Do pátio das cantigas

Com "A Bela e o Paparazzo", António-Pedro Vasconcelos quer olhar Lisboa de outra maneira, e continuar também a reflectir sobre a realidade portuguesa. Mesmo que seja uma visão ácida sobre este mundo, o cinema há-de sempre servir para o salvar. E aos seus espectadores. É neste cinema que ele acredita. Sérgio C. Andrade

"Neste local cantou em 30-6-1971 Alfredo Duarte (Marceneiro) / O Povo da Bica agradecido". A placa evocativa está num desses "pátios das cantigas" que permanecem hoje exactamente como eram no tempo do fado, e que configuram ainda a face mais íntima de Lisboa. Há um largo com chafariz ao centro, três frondosas árvores (freixos?) a resguardá-lo do sol inclemente do Verão, mesmo que este ano o céu seja pontuado com mais nuvens do que o habitual. De um dos lados, atravessa-o o elevador da Bica, num sobe e desce ronceiro e barulhento - "corta!". Uma mulher sobe a escadaria com o saco das compras da mercearia. Em sentido inverso, um homem de porte pugilista, vestido de preto e camisola caviada, perscruta o seu "território". Do lado de cima, a esplanada do BarBica regista um movimento fora do comum para esta hora da tarde. Em frente, por detrás da vidraça duma janela, uma velha senhora vê o seu quotidiano descendente subitamente preenchido com um estranho aglomerado de gente e maquinaria...
Estamos no Largo de Santo Antoninho, freguesia de São Paulo, em plena Lisboa alfacinha, a acompanhar uma tarde da rodagem de "A Bela e o Paparazzo", o próximo filme de António-Pedro Vasconcelos (APV), com estreia prevista para o Natal. "Isto é 'O Pátio das Cantigas' no século XXI", diz Nuno Markl, humorista e radialista, um dos protagonistas - mais como ele próprio do que como actor a criar uma personagem - deste filme com que o realizador quer "olhar para Lisboa de outra maneira".
A associação do filme ao imaginário "pátio das cantigas" tem outro suporte. "A Bela e o Paparazzo" será uma comédia romântica, um género em que APV se está a aventurar pela primeira vez, ensaiando uma aproximação ao cinema de Arthur Duarte ("A Menina da Rádio") e de Billy Wilder ("O Apartamento"). Mas como o pátio das cantigas de outros tempos, ainda que mantendo o seu figurino físico e humano, já não está imune à aldeia global, por aqui vai passar parte da acção de uma história que tem como fundo o mundo da televisão, das telenovelas e "a feira de frivolidades e aparências que o costuma acompanhar", explica Tiago R. Santos, o autor da história original e do argumento do filme.
A intriga é a mais simples possível: há uma jovem e bela estrela da nossa televisão (Mariana/Soraia Chaves) que vive um momento difícil na sua carreira, e que simultaneamente se vê seguida dia e noite pela câmara indiscreta de um "paparazzo" (João/Marco d'Almeida). Mariana acaba por se apaixonar por João desconhecendo a sua verdadeira identidade, e o resto da história segue os códigos clássicos do género: descoberta da verdade, separação e... "happy end".
"O cinema tem isso de bom: não nos autoriza a ter um olhar pessimista sobre o mundo. Não é gratificante fazermos um filme, sobre seja o que for, fazendo passar às pessoas a mensagem de que não vale a pena viver", justifica o realizador de "O Lugar do Morto", que lembra o lema de Woody Allen: o mundo é um lugar horrível, mas ainda é aquele onde se pode comer um bom bife...
Reflectir a realidade
portuguesa
Que olhar é este que APV lança agora sobre Lisboa e Portugal - ele que é conhecido pelo cepticismo que tem lançado, como realizador mas também como intelectual e comentador atento e sempre interventivo da realidade nacional?
"Os meus filmes têm esta particularidade, falam da sociedade portuguesa, daquilo que eu conheço e que me toca. E abordam sempre temas que andam no ar: a exploração do trabalho infantil ('Jaime'), o regresso dos soldados ('Os Imortais'), a corrupção autárquica ('Call Girl')". Em "A Bela e o Paparazzo", APV prossegue essa inquirição mantendo um olhar ácido sobre o mundo, mas também "a virtude salvífica" que justifique o continuar a viver. É o tema da efemeridade da fama, da frivolidade dos "media" e de como isso mexe com a sociedade e com os comportamentos individuais.
Para "A Bela e o Paparazzo", APV foi buscar novamente a actriz de "Call Girl". Mas alterou-lhe não só o "look" como o perfil dramático. Aqui, a protagonista, Mariana, é não só loira como "uma personagem completamente diferente da anterior", diz Soraia Chaves. Ao contrário da "call girl", que era "uma mulher sedutora, manipuladora e calculista, esta é uma personagem absolutamente impulsiva, com uma energia apaixonada muito intensa", acrescenta a actriz, que praticamente tem aqui a oportunidade de regressar ao grande ecrã, após o anterior trabalho com APV - pelo meio, fez apenas uma pequena aparição em "Arte de Roubar", de Leonel Vieira, e a mini-série televisiva "A Vida Privada de Salazar", além de ter aproveitado para estudar arte dramática em Madrid e em Moscovo.
O novo papel ajudará também Soraia Chaves a contrariar a imagem que de si ficou depois de "O Crime do Padre Amaro" e "Call Girl". Uma situação que a história de "A Bela e o Paparazzo" - que remete claramente para o mito "a bela e o monstro" - de certo modo também aborda. "De facto, também eu, às vezes, fui objecto de notícias desagradáveis na imprensa cor-de-rosa e no circuito dos 'paparazzi'. Mas a minha forma de reagir é diferente da de Mariana. Para proteger o meu mundo pessoal, não dou importância, nem entro nesse jogo", diz Soraia Chaves.
Os grandes actores
são os de comédia
Nas cenas rodadas no Pátio de Santo Antoninho, Mariana/Soraia Chaves, já assumida a paixão João/Marco Almeida, participa com ele, de passagem, numa divertida situação devedora do imaginário da comédia cinematográfica portuguesa dos anos 1940/50. Numa improvisada "assembleia-geral do prédio", Tiago (Nuno Markl) - um escritor "com excesso de tempo", diz o próprio -, um dos amigos e companheiros de casa de João - o outro é Hugo/Pedro Laginha, que trabalha num restaurante de sushi -, propõe declarar a independência do edifício, fazendo com que cada morador assuma a gestão do seu andar como se de um Estado se tratasse. Na reunião intervém uma galeria de figuras - o casal católico, o casal gay, o negro, a velha senhora loira, a adolescente, o mecânico, o anão, a cozinheira...
APV assume o seu desejo de recuperar esse lado das comédias românticas. Até pelo prazer que diz ter de trabalhar com actores de comédia. "Sempre achei que os grandes actores são os de comédia, que conseguem responder ao ritmo implacável que o género exige, mesmo quando não se trata do 'slapstick'".
Mas Nuno Markl não foi a primeira escolha para o papel de Hugo - "e ele sabe disso", diz o realizador, que inicialmente pensou no seu companheiro de Os Contemporâneos, Bruno Nogueira. No impedimento deste, Markl acabou por ficar com o lugar, mas só depois de ter explicado a APV que não era actor e que só sabia fazer de si próprio. "Estou felicíssimo com a escolha, porque o Nuno tem aquele lado um bocado Peter Sellers que eu queria para a personagem, mas quis também, obviamente, aproveitar uma parte da imagem pública que ele já tem", diz o autor de "Os Imortais".
É também a primeira vez que APV trabalha com Marco d'Almeida (em quem chegou a pensar para fazer o polícia de "Call Girl", que viria depois a ser feito por Ivo Canelas, por indisponibilidade daquele). O David Jameson da série "Equador" agarrou agora a oportunidade e está a construir uma personagem que tem sido para si "uma descoberta" ao longo da rodagem. "É uma personagem dúplice: o 'paparazzo' e o jovem que se deixa apaixonar pela sua 'vítima'. Este desdobramento dá-me a possibilidade de tocar várias facetas no trabalho de representação", diz o actor, num intervalo de uma cena em que teve de se descalçar e pegar num cão bebé ao colo para, com ar cabisbaixo, sair de casa em busca de Mariana, já depois de esta ter descoberto a sua verdadeira identidade.

