A catedral do purgatório

À chuva, encerrada, sem fieis nem pregadores. A discoteca a que muita gente se habituou a chamar de catedral portuguesa da música de dança, fechou há seis meses. Em vez da malta da festa, da noite, das bichas à porta, das recusas a Robert de Niro e até do malogrado Ayrton Senna ter sido agarrado pelas calças, restam agora duas placas enormes: "Trespassa-se". Já não há luzes nem dançarinos em cima das colunas de som. A fé perdeu-se, no altar já ninguém ora. O Alcântara-Mar afunda-se no esquecimento. Na revista de música de dança "Dance Club", Mr. Chuva assina uma secção que se chama "Ficheiros secretos". Mas nesse espaço mundano, dedicado às figuras da noite, ainda não contou a história secreta daquilo que se passou por trás dos balcões, nos dez anos em que serviu copos na mais carismática discoteca lisboeta, considerada por muitos a catedral portuguesa da música de dança: o Alcântara-Mar. Pedro Chuva, que actualmente trabalha no Queen's, a menos de quinhentos metros do seu antigo emprego, encontrou-se com a PÚBLICA na doca de Santo Amaro, mas o café onde era suposto fazer-se a entrevista encontrava-se fechado. Naquele fim de tarde chuvoso estava destinado a regressar ao passado. Depois da linha de comboio, atravessámos a Rua da Cozinha Económica e Pedro Chuva, com um sorriso nos lábios, apontou com o queixo na direcção da porta fechada, encimada por um letreiro onde se lê "Trespassa-se tel. 363 64 32". "É a fotografia do ano", comentou.Acabámos num dos restaurantes do Largo das Fontaínhas, onde o pessoal do Alcântara-Mar "fazia a vida negra aos empregados", quando perto do meio-dia de Domingo ali se dirigiam para comer bitoques, depois de fecharem as portas da discoteca. "Entrei para o Alcântara em finais de 88, através do contacto de um amigo que era lá roupeiro. Na altura, jogava futebol na equipa júnior do Estoril-Praia, na posição de trinco. Um dia deu-me um estalo e abandonei aquilo tudo. Decidi que queria ir trabalhar para a noite. Sou pai de gémeos e a minha mulher costuma dizer que se vivêssemos os dois num horário normal já nem estávamos juntos".Depois de servir à mesa onde ganhava à comissão, Pedro Chuva passou logo para a frente de um bar e não muito tempo depois o seu balcão, o bar redondo, era popular entre os clientes, que se fixavam no "bar do Chuva". Ainda não tinha 20 anos, estava no seu primeiro emprego e já ganhava 200 contos. Nada mau para princípio de vida. Ainda por cima gostava daquilo que fazia: "Adoro vender copos e dar-me com todo o tipo de pessoas, se não se for simpático, não vale a pena tentar passar por simpático. Gosto daquilo que faço e as pessoas sentem isso".Pedro Chuva acredita que "todas as noites são diferentes, são as pessoas que fazem isso, de resto" e portanto nunca sentiu monotonia naquilo que faz. Nos primeiros anos, então, quando o Alcântara-Mar "se encontrava muito à frente", em relação às restantes ofertas de vida nocturna, era impossível sentir-se com "shit face": "Depois deu-se o 'boom' das lojas de música de dança e hoje todos passam os mesmos discos mas, no início, os DJ que lá iam tocar tinham tudo antes dos outros".Para além dos convites que se faziam a DJ de fora, Tó Pereira, Mário Roque, Ricciardi, XL Garcia, Luís e Paulo Leite, Jiggy, Geninho, os DJ que por lá passaram foram também aqueles que fizeram nome, quando pouco depois se deu a explosão de raves e festas de dança. Muitos desses DJ trabalhavam também na loja de discos Bimotor, nos Restauradores, e numa altura em que a música de dança passava ao lado do público, escolhiam para si as raridades em vinil que eram importadas a conta-gotas da Inglaterra, fomentando depois à noite, junto do público, um gosto por esses ritmos novos, estrategicamente intercalados com temas de pop mais familiares.O Alcântara-Mar espantava então os noctívagos com uma decoração austera, as suas linhas sombrias e materiais gélidos contrastando com o ambiente de "boîte" a que os lisboetas estavam habituados. "Era ferro e pedra", lembra-se Chuva, "depois é que entrou naquela onda barroca ou como era aquilo", acrescenta, aludindo aos cortinados vermelhos, aos candelabros e aos espelhos em molduras douradas, que deram à discoteca a atmosfera de um salão de baile num filme de época. E também recorda as fardas que os empregados chegaram a usar, cheias de botões, à soldado cossaco. Logo na primeira semana, perderam-se metade dos botões. No meio da multidão, procurando furar por entre as pessoas, coladas umas às outras, os botões soltavam-se das fardas como caricas. E ainda os penteados com arames e bolas de Vasco (actualmente a trabalhar com o grupo Tentações), transformando