do Centre National des Ecritures du Spectacle - la Chartreuse Villeneuve-Lez-Avignon), Sabine Bossan (directora da Associação Entr'Actes), François Berreur (responsável pelas edições "Les Solitaires Intempestifs"), André Jorge, Paulo Eduardo Carvalho e Fernando Mora Ramos. Amanhã, às 17h00, no Institut Français, François Koltès (realizador e autor de filmes sobre Koltès, como "Chéreau/Koltès, une rencontre" ou "Conversation élémentaire") fará a apresentação do vídeo "Comme une étoile filante - B.-M. Koltès".

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