O esplendor da verdade

Antologia singular, "Mar" reúne cinquenta poemas seleccionados entre toda a obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen a partir das suas referências ao mar. Entre eles, figuram alguns dos mais belos escritos pela poetisa.

Embora se torne por vezes perigoso reduzir a poesia à captação extasiada do real e à celebração da sua beleza, há poetas perante os quais somos forçados a abandonar todos os juízos mais elaborados ou racionais, ficando apenas suspensos no assombro que das suas palavras se propaga e que, na sua pura imanência, corresponde ao mistério da presença humana neste mundo. Sophia de Mello Breyner Andresen (n. 1919) foi desde sempre uma dessas vozes, mas não é este o lugar para percorrer o conjunto da sua poesia.Trata-se simplesmente de chamar a atenção para um livro singular, que consiste numa antologia de toda a sua obra poética, mas seleccionada a partir de um critério temático muito específico e neste caso baseado nas referências ao mar, reunindo cerca de cinco dezenas de poemas em que o elemento marítimo ocupa um lugar dominante ou pelo menos particularmente motivador para a leitura.Organizado por uma filha da autora - Maria Andresen de Sousa Tavares - e enriquecido com uma recensão de Francisco de Sousa Tavares ao primeiro livro de Sophia em 1944 (e que aqui serve de posfácio), este volume permite-nos, desde logo, contactar com alguns dos mais belos poemas escritos por Sophia, nos quais sobressaem, aliás, certos aspectos recorrentes ao longo da sua restante obra e detectáveis ao nível concreto de cada texto: refiro-me, acima de tudo, a uma depuração estilística sensível tanto na simplicidade estrutural dos poemas como na escolha de um léxico capaz de comunicar directamente com o leitor: "As ondas quebravam uma a uma/ Eu estava só com a areia e com a espuma/ Do mar que cantava só pra mim" (pág. 15).Este pequeno texto de três versos constitui um excelente exemplo de muitos poemas breves de Sophia, com a faculdade de condensarem em meia dúzia de versos um intenso fascínio perante o mar, na sua magnitude e no seu infinito, e cujo efeito de deslumbramento parece tornar-se ainda mais irrecusável quando é absorvido na solidão: "Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim/ A tua beleza aumenta quando estamos sós./ E tão fundo intimamente a tua voz/ Segue o mais secreto bailar do meu sonho/ Que momentos há em que eu suponho/ Seres um milagre criado só para mim" (pág.16). Ainda nesta lógica baseada na captação dos instantes supremos, destaca-se uma vontade de união cada vez mais íntima com o mar, que implica um baptismo ou um renascimento - "Eu nasci há um instante" (pág. 21) - e corresponde a uma plena fusão com os elementos naturais: "De todos os cantos do mundo/ Amo com um amor mais forte e mais profundo/ Aquela praia extasiada e nua/ Onde me uni ao mar, ao vento e à lua" (p.10).Figuram todavia neste livro outros poemas por vezes mais longos, quer os que provêm de "Navegações" (sobre a epopeia dos descobrimentos), quer aqueles em que o mar, servindo apenas de cenário ou pano de fundo para diversos episódios, mantém apesar disso um papel relevante: é esse o caso, por exemplo, de "Senhora da Rocha" (alusivo à imagem de uma pequena capela do litoral algarvio), mas também de "Delphica", "O Minotauro", "Açores" ou do célebre texto "Escrito em Hydra, Evocando Fernando Pessoa", que constitui uma das mais belas evocações do poeta dos heterónimos, com quem Sophia dialoga para lá do tempo e do espaço: "Quando na manhã de Junho o navio ancorou em Hydra/ (...)/ Murmurei o teu nome/ O teu ambíguo nome//Invoquei a tua sombra transparente e solene/ (...)/ E acreditei firmemente que tu vias a manhã/ Porque a tua alma foi visual até aos ossos/ Impessoal até aos ossos/ Segundo a lei de máscara do teu nome// Odysseus - Persona// (...)// O teu destino deveria ter passado neste porto/ Onde tudo se torna impessoal e livre/ Onde tudo é divino como convém ao real" (págs. 49/51).Em resumo, estamos perante um livro sem dúvida aconselhável para ler este Verão, talvez numa esplanada sobre o mar - um livro que recupera serenamente um tema quase omnipresente em Sophia e que, para lá do "brilho do visível frente a frente", nos sabe mostrar o esplendor de uma verdade pressentida à superfície das ondas, celebrando o retorno a um tempo mágico e primordial - "Onde sou a mim mesma devolvida/ (...)/ À praia inicial da minha vida" (pág. 47) - e simultaneamente a promessa de um futuro regresso, a cumprir na eternidade: "Quando eu morrer voltarei para busca/ Os instantes que não vivi junto do mar" (pág. 40).

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