as suas cabeleiras em constelações. "Também andei com o cabelo descolorado durante dois anos, mas depois aborreci-me, aquilo tinha-se transformado na cena do 'tecno-man' e andava toda a gente assim". O seu cabelo agora tem a cor natural, embora faça música tecno, sob o pseudónimo de Un Logic.O Alcântara-Mar criou uma nova forma de estar na noite. Ter acesso assegurado a certas horas e dias chegava a requerer um estatuto especial. Não bastava querer espiar as aves raras, era preciso aparentar ser uma. Tornaram-se míticos, ou pelo menos anedóticos, os casos de estrelas do cinema e do desporto que nem sempre conseguiam franquear a porta. O actor norte-americano Robert de Niro foi uma das vítimas de uma exigência muito particular: "Muita gente diz que fui eu que não deixei entrar o Robert de Niro, mas não é verdade", justifica-se Pedro Lourena, que durante oito anos foi lá porteiro: "A única pessoa, que depois até acabei por deixar entrar, foi o Ayrton Senna. Ele chegou e eu não o reconheci, perguntei-lhe se tinha cartão e ele disse-me que sim. Passou para o hall de entrada, puxou da carteira e eu nesse momento olhei para trás. Quando me virei outra vez, ele já ia por ali a dentro. Fui lá, agarrei nele e trouxe-o pelo rabo e ele 'oh cara, oh cara, não me bata qu'eu sou o Ayrton Senna'. Olhei para ele e comecei a rir-me. Era mesmo o Ayrton Senna".Pedro Lourena, que agora gere o "Queen's", veste de negro, usa a cabeça rapada e um auricular preso a uma das orelhas e, apesar da segurança com que fala, ao ponto de recordar episódios divertidos, algo do passado parece estar-lhe atravessado na garganta. "Não gosto de falar do Alcântara" diz ele, que esteve lá durante mais de onze anos. Lembra-se do dia em que a discoteca abriu ao público e do dia em que encerrou. Também não lhe é difícil: essas datas coincidem com o dia em que começou a trabalhar no Alcântara e com o dia em que saiu. Foi a 29 de Maio deste ano e organizou uma festa a que chamou "Good bye my friends". "Era só a minha festa de despedida, mas foi também o encerramento do Alcântara".No Inverno anterior, as cheias tinham alagado a rua da Cozinha Económica e a discoteca ficou transformada numa piscina. As ripas do chão de madeira soltaram-se e o Alcântara fechou provisoriamente por um mês: "Fez-se uma remodelação que, para mim e para as pessoas em geral, foi uma decepção. Não tinha nada de novo e aquela casa merecia uma coisa de maior impacto".Pedro Lourena, que se iniciou em 1988 como porteiro, da porta do privado, para terminar, no último ano, como gerente, costumava dizer que "no dia em que o Alcântara for uma casa igual às outras, morre". A sua insatisfação levou-o a sair para o Queen's, curiosamente uma das muitas discotecas e bares que abriram já nesta década à beira do rio, desde Santos até à doca de Santo Amaro, e que preencheram o vazio entre a 24 de Julho e Alcântara, asfixiando o primeiro lugar de culto lisboeta da música de dança. Como é que o Alcântara-mar perdeu a identidade de uma certa forma de viver a noite que a própria casa ajudou a inaugurar? "No momento em que começou a haver uma certa falta de interesse e de investimento da entidade patronal", afirma Lourena, que ao sair para o Queen's, levou consigo Pedro Chuva, que considera o barman mais carismático de Lisboa: "Não ensino nada a ninguém, e muito menos a eles que são empresários e andam nisto há muito tempo, mas para uma casa se manter há que investir. O Alcântara nunca foi igual, estava sempre em transformação. Nunca fechou e sempre teve obras. Houve uma altura em que estagnou, fez uma pausa durante muito tempo e foi na altura errada, quando abriram muitas casas em Lisboa, especialmente já no final, por altura da Expo".Resultado da união de Raúl Rodrigues e de Pedro Luz, a que depois se juntou Henrique Oliveira, o Alcântara-Mar surgiu num período charneira da noite na capital mas também da cultura de dança pelo mundo fora, quando despontou o fenómeno do acid-house e da tecno. No dia de abertura, a 11 de Fevereiro de 88, as imediações da discoteca pululavam de gente e houve "felizardos" que tiveram de esperar seis horas para conseguir entrar. Foi no Alcântara que se popularizou "So get up", dos USL, o tema que inaugurou a geração de música de dança portuguesa, e foi também a partir do Alcântara que, pelo menos em Lisboa, se generalizou o gosto por esse tipo de sons. E até os "Alcântara-dancers" se tornaram património, quando passaram a actuar pelo país fora.A cabine dos DJ do Alcântara era comparada a um altar de igreja, e todos os que por lá passaram poderiam contar histórias. Lourena recorda a actuação de Tó Pereira (DJ VIbe) em 