Medir o sol e as nuvens
Quando esta cena foi rodada, já a luz ia esmorecendo, depois de uma tarde de sol intermitente, em que o trabalho de um dos assistentes da equipa foi, ao longo de toda a tarde, prever, ao segundo, a movimentação das nuvens para dar ao operador de fotografia o "timing" exacto em que ele teria a luz certa para a cena. "Não é essa a luz de que eu preciso agora", dizia, agastado, José António Loureiro, que vem também da equipa técnica de "Call Girl". Mas o seu protesto quase não se ouviu, pois no mesmo momento estava a passar o ascensor da Bica. "Corta".
"A Bela e o Paparazzo" é uma produção MGN de Tino Navarro, com argumento original de Tiago R. Santos (que também já tinha trabalhado com APV no filme anterior), e um orçamento superior a um milhão de euros. A rodagem terminou na semana passada após quase dois meses filmagens exclusivamente em Lisboa e nos seus cenários mais conhecidos - "há mesmo uma sequência a que chamo videoclip em que os dois protagonistas dançam nos principais sítios turísticos da cidade", diz APV -, e com uma parte rodada em estúdio. Para além dos actores já referidos, têm pequenos papéis ou participações especiais no filme Maria João Falcão, Virgílio Castelo, Nicolau Breyner, Ivo Canelas e Cândido Ferreira, num "casting" da responsabilidade de Patrícia Vasconcelos.
A estreia de "A Bela e o Paparazzo" está já anunciada para o dia 10 de Dezembro.

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