98, quando regressou ao Alcântara, numa noite em que actuou durante doze horas seguidas. Luís Leite, por seu lado, lembra-se quando a meio de um "set" pôs no prato do gira-discos uma versão ambiental de "Sweet lullaby" dos Deep Forest. A pista estava "à pinha" e o público reagiu com o entusiasmo de um concerto: "Noutras discotecas é o DJ a puxar pelo público, ali era o contrário. Acabei essa noite a passar um tema dos Dead Can Dance, estava de costas e quando me virei as pessoas estavam todas sentadas na pista a conversar. Era daquelas coisas que nos punha bem dispostos para ir trabalhar no dia seguinte". As noites "Remember", às quartas-feiras, celebrizaram-se pelo revivalismo rock promovidas por um comissário de bordo, Luís Beethoven, e chegaram a fazer-se excursões vindas da província. Também os Domingos tiveram momentos especiais, com as festas de tequilla e os desfiles de moda da escola de manequins de João Carlos (que foi o RP da casa até morrer - de resto, a sua morte deu origem à associação Abraço, fundada por Margarida Martins, então porteira do Frágil, no Bairro Alto)."Nunca vi uma discoteca onde estivessem juntos o público do Elefante Branco, do Frágil, das raves e em que toda a gente se divertia", recorda o DJ Luís Leite: "Era uma família onde cabia gente de todas as idades e escalões sociais". "Uma casa de moda de passagem obrigatória", como lhe chamou Lourena: "Até o pessoal do Bairro Alto, chegado às quatro da manhã, vinha em romaria". Para Luís leite, "sem o Alcântara, a noite lisboeta morreu um bocado", porque "o Lux não é para toda a gente". É por isso que acredita que se voltar a abrir, "continuará a ser a casa nº 1 de Lisboa". Dos três sócios do Alcântara, Pedro Luz, Henrique Oliveira e Raúl Rodrigues, pelo menos dois são grandes empresários da noite lisboeta e, juntos, dominam uma porção razoável dos locais nocturnos. Rodrigues tem o Sto. Amaro Café, o Barra Bar e o Alcântara-Café (que partilha com um antigo gerente do Alcântara-Mar, Manuel Faria, também à frente do Queen's); Pedro Luz o Dock's, o Indochina, o Gringo's e o Plateau. De resto, Rodrigues e Oliveira chegaram a fazer parte da primeira gerência do King's and Queen's. Tendo em conta os interesses comuns, a razão da queda do Alcântara-Mar teria sido o facto de haver um sócio maioritário, enquanto os outros dois estavam à frente de outras casas da concorrência. A Pública não conseguiu no entanto falar com nenhum dos sócios, que alegaram não ser este o momento oportuno para o fazer.Luís Leite entrou para o Alcântara em 93, substituindo Jiggy, que se tinha passado para o Kremlin. Viveu por isso os anos de "histeria", em que se entrava à meia noite para sair às oito, com a hora de fecho a chegar a esticar-se por vezes até ao meio-dia: "Um clube com um horário daqueles era trabalho forçado - um massacre. A partir das 8 horas, levava-se com os restos da noite e era so baixaria". Foi no entanto a discoteca em que, afirma, "a festa começava logo à entrada", com os próprios empregados: "Quem fez a casa foram as pessoas que lá trabalharam - e a clientela". A ausência de estratégia acabou por cavar o fim e a falta de investimento tornou-se anedótica quando correu a história de que Pedro Lata, então RP, tinha recebido 30 contos para fazer uma nova decoração. O endurecimento da violência naquela zona de Alcântara pode também ter sido um dos motivos de instabilidade da discoteca, com permanentes cenas de pancadaria, lutas com armas brancas, pedradas e até tiroteio à porta (apesar da esquadra de Polícia que fica mesmo por trás, no Largo do calvário). A abertura de uma discoteca africana é outro motivo assinalado, pelo facto da rua ter passado a ser frequentada por um público cada vez mais desordeiro. Mas, segundo Leite, "se tiver que haver problemas, há. Não é por isso que se deixa de trabalhar. O Alcântara-mar já lá estava antes e continuou a estar, enquanto essa discoteca mudou de nome por três vezes". Enquanto Pedro Lourena trabalhou à porta do privado, assegura, fazia clientes todos os dias: "Pintava sempre um quadro novo. Depois da minha porta, havia mais duas que tinham de se passar para chegar à sala. Cada vez que entrava, para ver o ambiente, ficava com a sensação de estar num mundo diferente de tudo, mas muito giro. Era uma fauna, uma mistura de pessoas". Agora, se for lá, não passará da primeira porta, amolgada com os pontapés e pedradas que levou nos últimos anos. Encontrará, nas duas portas de entrada, cartazes com um número de telefone e a palavra trespassa-se. "Uma casa com uma mística tão grande não merecia aqueles cartazes", desabafa.

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